“Fiquei com medo e escondi o teu talento no chão; aqui tens o que te pertence” (Mt 25,25) 

 

“Ter talento” é, entre nós, uma expressão popular tão frequente que é equiparada a “ser inteligente”. De fato, normalmente uma pessoa inteligente ou brilhante é designada como uma pessoa “talentosa”. 

A parábola dos talentos, lida em chave “religiosa”, pode dar margem a uma apologia do mérito e da recompensa, alimentando uma atitude oposta àquela pretendida por Jesus.Partindo dessa visão, o esquema básico, ao estabelecer a relação com Deus, se apoiaria em três pilares: dom-exigências-recompensa. Percebe-se facilmente que esse esquema revela uma relação mercantilista com Deus. Essa maneira de viver a religião conduziu a desvios graves como a autojustificação beata ou a angústia culpabilizadora, onde a pessoa religiosa chega a ter a sensação de viver uma relação com Deus marcada por uma  chantagem afetiva de impossível saída. 

No entanto, a mensagem e a própria prática de Jesus jogam por terra este esquema. Não é o mérito ou a recompensa que constitui o núcleo da mensagem de Jesus, mas a gratuidade.. Tudo é dom, Deus mesmo é Graça que rompe nossas supostas barreiras de méritos e de “dignidade”. Como ler, então, esta parábola quando ela insiste explicitamente na obrigatoriedade de “fazer produzir”  o dom recebido? 

Em primeiro lugar, não podemos esquecer  que o que a parábola pretende transmitir não pode ir nunca contra algo que para Jesus era prioritário: a gratuidade misericordiosa de Deus. Um Deus que “ama os maus e ingratos” (Lc 6,35), que abraça o “filho pródigo” e organiza uma festa para ele, sem nenhum tipo de condição (Lc 15,20-24), que é “amigo dos publicanos e pecadores” (Mt 11,19)..., não pode se identificar com o senhor da parábola que exige até o último centavo e castiga a quem não apresenta méritos. Tirar daquele que tem pouco para dar ao que tem mais, tomado ao pé da letra, seria uma atitude imprópria do Deus de Jesus. No fundo, Jesus também está denunciando a falsa imagem de Deus dos fariseus, ou seja, Aquele que recompensa quem observar estritamente todas as leis e preceitos. 

Na parábola dos Talentos, Jesus, mais uma fez, nos fascina e provoca, abordando a temática do medo. Na realidade, a raiz do comportamento do terceiro empregado é mais profunda: ele tem uma imagem falsa do senhor. Imagina-o severo, egoísta, injusto e arbitrário; é exigente e não admite erros; não se pode confiar nele. O melhor é defender-se dele. 

Esta ideia mesquinha de seu senhor o paralisa. Não se atreve a correr risco algum. O medo o bloqueou. Não é libre para responder de maneira criativa à responsabilidade que lhe foi confiada. O mais seguro é “conservar” o talento. Quer proteger o pouco que recebeu, não ousa e tenta evitar uma perda total. Quando não se vive a fé cristã a partir da confiança mas do medo, tudo se desvirtua. A fé se conserva mas não se contagia; a religião se converte em dever; o Evangelho é substituído pela observância; a celebração fica dominada pela preocupação ritual; a oração torna-se um monólogo culpabilizante; a comunidade revela-se “pesada”... 

Em outras palavras, a “parábola dos talentos” não tem por finalidade dizer-nos como é Deus, mas seu objetivo é despertar-nos da apatia e superar o medo que nos mantém paralisados. Nesse sentido, trata-se realmente de uma narração sábia e estimulante. 

Os talentos – sejam cinco, dois ou um: em qualquer caso, uma riqueza fabulosa – representam a riqueza que somos, da qual geralmente conhecemos apenas uma mínima parte. A parábola vem nos dizer: “tens uma riqueza, és um tesouro de valor incalculável..., não tenhas medo nem te ‘enterres’ na mediocridade ou superficialidade. Atreva-se a viver tudo o que és! Seja ousado e saia da ‘normose’”!

A primeira atitude nossa, portanto, é descobrir essa realidade interior; devemos retornar ao nosso “eu profundo” para poder destravar e ativar todas as nossas ricas possibilidades, ainda latentes.  Renunciamos a viver quando nos reduzimos ao pequeno e limitado mundo de nosso ego, fechando-nos nele e em seus interesses mesquinhos, ignorando a verdade de quem somos. Esta ignorância faz com que esqueçamos a riqueza que somos. Os talentos de que fala o evangelho, são as realidades que nos fazem  ser mais humanos. E ser mais humano significa amar mais, servindo mais. 

Na medida que vamos nos abrindo à nossa verdade interior e tendo acesso ao nosso verdadeiro tesouro, experimentamos a alegria de poder participar da festa do Senhor, não como um “prêmio” ou recompensa pelos méritos do “eu” (isto seria farisaísmo), mas porque nossa verdade coincide com essa mesma alegria do Senhor: uma e outra são a Plenitude desejada. 

Pelo contrário, quando nos fechamos no ego, o que ali aparece é “pranto e ranger de dentes”, ou seja, sofrimento inútil e lamento constante, que não são um “castigo” proveniente de um Deus irado ou ofendido com nosso comportamento, mas consequência direta de ignorar a verdade de quem somos. Não esqueçamos que ego é sinônimo de ignorância, confusão e sofrimento. 

O Mestre Jesus, com esta parábola, quer dizer a cada um de nós: “se você tiver uma imagem de Deus tão marcada pelo medo, sua vida será, já agora, choro e ranger de dentes. Se você quiser controlar tudo, perderá, já agora, qualquer controle sobre sua vida. Se você estiver tão obstinado em não cometer nenhum erro, errará em tudo”. 

O método que Jesus aplica nessa parábola é demonstrar o absurdo do padrão de comportamento de controle temeroso e tentativa de domínio absoluto sobre a própria vida, atrofiando a ousadia e a criatividade, tão próprias do ser humano. 

Toda parábola dá margem a outras releituras. Por exemplo, poderíamos perguntar porquê a parábola não contemplou uma terceira possibilidade, ou seja, o empregado negocia seus talentos com a melhor boa vontade, mas perde todo o dinheiro. Gostaríamos de saber o que o senhor teria feito com ele.  Seguramente que a resposta não teria sido a condenação. A parábola indica muito mais que aquilo que se valoriza não são os resultados, mas a atitude de busca e a confiança que os empregados tem para com o seu senhor e para com eles mesmos. 

Finalmente, é também muito interessante constatar que, tanto aquele que negocia com cinco, como aquele que negocia dom dois, recebem exatamente o mesmo premio. Isto indica que em nenhum caso se trata de comparar resultados do trabalho, mas a atitude dos empregados. 

Texto Bíblico:  Mt 25,14-30 

Na oração: dar nomes aos medos que estão paralisando sua vida, impedindo-o de viver com mais ousadia e criatividade.

- Quem é o “Deus”  em quem você crê? É o “deus da lei”, o “deus do mérito”, o “deus” que cobra até o último centavo... ou o “Deus de Jesus”: Pai e Mãe, fonte de misericórdia e compaixão?

- A fé e a confiança em Deus possibilitam ter acesso às suas riquezas interiores e expandi-las? 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI