«Na minha comunidade
Senhor ajuda-me a amar,
ser como o fio
de um vestido.
Ele mantém unidas
as várias peças
e ninguém o vê senão o alfaiate
que lá o colocou.
Tu Senhor meu alfaiate,
alfaiate da comunidade,
faz-me capaz de
estar no mundo
servindo humildemente,
porque se o fio se vê é porque
tudo saiu mal.
Faz-me amar nesta tua Igreja, porque
é o amor que mantém
juntas as várias peças.»
Madeleine Delbrêl, O fio do vestido
Senhor, dai-me a inocência dos animais
Para que eu possa beber nesta manhã
A harmonia e a força das coisas naturais.
Apagai a máscara vazia e vã
De humanidade,
Apagai a vaidade,
Para que eu me perca e me dissolva
Na perfeição da manhã
E para que o vento me devolva
A parte de mim que vive
À beira dum jardim que só eu tive.
Sophia de Mello Breyner Andresen
imagem: pexels.com
IN MEMORIAM
Esses mortos difíceis
que não acabam de morrer
dentro de nós; o sorriso
de fotografia,
a carícia suspensa, as folhas
dos estios persistindo
na poeira; difíceis;
o suor dos cavalos, o sorriso,
como já disse, nos lábios,
nas folhas dos livros;
não acabam de morrer;
tão difíceis, os amigos.
Eugenio de Andrade
De Ofício de Paciência (1994)
Imagem: pexels.com
Lapinha
254
“Esperança” é a coisa com plumas —
Que na alma se aninha —
Seu canto não tem palavras —
Sempre a mesma — ladainha —
Soa bem — na ventania —
E só a forte tormenta —
Há de calar a Passarinha
Que a tantos acalenta —
Ouvi-a na terra mais fria —
E no estranho Mar sem fim —
Mas — nem em situações extremas
Pediu migalhas — pra Mim.
Emily Dickinson
Todos os poemas:
in Poesia Completa – Volume I: Os Fascículos
Tradução, notas e posfácio: Adalberto Müller
Prefácio à edição brasileira: Cristanne Miller
Editora UnB, Brasília, 2020
Nós nos abraçamos.
Eu toco em tecido rico
Você em tecido pobre.
O abraço é ligeiro
Você vai para um almoço
Atrás de mim estão os carrascos.
Falamos do tempo e de nossa
Permanente amizade. Todo o resto
Seria amargo demais.
Autor: Bertolt Brecht (1898-1956)
ORIGAMI
nem sempre somos
o que queremos ser.
um dia,
pássaros.
um dia,
papel amassado
no chão.
[somos as dobraduras da vida]
Marina Rabelo
• in Das Coisas Que Larguei na Calçada
Com ilustrações de Augusto B. Medeiros
Caravela Selo Cultural, Natal, 2016
Imagem: pexels.com
Jesus, meu despertador
O tempo se cumpriu,
Arrependa-se do seu descanso,
Levante-se da cama
E carregue com você
Seu sono e sonhos mais profundos.
Siga-me, por enquanto, para o banheiro.
Lave seu rosto
Para que outros possam ver
Nele a Minha face.
Limpe seus ouvidos
Para que possas escutar dos outros
A música de Minha vontade.
Escove seus dentes
Para que possas falar para outros,
Sem as cáries de seus pecados, as Minhas palavras.
Pense com Minha mente
Para que a primeira oração
A nascer de seus lentos lábios, coração e mente
Seja somente Meu único desejo:
Amo, conheço e sirvo
A Deus, o próximo inteiramente.
Acorde, com um propósito,
E apenas um propósito:
O Reino de Deus está próximo,
O Reino de Deus está no próximo
Acorde, com um motivo,
E apenas um motivo:
Você acredita profundamente no Evangelho,
O mundo necessita profundamente do Evangelho
Eu Sou
O despertador de Deus
Para o mundo adormecido
Que acorda sempre
Lentamente
Teu despertador, Jesus
Michael Martinez SJ
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
Manoel Bandeira
VIAGEM NO TEMPO
Percorro a casa. Os claros
espaços dos antepassados.
As vigas. Os caibros. As telhas.
As vértebras das teias
de aranha. Por aqui
as serpentes dos pântanos
deixaram fragmentos
de astúcia e morfina.
Vestígios de borboletas
mortas vivem nas gavetas.
Dos ponteiros do relógio
pingam as gotas das horas.
Por todos os cantos
da casa a memória sangra.
Francisco Carvalho
in Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos
Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004
Estou sempre nos limiares:
sou sempre esta pausa antes
do início de uma canção,
sou um momento de espera,
quase um fim de solidão.
Sou margem de caminho para a morte,
gesto que pressente atrás do véu:
promessa de chuvas sob o céu,
e vôo que antes de partir
repousa...
- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.
CARESTIA
Amor custa bem caro.
Mesmo assim depenamos bolsos
e bolsas de moedas raras.
Por ele pagamos, em prestações
nem sempre suaves, quanto
de entrada supúnhamos
de todo não poder:
o alto preço dos sustos
a conta escorchante
das noites em claro
os juros extorsivos
do medo de perdê-lo
a tristeza do saldo zero.
Queixamo-nos de carestia
se de amor-próprio ainda
nos sobra algum trocado,
mas que fazer quando só
amor é o lucro que buscamos?
Astrid Cabral
in Coração à Solta 2ª ed.
Prefácio de Alexei Bueno
Kade, Maricá-RJ, 2021
Imagem: pexels.com/matheus martelli
Amor como tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpagos e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.
Astrid Cabral
in Coração à Solta 2ª ed.
Prefácio de Alexei Bueno
Kade, Maricá-RJ, 2021
imagem: pexels.com
O BICHO
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Manuel Bandeira
Rio, 27 de dezembro de 1947
Do livro Belo Belo (1948)
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