“Todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes” Mt 25,40
Com a festa de “Cristo Rei” chegamos ao final de mais um ano litúrgico; e o evangelho indicado para este último domingo é o conhecido texto do Juízo final (Mateus) que, devido a interpretações fundamentalistas, tem alimentado muito mais medo que confiança. Não podemos aplicar ao termo bíblico “juiz” o mesmo significado que conhecemos dos termos “juiz” e “juízo” em nossos tribunais.
Deus não é um “juiz”; são nossas obras ou omissões diante daqueles que foram despojados de seus direitos mais básicos e de sua dignidade como pessoas, que julgam o êxito ou o fracasso de nossa vida.
O que verdadeiramente nos move e nos interessa na parábola do Juízo Final não é especular sobre as realidades últimas, mas dirigir nossa atenção e nosso pensamento sobre a realidade presente: o que estamos fazendo com o dom da vida nesta vida? Deveríamos nos preocupar muito mais com os chamados “juízos intermédios” que vamos enfrentando cada dia, ou seja, se estamos ajudando a aliviar o “inferno” que muitos estão vivendo nesta terra, oferecendo-lhes um pouquinho de “céu”.
Assim, fechando o ano litúrgico, volta a ressoar de maneira inquietante, nas paredes da história, a pergunta fundamental: “que tens feito, que estás fazendo com teu irmão?”
O Evangelho deste domingo nos recorda que a pergunta pelo Deus de Jesus e seu Reino não remete a uma teoria, ou a um “princípio”, ou a uma “doutrina”, mas a algo tão concreto, histórico e cotidiano como é sempre a pergunta pelo próximo. Por isso, nas relações com os outros, especialmente com os mais empobrecidos e sofredores, é que se fundamenta nossa relação com Ele.
Não há relação nem culto possível ao Deus de Jesus que não passe pela prática da misericórdia, da solidariedade e da justiça com nossos irmãos e irmãs mais vulneráveis. Suas situações de indigência, exploração, expropriação de bens e direitos são padecidas pelo mesmo Deus, porque eles e elas são seus representantes; por isso o que fazemos a um destes humildes, fazemos a Deus.
A parábola que Mateus relata resume muito bem o que é essencial na proposta de Jesus sobre o Reino: os gestos de misericórdia frente às diversas formas de sofrimento. Para caminhar em direção à maturidade no seguimento de Jesus, devemos nos perguntar frequentemente, durante o nosso percurso, o que é mais importante, o imprescindível, o inegociável de nossa fé.
Muitas vezes, nossa vida cristã se perde num emaranhado de normas, doutrinas, leis, práticas “piegas”, que acabam nos afastando da essência do evangelho e da vida de Jesus. Bem sabemos que, segundo os evangelhos, o compromisso primeiro de Jesus foi o de aliviar todo sofrimento humano. Ele não estava preocupado em constituir uma nova religião, com cargas e cobranças sobre os ombros dos seus seguidores. Sua verdadeira religião era a vida; sua missão era reconstruir vidas feridas, excluídas e marginalizadas. Jesus foi um “biófilo”, amigo da vida.
O mais interessante na parábola deste domingo está no fato de apresentar uma pergunta que nos será feita no último “cara-a-cara” com Deus: o que fizemos com nosso irmão sofredor?
Esta mesma pergunta já apareceu no início da humanidade, frente ao fratricídio de Cain sobre Abel: “onde está teu irmão? O que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra a mim” (Gen 4,9-10).
Uma mesma pergunta que parece ser a única e decisiva em toda a história da salvação. Não seremos perguntados sobre a quantidade e qualidade de nossas orações, santas missas, peregrinações, novenas, penitências, práticas devocionais... Tudo isso só tem sentido quando nos fazem mais sensíveis e nos levam ao compromisso com o irmão que sofre, prolongando o modo de ser e agir de Jesus.
Com efeito, o vers. 40 do texto de Mateus nos revela o fundamento teologal do juízo: “o que fizestes a estes meus irmãos menores, a mim o fizestes”, diz o Filho do Homem. Há, portanto, uma “identificação sacramental” entre Jesus e o sofredor. O texto não diz: “é como se tivessem feito a mim”; ele é muito taxativo: “a mim o fizestes”, ou, “foi a mim que não o fizestes”.
O sacramento primeiro é o compromisso com aquele que é excluído, vítima das estruturas injustas, o rejeitado... Os outros sacramentos só têm sentido quando nos movem para as margens, para uma presença solidária com aqueles que são os prediletos de Deus.
Inspirando-nos na parábola do bom samaritano (Lucas) podemos afirmar que é Jesus quem – identificado com o assaltado – jaz ferido nas margens da história e, portanto, somos nós que devemos “salvá-lo” da morte. Portanto, é o próprio ser humano que é convocado a evitar a dor de Deus na história. E, por isso, a pergunta que normalmente dirigimos a Deus em meio ao sofrimento – “por que não fazes algo?” – nos é devolvida a partir do alto: “o que vocês estão fazendo para aliviar o meu sofrimento?”.
Em nossas mãos está a possibilidade de evitar a dor dos excluídos e das vítimas, que é a dor de Deus na História. Deus sofre na dor dos seus filhos e filhas. Somos nós que devemos dar um copo de água, visitar o enfermo ou o encarcerado, consolar o triste, incluir o excluído... Deus colocou a história em nossas mãos e nos dotou de nobres recursos para que possamos continuar a mesma missão do seu Filho: “aliviar o sofrimento humano”.
A parábola indicada para a festa de Cristo Rei afirma que quem deseja entrar no Reino, não deve comportar-se como um “vassalo” de um rei, mas como um servidor dos mais fracos e excluídos. Todo ser humano que se “humaniza, humanizando os outros”, faz presente o Reino. No Juízo, a única coisa que se leva em conta na hora de valorizar o ser humano é sua humanidade; nas exigências do “Juiz” não aparece nenhuma conotação “religiosa”, no sentido de práticas religiosas. A pertença ou não ao Reino, não depende de uma atitude religiosa, mas de uma atitude vital de compaixão para com os mais fracos.
Os rostos sofredores dos pobres são rostos sofredores de Cristo. Eles interpelam nossos compromissos. Tudo o que tem a ver com Cristo tem a ver com as vítimas sofredoras e tudo o que é relacionado com os sofredores, diz respeito a Jesus Cristo.
O envolvimento com o “outro” (excluído, pobre, marginalizado...) nos conduz à autenticidade, à libertação de apegos e avareza, à liberdade para partilhar e receber e a uma imensa felicidade. Em seus olhos “vemos o calor da atenção, o brilho da dignidade, o lampejo do humor, a faísca do protesto. Vemos também as lágrimas da tristeza, do medo e da insegurança, o sofrimento da rejeição, a escuridão do desespero”.
Aproximar-nos do “pobre” e deixar-nos “afetar” pelo seu sofrimento torna-se a maior fonte de nossa espiritualidade. Suas “fraquezas” suscitam em nós o melhor de nós mesmos e ao nos envolver afetivamente em suas vidas, fazem com que vivamos um misto de ternura e indignação a que chamamos compaixão.
Nas experiências de “convivência” com os pobres adquirimos os valores evangélicos da capacidade de celebrar, da simplicidade, da hospitalidade... Eles têm um jeito de nos trazer de volta para o essencial da vida. Eles são uma fonte de esperança, uma fonte de autenticidade. Eles se tornam nossos amigos.
“Nosso compromisso de seguir o Senhor pobre, naturalmente nos faz amigos dos pobres” (Inácio de Loyola).
Texto bíblico: Mt 25,31-46
Na oração: Rezar as “obras de misericórdia” encontradas na parábola de Mateus, neste domingo.
No Documento de Aparecida, as tradicionais obras de misericórdia ganham nova feição, traduzindo-se em afirmação da dignidade humana, defesa incondicional da vida, promoção do bem comum, justa distribuição de renda, inclusão social, defesa dos direitos humanos, acesso aos bens culturais, salário justo e segurança alimentar (nn. 358-359).
- Sua experiência de Deus se reduz a algumas práticas religiosas autocentradas, ou é mobilizadora para ativar uma presença solidária e profética junto aos mais sofredores? Qual é o “lugar” do seu encontro com Deus?
24.11.23
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Os textos evangélicos destes últimos domingos do ano litúrgico nos convidam a velar, a estar mobilizados, numa atitude de expectativa diante do Deus que sempre está vindo ao nosso encontro. Ele não nos espera no final do caminho para nos submeter a um juízo. Não, Deus está em nós todos os instantes de nossa vida para que possamos levá-la à plenitude, ou seja, para salvar-nos n’Ele.
É preciso estar alerta, porque o tempo passa. Se estamos distraídos e adormecidos, é preciso despertar, porque do contrário perderemos a oportunidade de “entrar na festa de casamento”.
Neste domingo, a parábola de Jesus nos convida a não ficarmos sem azeite em nossas humildes lamparinas, para que nossa presença cristificada brilhe como luz potente nos momentos oportunos. É o momento de nos perguntar sobre qual fundamento está assentada nossa esperança (espera ativa).
Nas esperas, muitas vezes esquecemos de manter a chama acesa. A parábola das dez virgens nos chama atenção para isso. Talvez porque passamos a vida esperando passivamente, sem saber o quê ou quem, e não desfrutamos dos encontros que a mesma vida nos proporciona. Muitas vezes vivemos condicionados pelo anseio de algo que está à frente, de um futuro que sonhamos e que, às vezes, quando chega, não corresponde às nossas expectativas. Nestas esperas indefinidas e estéreis vamos desperdiçando o azeite das lamparinas, vamos nos gastando a nós mesmos na superficialidade e na falta de compromissos.
Lida em seu sentido literal, a parábola deste domingo parece cair numa contradição, já que as jovens “sensatas” aparecem como egoístas, quando se negar a partilhar seu azeite com as do outro grupo.
Mas, toda parábola busca ser provocativa e não podemos nos limitar a uma leitura literalista da mesma. Trata-se de identificar o objetivo que ela indica. E, neste caso, parece claro que ela procura destacar outra questão: a importância decisiva de ter acesso às reservas de “azeite”, como reserva de “vida” diante da vinda surpreendente do “noivo”.
No relato, o azeite é aquilo que alimenta a lamparina, ou seja, que torna possível a luz. Com isso, o eixo da parábola nos remete a esta questão: que é que possibilita, mantém e alimenta a luz em nossas vidas?
Qual é o azeite que faz arder a nossa lamparina existencial?
Toda pessoa possui reserva abundante de azeite em seu interior, como algo próprio dela e é, portanto, intransferível: é o dom da existência, a vida em seu sentido mais profundo. O azeite não é algo que se possa dar e receber, que é oferecido a partir de fora, como uma coisa objetiva que um homem ou mulher pudessem dispor de si mesmos; o azeite é vida profunda, a mesma vida humana que o homem e a mulher devem cultivar, sendo eles mesmos.
Homens e mulheres são ‘azeite” que ilumina enquanto se consome, fazendo-se luz diante de Deus e dos outros. Este é o distintivo mais precioso do ser humano, sua essência original: o bom azeite que ilumina.
Em nossa identidade profunda, “somos luz”, afirmação que o evangelista Mateus põe na boca de Jesus: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14). No entanto, com frequência desconhecemos essa realidade, desco-nectados dela e, como consequência, permanecemos na obscuridade da ignorância essencial, com a confusão e o sofrimento que isso traz. Nessas condições, faz-se vital esta questão: qual é o “azeite” que alimenta nossa luz e nos permite viver em conexão com ela?
A resposta só pode ser esta: a compreensão experiencial daquilo que somos.
Para começar, a pessoa interessada pode verificar isso por si mesma a partir de um questionamento elementar: que é o que lhe traz serenidade, paz, plenitude, amor, vitalidade, criatividade...? De onde brota tudo isso e que se mantém mesmo em circunstâncias adversas? Ou, pode-se também fazer o mesmo questionamento sob outro ângulo: o que é que lhe altera, lhe fecha, lhe faz sofrer, lhe desconecta da vida...?
Em resumo: tudo se concentra no fato de vivermos ou não conectados ao que realmente somos. Essa compreensão experiencial é luz; sua carência é obscuridade.
O passo seguinte surge por si mesmo: como fazermos a provisão de “azeite”? Conectar-nos continuamente, de maneira consciente, com aquilo que somos, com aquilo que está mais além do corpo, da mente, do psiquismo, do ego, ...
