Van Gogh

 “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o com-portamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém”.

(Papa Francisco – Misericordiae Vultus) 

Os relatos evangélicos destacam que a atuação de Jesus está sempre inspirada, motivada e impulsionada pela misericórdia para com todo ser humano. É a misericórdia a que explica e define Sua maneira de ser e de atuar. O sofrimento das pessoas comove suas entranhas, penetra até o fundo de seu ser e se converte em seu princípio de ação transformadora. 

O importante é entender que esta misericórdia não é um sentimento a mais, mas a reação básica de Jesus, que dirige e configura toda sua atuação. Não vem motivada por interesse algum. É amor gratuito que brota de sua profunda sintonia com o mistério insondável de Deus Pai-Mãe, fonte de misericórdia. 

A partir desta misericórdia entende-se todo seu compromisso em aliviar o sofrimento humano. Esta presença misericordiosa de Jesus está presente, de maneira contundente, na parábola do “bom samaritano”, onde o próprio Jesus “pinta” seu auto-retrato.

Jesus, o grande samaritano, se aproxima de todos e de cada um de nós para curar as nossas feridas e derramar sobre elas o óleo da sua consolação e o vinho da sua força; Ele se ocupa de nossas fragilidades, nos convida a ir com Ele aos lugares onde a vida está mais em perigo e a confiar na força secreta da compaixão e da esperança teimosa. 

Com justiça, os padres da Igreja gostavam de destacar que o primeiro grande Samaritano fora o Filho de Deus feito homem. Ele, em primeiro lugar, se deteve misericordiosamente junto a nós pecadores, descendo de sua “cavalgadura” e fazendo-se nosso companheiro de viagem. 

Na parábola, o samaritano se sentiu impactado, se deixou afetar, seu coração se estremeceu..., ao “olhar um corpo estendido no chão”. A partir desse momento, ele “desvia” do seu caminho e se desloca em direção àquele de quem todos se desviavam e “passavam do outro lado”. Gasta do que é seu, dedica tempo, mobiliza toda sua atenção frente ao ferido. Mistura sua vida com a de um necessitado e rompe solidões. Muda seu esquema de vida e se deixa levar pela misericórdia criativa. 

Dito de outra maneira: o samaritano começa a viver novos registros do que são a solidariedade, o amor e a liberdade. Seu coração tocado pela compaixão o anima a modelar a vida em prol dos outros.

Quando acolhemos a realidade e nenhuma venda nos impede ver o sofrimento do outro, a reação imediata é a compaixão. A compaixão samaritana não se reduz a um mero sentimento empático; inclui, além disso, a ação por aliviar o sofrimento do outro e o risco de compartilhar seu destino. 

Em pouco mais de uma linha, o evangelista Lucas, na parábola do Bom Samaritano, ajunta uma infinidade de ações: o samaritano se compadece, se aproxima, enfaixa suas feridas, coloca-o em seu próprio animal, o conduz à hospedaria e o cuida. 

Compadecer-se, aproximar-se, curar, levar, cuidar... tecem a rede de ações que definem a ajuda samaritana, diferenciando-a de propostas meramente retóricas, modelos assistencialistas e ajudas estruturais desencarnadas.

A compaixão derruba as diferenças que podem dar-se na relação ajudador-ajudado. Compadecido e compadecedor se sabem igualmente vulneráveis. A compaixão prevê reciprocidade e move a descer em direção ao outro: “hoje por ti, amanhã por mim”. 

A compaixão nos coloca ao lado das vítimas e, a partir daí, nos ajuda a ler o drama interno da história em termos de injustiça, desigualdade e opressão. A compaixão pergunta pelos desajustes estruturais que estão por detrás de cada desgraça. Por que nas catástrofes naturais o número de mortos costuma ser inversamente proporcional ao PIB per capita? Quê “grau de escala Richter de desgraça” é necessário para provocar um sismo em nosso interior e despertar o “samaritano” ali presente? 

O ícone do “bom samaritano” apresenta o próximo “em situação”, o próximo concreto, histórico, que interpela e compromete cada um em escolhas decisivas, em relação às quais se demonstra se é ou não “próximo” do necessitado. O “próximo” não é somente o outro para mim, mas eu para o outro. 

O “próximo”, no sentido expresso pela parábola, não pode nos deixar indiferentes; provoca uma resposta, compromete em uma ternura concreta, oblativa, capaz de risco, para socorrer o ferido. Mais ainda, o encontro com este ícone da ternura desperta dentro de nós o samaritano que permanece “adormecido”. Somente a Misericórdia de Deus, que revela seu Rosto no rosto de tanta exclusão, violência e sofrimento, é capaz de despertar o “samaritano” que todos carregamos. 

Isso implica em abandonar a estreiteza de nossos projetos e deixar o nosso coração bater no ritmo dos sofredores e excluídos, vítimas da desumanização de nossa sociedade. O “bom samaritano” é todo aquele que se detém ao lado do sofrimento de outra pessoa, quem quer que seja. Não deve, porém, ser uma parada curiosa, estéril, inútil ou escandalosa, mas de comoção, compaixão, disponibilidade, ajuda concreta. É doação de si mesmo. 

Felizes de nós se deixarmos afetar pela mobilização do samaritano! 

Diante da presença do homem semi-morto, o sacerdote e o levita dão a volta; o samaritano se aproxima. Dois itinerários que determinarão não só a sorte da vítima, mas também a dos viajantes. Os dois primeiros, recusando seu auxílio, revelam sua desumanidade, com a desculpa de manter sua pureza religiosa. O samaritano é um exemplo de humanidade, mesmo com o risco de tornar-se “impuro”.

Muitas das ações samaritanas nos colocam em situações de aperto: aproximar-nos até ficar “impuros”. O compromisso samaritano passa por “manchar-se”, exige tomar partido pelos últimos, arriscar-se a perder subvenções, expor-se a ter o nome na ficha policial. Em suma, ficar “impuro” perante os olhos da “religião oficial” do Estado. 

A parábola ainda nos faz cair na conta do profundo valor simbólico que se esconde por detrás do simples ato do samaritano de fazer o ferido montar sobre sua própria cavalgadura. O samaritano conduz o animal para a pousada como um servo conduz seu senhor. A distinção entre aquele que monta e aquele que conduz o animal é muito forte, ainda hoje, no mundo oriental. 

Desejar que outro mundo é possível a partir das vítimas, significa pôr-se a seu serviço, descer de nossa cavalgadura e ser presença compassiva junto a elas. São elas as que deveriam marcar nossos modos de vida, nossos consumos, nossas políticas. E para isso é preciso começar por escutar o quê dizem, o quê esperam, por quê lutam, o quê temem?... 

Não é fácil escutar a voz das vítimas, a maioria das vezes a encobrimos com tranqüilizadores discursos românticos que convertem a pobreza em um lugar idílico de solidariedade espontânea. Ser samaritano é um estilo de vida. 

Texto bíblico:   Lc 10,25-37 

Na oração: O evangelista Lucas não deixa dúvida: todos os personagens da parábola “vêem” o homem ferido à beira da estrada.

Adentremo-nos no movimento de olhares proposto pela parábola do bom samaritano, para descobrir as atitudes básicas dos personagens e que nos levam a nos aproximar da realidade tal qual ela é, e a nos comprometer com um “outro mundo possível”. 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Itaici-SP