Alguém que seja abrigo. Alguém que seja porto seguro. Onde (re)pousar no final de tudo. E no início. E sempre.
Alguém que seja abraço. Alguém que seja aconchego do corpo, da alma, do coração.
Alguém que seja mão (que) segura. Alguém que seja âncora e força. Que acompanhe. Que fique. Sempre. Que não desenlace.
Alguém que seja sorriso. Alguém que seja a parte bonita do dia. Que faça sorrir. Mesmo até sem saber. Só porque toca o coração. Só porque abraça a alma.
Alguém que seja colo. Alguém que seja amparo, refúgio, cuidado. Que não deixe cair. Que serene. Que cure.
Alguém que seja casa. Alguém que seja ninho, lugar para onde voltar. Todos os dias. Conforto. Onde poder (de)morar.
Alguém que seja o lado bonito. Alguém que seja sol nos dias cinzentos, luz na escuridão, paz na tempestade.
Alguém que seja amor. Alguém que seja e que viva com o coração. Que saiba, e que mostre, que (só) o amor salva.
Alguém que seja abrigo. Por tudo e por tanto. Mesmo sem saber. Só por ser, por estar, por existir.
Que nunca nos falte.
Que nunca o deixemos faltar, também.
Daniela Barreira
In: imissio.net 20.03.23
Imagem: pexels.com/ Jangson Basumatary
«Na minha comunidade
Senhor ajuda-me a amar,
ser como o fio
de um vestido.
Ele mantém unidas
as várias peças
e ninguém o vê senão o alfaiate
que lá o colocou.
Tu Senhor meu alfaiate,
alfaiate da comunidade,
faz-me capaz de
estar no mundo
servindo humildemente,
porque se o fio se vê é porque
tudo saiu mal.
Faz-me amar nesta tua Igreja, porque
é o amor que mantém
juntas as várias peças.»
Madeleine Delbrêl, O fio do vestido
Senhor, dai-me a inocência dos animais
Para que eu possa beber nesta manhã
A harmonia e a força das coisas naturais.
Apagai a máscara vazia e vã
De humanidade,
Apagai a vaidade,
Para que eu me perca e me dissolva
Na perfeição da manhã
E para que o vento me devolva
A parte de mim que vive
À beira dum jardim que só eu tive.
Sophia de Mello Breyner Andresen
imagem: pexels.com
IN MEMORIAM
Esses mortos difíceis
que não acabam de morrer
dentro de nós; o sorriso
de fotografia,
a carícia suspensa, as folhas
dos estios persistindo
na poeira; difíceis;
o suor dos cavalos, o sorriso,
como já disse, nos lábios,
nas folhas dos livros;
não acabam de morrer;
tão difíceis, os amigos.
Eugenio de Andrade
De Ofício de Paciência (1994)
Imagem: pexels.com
Lapinha
254
“Esperança” é a coisa com plumas —
Que na alma se aninha —
Seu canto não tem palavras —
Sempre a mesma — ladainha —
Soa bem — na ventania —
E só a forte tormenta —
Há de calar a Passarinha
Que a tantos acalenta —
Ouvi-a na terra mais fria —
E no estranho Mar sem fim —
Mas — nem em situações extremas
Pediu migalhas — pra Mim.
Emily Dickinson
Todos os poemas:
in Poesia Completa – Volume I: Os Fascículos
Tradução, notas e posfácio: Adalberto Müller
Prefácio à edição brasileira: Cristanne Miller
Editora UnB, Brasília, 2020
Nós nos abraçamos.
Eu toco em tecido rico
Você em tecido pobre.
O abraço é ligeiro
Você vai para um almoço
Atrás de mim estão os carrascos.
Falamos do tempo e de nossa
Permanente amizade. Todo o resto
Seria amargo demais.
Autor: Bertolt Brecht (1898-1956)
ORIGAMI
nem sempre somos
o que queremos ser.
um dia,
pássaros.
um dia,
papel amassado
no chão.
[somos as dobraduras da vida]
Marina Rabelo
• in Das Coisas Que Larguei na Calçada
Com ilustrações de Augusto B. Medeiros
Caravela Selo Cultural, Natal, 2016
Imagem: pexels.com
Jesus, meu despertador
O tempo se cumpriu,
Arrependa-se do seu descanso,
Levante-se da cama
E carregue com você
Seu sono e sonhos mais profundos.
Siga-me, por enquanto, para o banheiro.
Lave seu rosto
Para que outros possam ver
Nele a Minha face.
Limpe seus ouvidos
Para que possas escutar dos outros
A música de Minha vontade.
Escove seus dentes
Para que possas falar para outros,
Sem as cáries de seus pecados, as Minhas palavras.
Pense com Minha mente
Para que a primeira oração
A nascer de seus lentos lábios, coração e mente
Seja somente Meu único desejo:
Amo, conheço e sirvo
A Deus, o próximo inteiramente.
Acorde, com um propósito,
E apenas um propósito:
O Reino de Deus está próximo,
O Reino de Deus está no próximo
Acorde, com um motivo,
E apenas um motivo:
Você acredita profundamente no Evangelho,
O mundo necessita profundamente do Evangelho
Eu Sou
O despertador de Deus
Para o mundo adormecido
Que acorda sempre
Lentamente
Teu despertador, Jesus
Michael Martinez SJ
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
Manoel Bandeira
VIAGEM NO TEMPO
Percorro a casa. Os claros
espaços dos antepassados.
As vigas. Os caibros. As telhas.
As vértebras das teias
de aranha. Por aqui
as serpentes dos pântanos
deixaram fragmentos
de astúcia e morfina.
Vestígios de borboletas
mortas vivem nas gavetas.
Dos ponteiros do relógio
pingam as gotas das horas.
Por todos os cantos
da casa a memória sangra.
Francisco Carvalho
in Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos
Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004
Estou sempre nos limiares:
sou sempre esta pausa antes
do início de uma canção,
sou um momento de espera,
quase um fim de solidão.
Sou margem de caminho para a morte,
gesto que pressente atrás do véu:
promessa de chuvas sob o céu,
e vôo que antes de partir
repousa...
- Lya Luft,
em "Mulher no palco", 1984.
CARESTIA
Amor custa bem caro.
Mesmo assim depenamos bolsos
e bolsas de moedas raras.
Por ele pagamos, em prestações
nem sempre suaves, quanto
de entrada supúnhamos
de todo não poder:
o alto preço dos sustos
a conta escorchante
das noites em claro
os juros extorsivos
do medo de perdê-lo
a tristeza do saldo zero.
Queixamo-nos de carestia
se de amor-próprio ainda
nos sobra algum trocado,
mas que fazer quando só
amor é o lucro que buscamos?
Astrid Cabral
in Coração à Solta 2ª ed.
Prefácio de Alexei Bueno
Kade, Maricá-RJ, 2021
Imagem: pexels.com/matheus martelli
Amor como tremor de terra
abalando montanhas e minérios
nas entranhas da minha carne.
Amor como relâmpagos e sóis
inaugurando auroras
ou ateando faíscas e incêndios
nas trevas da minha noite.
Amor como açudes sangrando
ou caudais e tempestades
despencando dilúvios.
E não me falem de ruínas
nem de cinzas, nem de lama.
Astrid Cabral
in Coração à Solta 2ª ed.
Prefácio de Alexei Bueno
Kade, Maricá-RJ, 2021
imagem: pexels.com
Página 2 de 9