Nas dimensões mais profundas de nosso ser continuam existindo lugares onde a luz permanece brilhando e nos quais o azeite transborda. São esses lugares invisíveis que só percebemos quando vivemos a partir do coração. Tais lugares invisíveis coincidem com as dimensões sadias que nos habitam: sentimentos elevados, desejos nobres, pensamentos oblativos... São sadias porque a sensatez de seu candil vai nos indicando o valor das coisas pequenas que passam quase desapercebidas. São realidades pequenas (como o grão de mostarda, uma medida de fermento ou uma moeda perdida), mas carregadas de eternidade. Quando habitamos estes lugares, o tempo se faz mais denso e palpável, a sensibilidade se torna mais refinada, a visão se amplia e um sentimento de profunda gratidão nos invade. Não estamos nas montanhas inacessíveis ou nos desertos impossíveis; estamos no cotidiano luminoso que não percebemos devidos às pressas estressantes ou pelo esquecimento de buscar o perfeito que não existe. É questão de sensatez de vida.
“Há dentro de nós uma chama sagrada coberta pelas cinzas do consumismo, da busca de bens materiais, de uma vida distraída das coisas essenciais. É preciso remover tais cinzas e despertar a chama sagrada. E então irradiaremos. Seremos como um Sol”. (L.Boff)
No fundo, todos somos as dez jovens da parábola; todos vamos fazendo um caminho de aprendizagem para o amor. Mas, é preciso retomar a questão central: quem sou eu diante de Deus que vem, que está conduzindo minha vida? Tenho azeite o suficiente, sou portador da luz de Deus?
Esta é a esperança que Jesus alimentava: Ele queria constituir um povo de pessoas luminosas, uma cidade de pessoas transformadas em luz. Assim quer Jesus que seja sua Igreja: uma multidão de gente que ilumina de forma generosa, presenteando sua luz, gratuitamente, para que todos vejam e vivam em concórdia.
Aqui não há luta da luz contra as trevas, mas iluminação de vida: que todos possam ver, porque a luz recebida é presenteada a todos.
O ser humano é portador de uma luz que o transborda e que se expressa no seu corpo, nos seus gestos, nas suas ações solidárias e que são a verdadeira lâmpada de Deus no mundo. Um ser portador do melhor azeite e transparente: essa é a benção de Deus, o dom maior, a vida mesma feita luz e comunicação.
Somos “luz do mundo”, uma chama que nunca se apaga. Somos “sarça ardente” para os outros, consumindo-nos constantemente, na entrega e no serviço.
Somos uma lamparina humilde, brilhando na janela da nossa pobre casa, indicando aos outros o caminho da segurança e do aconchego.
Texto bíblico: Mt 25,1-13
Na oração: Dentro de ti deves descobrir o azeite, pois teu interior tem reservas deste precioso dom. Se acessas a ele, darás luz que iluminará teus passos. Essa chama, se é autêntica, não poderá ficar oculta, mas que iluminará também todos os outros.
É preciso descobrir teu próprio azeite: é o que há de mais original e divino em teu coração. Ninguém pode emprestá-lo, porque é tua própria vida. Toda vida se move de dentro para fora.
Deixa-te iluminar, leve a Luz nas tuas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos do teu cotidiano.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
10.11.23
“Amarás o Senhor teu Deus... Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39)
Vivemos tempos de profundas rupturas desumanizadoras no campo social, político, racial e sobretudo religioso; são tempos de ira e de ódio, frutos do fundamentalismo e da intolerância que envenenam as relações inter-pessoais, se visibilizam na internet e nas redes sociais, se alimentam de sentimentos putrefatos que brotam de corações rígidos e mentes doentias. As mentiras e as fake-news são servidas em pratos indigestos, através de coações, insultos e ameaças. Há excessivas palavras que afogam, companhas sórdidas, comentários maldosos, notícias sem fundamento e que destroem reputações... Quando, carregado de ódio, alguém desqualifica o outro em nome de uma “pretensa verdade”, na realidade o que está fazendo é inocular em pequena escala o mesmo vírus que, em grande escala, desencadeia guerras e terror.
Este cenário macabro parece dominar tudo. O amor está sendo banido das esferas públicas, dos ambientes familiares, dos espaços religiosos, das relações sociais. Sabemos que, onde não há amor, impera o funda-mentalismo, o moralismo, o negacionismo, o fanatismo... Onde não há amor, a verdade se corrompe. Onde o amor é exilado ali transparece a podridão da desumanização. E o mais escandaloso: tal ambiente fétido é alimentado por “cristãos vestidos em pele de lobo” que, hipocritamente, mostram uma “cara lavada”, mas o “interior está cheio de roubos e maldades” (Lc 11,39).
