“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles”  (Mt 18,20)

 

O evangelho de hoje faz parte do chamado “discurso comunitário”, que revela um modo original de viver e proceder e que tem seu fundamento no modo de viver e agir do próprio Jesus.

É bonito ver como Jesus prepara e acompanha os seus amigos, os apóstolos, para a vida de comunidade e para a missão. Ele dedica à formação dos Doze suas melhores forças e seus ensinamentos mais claros. O fundamental, nesta formação, é o "estar com Ele": convivência, intimidade, partilha de vida, de sonhos...

Jesus tem consciência de que nenhuma comunidade de seus seguidores poderá subsistir se imperar um estilo de vida individualista, competitivo e incapaz de acolher as limitações e fragilidades de cada um. 

Daí seu constante convite a provocar encontros que ajudem a integrar, a re-unir, a re-ligar, a articular o tecido comunitário. Há tantas vidas esparramadas, isoladas, rejeitadas... esperando por sinergia.

Na verdade, Ele provocou as pessoas a saírem de seu isolamento e padrões alienados de relacionamento para expandir-se em direção a uma nova forma relacional com tudo o que existe; tal relação é a concretização do sonho do “Reino de Deus”. 

O sentido da vida em comum é um dom de Deus, que nos foi dado a todos. O fundamento é que Deus Criador é Amor Trinitário, é comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Como criaturas, fomos atingidos pela marca trinitária de Deus. Como homem e como mulher, trazemos esta força interior que nos faz “sair de nós mesmos”  e criar laços, fortalecer a comunhão... 

O ser humano não é feito para viver só; ele necessita con-viver, viver-com-os-outros; ele é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas: estabelece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós: a comunidade. 

O termo comunidade faz referência a algo “comum”. É aquilo cujo modo de ser é comum. A palavra “comum” vem do latim, “communis”, palavra composta de “com/cum” e “munis”. “Com/cum” significa: com, junto com, um ao lado do outro, unido, junto. “Munis” significa: disposto a, pronto, preparado para o serviço. O “múnus” é, portanto, o melhor de nós mesmos, o que de mais nobre e precioso brota de nossa interioridade e que compartilhamos quando vivemos uma sadia relação com os outros.

Estar juntos, unidos nessa partilha do melhor de nós mesmos, da maturidade e do crescimento, da autoridade e da identidade pessoal é ser “comum”. Nisso se expressa a comunidade.

No Evangelho proposto para esta liturgia, encanta-nos a delicadeza de Jesus, causa-nos impacto sua fina e delicada pedagogia, afeta-nos sua sensibilidade em salvar a dignidade do pecador e não delatá-lo publicamente. Jesus rejeita sempre o pecado, mas empenha todos os seus esforços por salvar sempre a dignidade, a honra e a estima do pecador. Por isso, o evangelho nos indica todo um processo de relação reconstrutora com aquele que falha e cai no erro: a atitude básica, fundamento de toda relação na verdade, é acreditar que “o outro” busca claramente o bem, e, se existe o erro, é por engano, suposta sua absoluta boa vontade. 

Tal atitude desmascara o preconceito e esvazia a predisposição de julgar e de condenar sem conhecer e sem dar ao outro uma nova possibilidade. Segundo a afirmação de Jesus, o preconceito, a consciência julgadora, o juízo rápido, são incompatíveis com o bom senso evangélico, a liberdade, e o espírito de discernimento exigido. 

O “bom seguidor” é aquele que vive segundo o bom senso de seu Mestre e Senhor, vencendo os impulsos da consciência julgadora e ativando a atitude inaugurada por Ele, de ouvir, compreender e amar o outro na sua fragilidade. Todos somos “santos e pecadores” e é enquanto pecadores que somos chamados a ser presença que corrige com amor. 

A “correção fraterna” é gesto humilde que não humilha, porque é discreto e silencioso. Corrigir com amor não significa pôr o outro de joelhos para que reconheça as suas faltas; ele nasce de um coração “educado” pela Misericórdia divina e se manifesta externamente com uma atitude mansa e condescendente. Esse Amor é uma força poderosa, não se rende diante do mal, porque é sempre capaz de redescobrir o bem ou de salvar a intenção do outro, de ativar novamente a esperança... 

A correção fraterna é mais um estilo de vida que um ato ligado a uma transgressão. É um modo de pôr-se diante do outro e de sua fraqueza, mas que não se realiza exclusivamente depois da queda; antes, pode às vezes impedir essa queda porque é um estilo de bondade, compreensão, magnanimidade, estilo de quem não presta atenção ao que o outro merece nem se escandaliza com sua miséria. "Devemos corrigir como pecadores”,  não como “justos”.

A pessoa misericordiosa salva e redime só enquanto ama: quer o bem do outro e se entristece com seu mal, sente o dever de fazer alguma coisa por ele. Trata-se da motivação mais nobre e verdadeira de sentir-se responsável pelo outro. 

Sua correção é fundamentalmente uma mensagem de estima e confiança no outro, crer na sua amabilidade. Quem corrige está convencido de que o irmão é melhor que aquilo que aparentava.

Por isso, a correção é aquela energia escondida nas palavras de Jesus:

           “Vai e não peques mais”.  Força que cria aquilo que diz. 

O cristianismo é tão revolucionário que exige do ser humano não apenas a grandeza de compreender e desculpar o ofensor, mas a capacidade de amá-lo. Corrigir é ter esperança no ofensor, acreditar em sua humanidade, oculta sob a sua fragilidade. O ser humano é muito mais que um ato e uma decisão. É reconhecer sua liberdade de ser, de iniciar uma nova possibilidade para sua existência e de reiniciar-se a si mesmo.

No momento da correção fraterna, que é um momento de parto e de libertação, dá-se ao outro o direito de “ser um outro”, não o aprisionando numa única possibilidade de ação e de decisão. Enfim, a correção é uma atitude de vida que exige redefinição do outro (contemplá-lo sob outro prisma). É enxergar no outro não o mal que fez, mas sua verdadeira identidade de filho de Deus. Correção expansiva, que abre futuro; faz emergir outros recursos latentes na pessoa; é impulso de vida, destrava e coloca a pessoa em movimento, impulsionando-a a ir além de si mesma. 

Texto bíblico:  Mt 18,15-20 

Na oração: A Graça é o mais profundo em nós, e para revelar sua força, ela nos atravessa por inteiro, demolindo e reconstruindo, ferindo e sarando. A Graça constrói sobre a natureza, e pode elevá-la.

Deus vem ao nosso encontro em nossas carências e fraquezas; Ele nos procura através de nossas falhas, de nossas feridas, de nossas limitações... Deus serve-se de nossos pecados para abraçar-nos carinhosamente.

Nesta perspectiva, ser carente e limitado é o espaço onde Deus atua e revela seu rosto misericordioso.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI