“Chamou uma criança, colocou-a no meio deles, e abraçando-a...” (Mc 9,36)
O relato evangélico deste domingo (25o do TC) nos situa no começo do caminho que levará Jesus a Jerusalém. Neste momento de sua vida, ele tem consciência que as forças que se opõem à sua proposta de vida são muito fortes e não vão desistir em seu objetivo de esvaziar tal iniciativa. Jesus sente que sua vida começa a estar em perigo, mas não vai ceder em seu empenho por revelar e oferecer o amor e a justiça bondosa de Deus aos pequenos desta terra.
Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.
Ele se deu conta de que avançar em seu projeto lhe custaria a vida. Em sua instrução ao grupo de seguidores, antecipa que o poder condená-lo-á à morte. Revela, portanto, o fato de “perder a vida” como conseqüência inevitável por viver a coerência evangélica até o extremo. As circunstâncias mostravam, com evidência, que a hostilidade do poder para com Jesus se intensificava. Por isso, começa a prevenir seus seguidores de que sua prática em favor da justiça implicava um enorme risco.
Os evangelistas sinóticos expressam esta consciência de Jesus através dos anúncios da paixão. Eles revelam que Jesus é realista ao explicitar as consequências de suas opões. Esta consciência o leva a dedicar-se com mais intensidade na formação de sua comunidade de seguidores para fortalecer suas certezas e opções e, no caso de que Ele morra, possa seguir adiante, comprometidos com a causa do Reino.
Marcos expressa com claridade que os discípulos não captam a força das palavras de Jesus e tem medo de que todas as suas expectativas venham abaixo e se obscureça o horizonte que os tinha seduzido pelos caminhos da Galiléia. Eles estão longe de compreender os critérios do Reino e continuam apegados a seus ideais de êxito e poder.
Ao chegar em casa, em Cafarnaum, Jesus reúne os doze para questionar suas pretensões de poder e honra. Mais uma vez, o profeta da Galiléia quebra as expectativas de seus discípulos e lhes propõe como critério de grandeza o serviço, e como critério de honra o cuidado dos pequenos e frágeis. Sua nova comunidade não pode se pautar pela busca do prestígio, do poder, da imposição, do mando...
Deste modo, Jesus coloca o serviço e a gratuidade em um lugar central nas relações dentro da nova comunidade. Com sua típica linguagem provocadora, Ele nos ensina a imaginar um mundo diferente. A partir de sua original experiência de Deus, situa tudo em outro horizonte, descobre novas possibilidades e introduz uma lógica alternativa, a da gratuidade, do esvaziamento do próprio interesse e de um deslocamento em direção aos últimos e mais frágeis.
Há algo na identidade de Jesus que chama a atenção de todos nós: sua liberdade diante de toda expressão de poder, seja no campo religioso, social e nas relações entre as pessoas. Ele tem consciência que a busca de “poder” é o pecado de morte, pois onde impera o poder ali se visibilizam toda manifestação de violência, competição, ruptura das relações, desmandos... Para o Mestre de Nazaré, nenhum poder, muito menos o religioso, pode ser mediação de salvação e de libertação do ser humano.
Jesus compreendeu perfeitamente que a opressão mais forte, sofrida por seu povo, não era só a opressão política e econômica de Roma, mas a opressão religiosa dos dirigentes e líderes de Israel. Estes estavam dispostos a tudo para continuar exercendo um poder ao qual não desejavam renunciar.
De fato, havia uma estrutura social, política, econômica, ideológica, religiosa... resistente e fechada a qualquer plano que colocasse em perigo sua continuidade. Tal sistema respondia com hostilidade porque detectava o perigo que Jesus e sua proposta de vida representavam para ele.
Constata-se, então, o "escândalo" que a palavra e o modo de agir de Jesus provocavam em torno dele; tal escândalo procedia da sua extraordinária "autoridade". Esta expressão, presente nos evangelhos, não é fácil de ser traduzida em português. A palavra grega é "exousia" que, literalmente, refere-se ao que "provém do ser" que se é. Não se trata de algo exterior ou forçado, mas de uma atitude que emana de dentro e que se impõe por si só. “Ousia” designa o que se é ou se tem. “Ex” indica procedência, “de”. A exousia é a autoridade que sai de dentro. Por isso a autoridade de Jesus não tem nada a ver com o poder que se impõe ou a liderança que arrasta. Jesus esvazia-se de todo poder; Ele tem autoridade: “ensinava-lhes com autoridade e não como os escribas”.
A autoridade de Jesus é uma autoridade sem poder coercitivo. Trata-se de uma autoridade moral. É a autoridade da verdade, da autenticidade, da exemplaridade. Em suas palavras e ações, Jesus deixa transparecer uma profunda experiência de Deus e isto lhe confere uma grande liberdade e explica sua autoridade. Por isso, não se pode explicar Jesus, sua vida e sua forma de agir, sem recorrer à sua experiência de intimidade com o Pai.
Sabemos que o poder foi a grande tentação dos discípulos de Jesus e dos seus seguidores ao longo da história da Igreja. Jesus, com seu “ensinamento” e seus gestos, quebra a estrutura da centralidade do poder narcisista; sua atitude é humanizadora e propõe o caminho da “descida compassiva” como a marca distintiva dos seus seguidores; Ele parte da realidade humana mais frágil e excluída, e ensina o segredo para se construir uma comunidade diferenciada: a acolhida e o serviço mútuo em lugar de e em vez de “hierarquias” rígidas e distantes que envenenam as relações interpessoais. Para Jesus, não é o poder que deve ocupar o centro, mas a criança, despojada de todo poder.
Por isso, para quebrar a pretensão de poder e prestígio do seu grupo de seguidores, Jesus realiza um gesto de forte impacto: coloca uma criança no centro do grupo e a abraça. Os discípulos discutiam sobre esse “centro”, mas agora descobrem que ele está ocupado por uma criança a quem Jesus coloca de pé: esta é a nova “cátedra” a partir da qual ela ensina os(as) seguidores(as) d’Ele.
Na nova comunidade, fundada por Jesus, há uma “inversão pedagógica”: são as crianças que nos ensinam e nos conduzem, e, com um olhar assombrado, nos fazem arregalar os olhos e “ver” coisas que nunca vimos. São elas que nos fazem ver a “eterna novidade do mundo” (Fernando Pessoa).
O profeta Isaías, numa curta e maravilhosa frase, resumiu essa situação: “... e uma criança pequena os guiará” (Is. 11,6). Os grandes aprendendo dos pequenos; os adultos sendo ensinados pelas crianças.
Agora Jesus nos revela que é a criança que vai mostrando o caminho. Aquilo que os adultos esqueceram e que a sabedoria busca, as crianças sabem.
Os sábios sabem que existe uma progressiva cegueira das coisas à medida que o seu conhecimento cresce.
Recuperar a “sapientia” é preparar o caminho para a volta da criança, abafada em nosso interior.
Os adultos, para se salvar, deveriam rezar diariamente a reza mais sábia de todas:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...” (Adélia Prado).
Texto bíblico: Mc 9,30-37
Na oração: O exercício do poder se expressa nas atitudes de dominar, manipular, subjugar e definir tudo segundo os próprios critérios. A perversidade do coração humano encontra no exercício do poder o campo mais propício para a revelação de suas mazelas, violências e vaidades. E isso no campo político, religioso, nas relações entre as pessoas...
- Faça uma leitura orante de seu cotidiano e verifique se, sorrateiramente, o “veneno do poder” encontra modos de expressar “disfarçados”, petrificando seu coração, impedindo a vida de desabrochar e a criatividade de se expandir.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
16.09.21