“Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito...” (Jo 3,16)

 

Diante do mistério da “exaltação da Santa Cruz”, o mistério do “esvaziamento” e “descida” do Verbo de Deus até as últimas consequências, muitos questionamentos brotam naturalmente:

- O ser humano pós-moderno, que absolutiza o bem estar, o prazer, o consumo, pode ainda encontrar,

   na contemplação de um Crucificado, a chave para entender sua própria vida?

- Quê sentido tem um Deus que se esvazia de suas prerrogativas e “desce”, deixando-se encontrar entre

   os últimos e excluídos?

- a Cruz é sinal de solidariedade ou sinal de impotência, sinal de libertação ou sinal de opressão, sinal de rebeldia ou sinal de submissão, sinal dos vencidos ou sinal dos vencedores...?

A Cruz é um produto terrível da maldade, se a encaramos da perspectiva humana; e é manifestação do amor levado até as últimas consequências, se a olhamos da perspectiva de Deus. 

A festa da “exaltação da Santa Cruz”  nos desvela o verdadeiro rosto do Deus de Jesus:  rosto feito de amor e não de ira; de vulnerabilidade e não de distancia; de perdão e não de castigo; de benção e não de maldição. 

A primeira coisa que descobrimos ao contemplar a Cruz é a força destruidora do mal, a crueldade do ódio e o fanatismo da mentira. Mas é precisamente aí que nós, seguidores de Jesus, vemos o Deus identificado com todas as vítimas de todos os tempos. Está na Cruz do Calvário e está em todas as cruzes onde sofrem e morrem os mais inocentes. A partir da Cruz, Deus não responde o mal com o mal; Ele não é o Deus justiceiro, ressentido e vingativo, pois prefere ser vítima de suas criaturas antes que verdugo. 

A Cruz e o Crucificado nos revelam que não existe, nem existirá nunca um Deus frio, insensível e indiferente, mas um Deus que padece conosco, sofre nossos sofrimentos e morre nossa morte. Despojado de todo poder dominador, de toda beleza estética, de todo êxito político e de toda auréola religiosa, Deus se revela a nós, no mais puro e insondável de seu mistério, como amor e somente amor.

Nós cristãos contemplamos o Crucificado para não esquecer nunca o “amor louco” de Deus para com a humanidade e para manter viva a recordação de todos os crucificados da história. Tudo está atravessado pelo dinamismo vivificante do Amor de Deus que transpareceu em Jesus com seu amor até o fim. O seu Amor é um Amor que em sua fidelidade sofrida nos sustenta e conforta em nossas noites. 

De fato, a Redenção está na Luz e não na cruz. Esta – com minúscula – foi imposta pelos carrascos e, de nenhum modo, foi querida ou imposta pelo Pai, como expiação. Só podemos escrever Cruz – com maiúscula – quando ela se converte em Luz, deixa de ser ensanguentado patíbulo para se revelar como progressivo Caminho de salvação. O Deus dos cristãos se fez humano para indicar-nos o Caminho da Luz, ou seja, da humanização da pessoa e do mundo.

Abraçar e dar sentido à Cruz supõe uma real e firme adesão aos valores pelos quais o Crucificado preferiu morrer a desertar e trair. Está aí uma multidão de mártires para comprovar isso. A Cruz é a revelação da “escada de luz” que o Filho desceu até o fundo do poço da degradação na qual o ser humano estava (e está) metido. Só se regenera e se salva quem se empenha em subir por essa escada, vivendo os valores que o Crucificado viveu. Nem sacrifícios, nem méritos, nem pagamentos. Puro amor gratuito de um Deus que é Amor! 

“Deus amou tanto o mundo...” O mistério da Santa Cruz nos sensibiliza e nos capacita para aproximar-nos do nosso mundo com uma visão mais contemplativa. Em outras palavras, a contemplação da Cruz ativa em nós uma maneira contemplativa de viver no meio do mundo para rastrear a presença de Deus, oculto nos lugares da fragilidade. O “subir” até Deus passa pelo “descer” até às profundezas da humanidade. 

O seguidor de Jesus oscila entre o mundo e Deus. É tão familiar com Deus que admira a variedade e a multiplicidade do mundo, e não teme o mundo com toda a sua complexidade. E é tão familiar com o mundo que sente o Espírito de Deus, que trabalha no mundo, em todos os lugares e da maneira mais inesperada. 

Em Jesus cristo fica claro, de uma vez para sempre, que Deus é do mundo e o mundo é de Deus. “Meu solo e o solo de Deus são o mesmo solo” (Mestre Eckhart). A terra já não é um vale de lágrimas mas o lugar onde Deus armou sua tenda. A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo, entra em comunhão com a realidade tal como ela é. É olhar o mundo como “sacramento de Deus”. Um olhar capaz de descobrir os sinais de esperança que existem no mundo; um olhar afetivo, marcado pela ternura, pela compaixão e por isso gerador de misericórdia; um olhar que compromete solidariamente. 

Na Cruz de Jesus, portanto, nos é oferecida uma nova forma de sentir o mundo: “tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus”. O madeiro onde Jesus de Nazaré morreu não é belo aos olhos humanos, não gratifica nossos sentidos; não é a marca de um “país católico”, nem a divisa da cristandade... É e será sempre fonte origem de um novo modo possível de ver e ouvir o mundo, de olhar quem somos e como é Deus. 

A Cruz, com seu mistério fascinante e tremendo, com seu mistério sempre maior, não só é fonte de salvação eterna, mas princípio de uma nova sensibilidade para um novo modo de se fazer presente neste mundo. 

Não podemos venerar a Cruz e adorar o Crucificado vivendo de costas ao sofrimento de tantos seres humanos destruídos pela fome, miséria e exclusão. Se ao contemplar o rosto do Crucificado nos esquecemos das vítimas, seja qual for sua raça, cultura ou religião, então é que nosso olhar não é o olhar da fé. Segundo Jon Sobrino, a fé no Crucificado implica em fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela. 

Na Cruz, Jesus Cristo “desceu” ao nível mais baixo da condição humana, de maneira que todo aqueles que caírem, caiam n’Ele. Associar-nos ao Cristo em sua “descida”  para “subir” com Ele significa, também, arrancar de nosso próprio coração a cumplicidade com todo tipo de morte e deixar-nos possuir pela glória de Deus. “Descer” com Ele para aquilo que também está morto em nós (no nível corporal, afetivo, espiritual, social). A luz da presença de Cristo ilumina tudo o que é sombrio em nosso interior. Ali estão presentes germes de vida que ainda não tiveram possibilidade de irromper e crescer. 

Texto bíblico:  Jo 3,13-17 

Na oração: quando levantamos nossos olhos até o rosto do Crucificado, contemplamos o Amor insondável de Deus; se O contemplamos mais atentamente, logo descobriremos nesse Rosto o rosto de tantos outros crucificados, longe ou perto de nós, reclamando nosso amor solidário e compassivo.

- Diante do Crucificado, trazer à memoria os crucificados de hoje: isto nos afeta? nos deixa inquietos? nos incomoda?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana –CEI