Mas, como seguidores(as) d’Aquele que também foi vítima de estruturas políticas e religiosas injustas, somos movidos a renovar a esperança de que, apesar de tudo, o amor é mais forte que o ódio e a morte.
Infelizmente, a palavra “amor” se banalizou tanto que muitos a usam para justificam a violência. É preciso resgatar a sacralidade do amor. Não dispomos de um nome melhor para imaginar a Realidade Última, Deus, senão dizendo que ela é amor.
Segundo S. João, “Deus é amor”. Esta afirmação perpassa, carregada de mistério e de promessa, toda nossa história; nela se toca o coração mesmo do cristianismo. É expressão nuclear, irradiante. Ela sozinha já seria capaz de manter a esperança no mundo. Captar sua profundidade significa apalpar seu mistério, encontrar a chave do sentido, entrar no seu fluxo e chegar à fonte da vida.
É dessa fonte que a força do amor brota das entranhas d’Aquele que é Puro Amor, que atravessa todas as etapas da evolução da criação e une todos os seres, dando-lhes afeto profundo e beleza. Trata-se de um “amor cósmico” que perpassa tudo por pura gratuidade. O místico Angelus Silesius afirma: “A rosa não tem um porquê. Floresce por florescer. Não se preocupa se a admiram ou não. Ela floresce por florescer”. Assim é o amor: não tem “porquês”, “sem-razões”. Ama porque ama. O amor floresce em nós como fruto de uma relação livre entre seres livres e com todos os demais seres.
A liturgia deste domingo está dedicada ao tema do amor, à experiência do amor, a descobrir em nós esse fogo que nos circula, de mil formas, em mil direções, de dentro para fora, de fora para dentro.
Que é o amor? O melhor é não o definir, mas vivê-lo. Sentir-se amado, amar, é uma experiência inefável. Estão aí os poetas, os músicos, os artistas para confirmar isso.
Jesus condensou (“compactou”) a Lei inteira e os profetas em dois mandamentos: “ama a Deus e ama a teu próximo”. Neles estão contidos todos os documentos, leis, discursos, programas, mensagens e declara-ções que foram sendo criados ao longo da história da vida cristã.
A Lei, que em princípio serviu para orientar o caminho do povo de Israel, contaminou-se e se viu reduzida a um fardo de prescrições que se impunham aos mais fracos.
O amor não é uma norma ou lei, no estilo dos 248 preceitos e das 365 proibições da religião judaica. O amor é esse modo de viver que abre nossa existência aos outros. Não é lei que se impõe a partir de fora, mas impulso que brota do mais profundo de nosso ser, pois, na essência somos semelhantes ao Deus Amor.
Deus é puro dom, amor total. Trata-se de descobrir e ativar em nós esse dom incondicional de Deus e que através de nós deve chegar a todos. O amor a Deus sem entrega aos demais é pura farsa. Portanto, aqui estamos diante da essência da vida cristã. E é tão simples: basta amar.
Infelizmente, como gostamos de complicar as coisas! Quantas leis, preceitos e normas criamos! Quantos ritos estéreis e devoções vazias estabelecemos! Quantos códigos promulgamos! (o código de direito canônico contém mais de 1700 cânones ou “artigos”).
A espiritualidade de muitos cristãos frequentemente está associada a cumprir ritos, realizar algumas práticas piedosas auto-centradas, carregadas de penitências e mortificações impostas pelos outros e que acabam alimentando culpas e angústias.
No entanto, Jesus Cristo, com poucas palavras, deixou tudo muito claro, simples e fácil de entender para qualquer um. Poucas palavras foram suficientes para deixar as autoridades religiosas surpresas: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma, com todo teu ser”. Este mandamento é o principal e o primeiro. O segundo é semelhante a ele: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.
Amar a Deus e ao próximo são totalmente inseparáveis. Jesus deixa isso suficientemente claro nestas duas afirmações, pois o texto grego de Mateus diz que o segundo é “omoía” (igual) ao primeiro. Esta palavra grega significa “equivalente, igual, o mesmo, que tem a mesma força”. Portanto, trata-se de um mesmo e único amor. Não é possível um sem o outro. Da mesma forma que para formar uma cruz são igualmente necessários o tronco vertical e o horizontal, e se falta um não há cruz, assim acontece com o amor a Deus e ao próximo: são inseparáveis um do outro.
Mas, qual dos dois amores é primeiro? É preciso privilegiar o tronco vertical, dirigido a Deus, ou o horizon-tal, dirigido ao próximo? No final de nossa existência, seremos perguntados pelo tronco vertical: “tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, estive nu e me vestistes, enfermo e me atendestes, no cárcere e me visitastes”.
Mas, é muito mais fácil e menos comprometedor limitar-se ao tronco vertical e reduzir nossa fé a ritos, cultos, penitências, mortificações, novenas, devoções vazias, sacrifícios, procissões..., e permanecermos tranquilos porque já cumprimos o que está prescrito, embora nossa vida vá por caminhos totalmente contrários ao evangelho, ou seja, sem compromisso com a justiça, a fraternidade, a solidariedade, o amor, a ética, a misericórdia, o empenho por transformar as estruturas sociais injustas que geram e alimentam profundas desigualdades, misérias e violências.
Por isso, o que distingue o(a) seguidor(as) de Jesus tem como eixo o amor a Deus e aos irmãos, sobretudo os mais rejeitados e excluídos. “Ama e faze o que quiseres” (S. Agostinho). Amar é tirar o outro do anonimato, dar-lhe rosto, nome, vida, é ativar nele a autonomia, a autoria de sua vida. O amor não é algo que eu dou, mas uma maneira de ser alguém diante do outro, para o outro, com o outro.
Assim, o núcleo da vivência cristã se revela como uma iniciação no amor intenso. O amor que procede de Deus (que nos move) deverá iluminar todas as nossas opções e ações em favor da vida.
Vida cristã quer dizer vida vivida com intensidade, pois o amor é o motor dessa vida. É o próprio Deus que, por sua iniciativa totalmente gratuita, nos ama e nos capacita para amar.
A vida no amor revela uma existência integrada a partir do coração. Isto supõe lucidez, ter uma motivação inspirada em todas as coisas particu-lares e em todas as decisões da vida. “A Ele amando em todas as criaturas e a todas as criaturas n’Ele” (S. Inácio)
Texto bíblico: Mt 22,34-40
Na oração: O Amor originante e fontal de Deus lhe envolve permanentemente; marcado pela gratidão, queira entrar em sintonia, “ajus-te-se” ao modo de amar de Deus: amor descendente, amor sem fronteiras, oblativo, aberto, e que se “revela mais em obras do que em palavras”.
- Movido pelo Amor transbordante de Deus, entre no fluxo desse Amor criativo, “descendo” à realidade cotidiana e ali deixando transparecer esse mesmo Amor através de sua presença humana e humanizadora.
- Faça “memória agradecida” de sua presença amorosa na realidade cotidiana. Viva em contínua “ação de graças”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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“Devolvei a César o que é de César, e dai a Deus é que é de Deus” (Mt 22,21)
No evangelho de hoje (29º Domingo do Tempo Comum) continua o confronto entre Jesus e as autoridades religiosas. Os sacerdotes, anciãos e escribas tinham sido criticados e denunciados por Jesus na parábola da vinha. Agora, os mesmos pedem aos fariseus e herodianos para armar uma cilada contra Jesus - “é lícito ou não pagar imposto a César”? -, a fim de poder apanhá-lo e condená-lo.
O tema era muito polêmico em tempos de Jesus. Vai mais além do simples pagar imposto ou não. Revela uma concepção de vida que tem a ver com ser livres ou escravos. São o povo de Israel, povo eleito por Deus: como, então vão se submeter a César?
Jesus percebe a hipocrisia. Na sua resposta, ele não perde tempo em discussões inúteis, e vai direto ao cen-tro da questão. Ele não cai na armadilha (pagar ou não pagar), mas propõe um caminho diferente: devolver a moeda a César, dar o que é seu, sair de seu império econômico, para assim ocupar-se verdadeiramente das coisas de Deus.
Este é um tema antigo, mas também atualíssimo, que nos situa diante do ideal de uma humanidade fraterna em gratuidade (sinal de Deus) e a realidade de uma política e economia sustentadas por tributos que, em princípio, poderiam e deveriam estar a serviço de todos, mas que na realidade tendem a ser controlados por alguns.
Diante da pergunta sobre o pagamento de impostos, Jesus dá à sua resposta uma profundidade que seus adversários não esperavam e que não lhe perguntaram: “e dai a Deus o que é de Deus”.
Que é de Deus? Para os judeus, como para nós, tudo é de Deus. Se a moeda tem a imagem de César, toda pessoa humana é, em si mesma, imagem de Deus; todos somos filhas e filhos seus. E, a partir dessa realidade, tudo muda em nossa vida. Portanto, não se trata de estar a serviço de dois senhores, de dividir os afetos entre eles, de estabelecer proporções e equilíbrios entre Deus e César. Jesus não coloca Deus e “César” no mesmo plano; são tantos “césares” a quem pagamos tributo e de quem nos fazemos súditos que até esquecemos que “Deus é o único Senhor”. Deus não pede impostos, nem se impõe sobre nós, é pura gratuidade. Sua presença é sempre providente e cuidadosa e que desperta em nós uma profunda gratidão: devolver a Ele todos os bens e dons que recebemos.
A única coisa que Deus deseja para todos é esta: uma vida mais humana desde agora e uma vida que alcance sua plenitude na vida eterna. Por isso, nunca se pode dar a nenhum “César” o que é de Deus: a vida e a dignidade de seus filhos e filhas.
Só ali onde é devolvida a César a moeda é que se pode dar a Deus o que é de Deus, ou seja, tudo o que somos e temos, inaugurando um tipo de vida diferente, em gratuidade, isto é, sem “capital” de império, sem a violência política e econômica que o tributo simboliza, sem o poder que desumaniza.
A resposta de Jesus aos fariseus e herodianos revela a existência de dois dinamismos, duas forças, ou duas presenças em nosso interior. Nossa liberdade sente-se movida e atraída em duas direções; estas tendências encontram-se instaladas no cento mesmo do coração.
Nele se encontram, com efeito, as raízes dessa dinâmica que, por um lado, se deixa conduzir pelo “cézar da vida” fechando a pessoa no seu próprio ego e fazendo-se o centro; e, por outro, quem se deixa conduzir pela presença do Espírito, entra no fluxo da expansão de vida em direção à alteridade, ao serviço, à partilha. De um lado, o impulso para ir além de si mesmo; de outro, o movimento de retração e fechamento em si.
É preciso despertar a consciência da presença destas duas forças opostas (uma de alargamento ou expansão de si mesmo em direção aos outros, à criação, a Deus; e outra de fechamento, resistência e medo).
Aqui não se trata de alimentar um combate entre “Deus” e César”, entre o bem e o mal; tampouco se trata de uma leitura moralista diante da presença das chamadas “tentações” (tendências, impulsos, inclinações... presentes em todos nós).
O seguimento de Jesus não é luta interna que desgasta, levando ao sentimento de impotência e desânimo. O combate dualístico (entre o bem e o mal) desemboca no puritanismo, no farisaísmo, no legalismo, no perfeccionismo, no voluntarismo... onde o centro sou “eu”.
A questão de fundo é saber: quem alimentamos em nossa vida? “Deus” ou “César”? quem ocupa o centro da nossa vida? estamos a serviço de quem? onde estão nossos afetos: ordenados para Deus ou para “César”? Aqui nossa liberdade é ativada para deixar-nos conduzir pelo Espírito, assim como as águas do riacho se deixam conduzir em direção ao Grande Oceano. O centro é o Espírito.
Na perspectiva bíblica, há uma incompatibilidade radical entre “Deus” e “César”, entre o “Deus de Amor” e o “César do poder”, entre a paixão pelas riquezas e a paixão pelo Reino. Ninguém pode servir a dois senhores, pois não se pode investir afetivamente em duas direções.
Não é possível amar a Deus, isto é, amar a generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão, a misericórdia, e ao mesmo tempo amar o “César”, isto é, amar o poder, a acumulação de riquezas que é base de toda injustiça e de todo desamor: fome, violência, exclusão, exploração...
A fidelidade ao Deus único fica interditada e o seguimento de Cristo fica fragilizado.
O apego aos “césares” dos bens, das riquezas, do poder... apresenta-se como uma das tentações mais poderosas para todo seguidor de Jesus. Como todo ídolo, o “César” provoca o fascínio, a adoração e as identificações mais perniciosas. Daí surgem as racionalizações com a desculpa de servir a Deus; no fundo, manipulamos Deus para santificar nossos afetos desordenados. “Eu quero um Deus que queira o que eu quero”.
A proposta dos Evangelhos, nesse sentido, é clara e contundente. Eleger a partilha e o despojamento é a base e condição para poder seguir Jesus no trabalho do Reino. A escolha de uma vida despojada expressa a liberdade para colocar-se a serviço do Reino.
A afeição aos bens, ao poder, à vaidade..., pelo contrário, acarreta o enorme risco de se ficar cego e surdo para atender ao chamado de Jesus.
No centro da mensagem do evangelho encontramos a revelação de Deus como Pai e a proclamação da igualdade e da fraternidade de todos os homens e mulheres. A criação de uma comunidade onde o com-partilhar substitua a acumulação, e que se apresente como alternativa àquilo que o mundo propõe, configura-se como uma das propostas mestras na proclamação do Reino de Deus.
A quantos “césares” pagamos tributos? Em chave de interioridade, alimentamos muitos “césares”, de quem nos tornamos súditos e dependentes, e que se impõem a nós com seus “impostos”. São os nossos apegos, instinto de posse, busca de poder e prestígio, posição social, títulos... que exigem alto investimento afetivo. Carregamos “nocivos hospedeiros” que um dia entraram em nossa vida, foram crescendo lentamente, ali-mentando-se de nós mesmos e acabam nos paralisando como em teias de aranha, destruindo-nos por dentro. É preciso re-ordenar todos os dinamismos e potencialidades humanas em direção a um horizonte de sentido: o Reino. O discípulo pela metade não pode ser discípulo. Deus é Santo, mas em sua santidade pede sinceri-dade na vontade e verdade no coração. Não servem as entregas pela metade. Deus não pode se contentar com “amor a prestações”, com retalhos de vida.
Texto bíblico: Mt 22,15-21
Na oração: Você se sente pessoa livre, que busca e escuta a verdade, Aquele que é a verdade?
- Você está a serviço da verdade, ou da mentira, das “fake-news”? Seus afetos estão ordenados no serviço do “Deus do Reino” ou “césar do poder”?
Pe.Adroaldo Palaoro sj
19.10.2023
Imagem: Dinheiro de César.
Entre 1600 e 1640. Por Rubens, atualmente no Fine Arts Museums of San Francisco, na Califórnia, nos Estados Unidos.
“E a sala da festa ficou cheia de convidados” (Mt 22,10)
A imagem que Jesus escolheu para nos falar daquilo que é central no Reino é a do banquete, uma refeição festiva. Seu gesto de compartilhar a mesa com as pessoas excluídas prefigurava e preparava a Eucaristia como culminação de algo que foi sendo gestado e vivido naquelas refeições, onde os últimos e os margina-lizados eram acolhidos e tinham um lugar preferencial.
Além disso, Jesus nos revelou que Deus sempre quis assumir realidades humanas para manifestar seu plano de Salvação; e uma dessas realidades escolhidas por Ele é o banquete festivo, onde todos são convidados a participar. É o que a parábola deste domingo deixa transparecer.
A festa de casamento estava preparada; muitos foram convidados. Mas, estes estavam ocupados em seus afazeres de campo e de negócio e não aceitaram o convite. Mais ainda, agiram com violência com aqueles que anunciavam a Boa Notícia da festa.
O evangelho deste domingo nos motiva a uma profunda reflexão sobre a imagem cristã de Deus, um Deus que pretende atrair a humanidade toda a um banquete inclusivo e não a um juízo excludente. O Reinado de Deus é um banquete, lugar da festa e da comunhão, celebração da vida feliz entre os comensais. É uma mensagem que não convém esquecer quando muitos cristãos estabelecem uma oposição entre experiência de Deus e vivência da felicidade. No entanto, inspirado no modo de ser e viver de Jesus, o essencial do cris-tianismo é, precisamente, viver a felicidade e a plenitude de vida, superando o mal, o sofrimento e a morte.
Muitíssimas pessoas e grupos religiosos moralistas espontaneamente relacionam Deus com o sofrimento, com a proibição de coisas que nos agradam e a obrigação de outras que nos desagradam; e, acima de tudo, veem a Deus como poder absoluto que desperta ou alimenta nossos sentimentos de culpa e que é vivido como uma ameaça de castigos para esta vida e, o que é pior, do castigo eterno do inferno.
Essas pessoas não costumam estabelecer a mesma relação entre Deus e a felicidade de viver e têm uma ideia de Deus que pouco ou nada tem a ver com o Deus que se deu a conhecer a nós em Jesus de Nazaré. O que Deus tanto deseja, acima de qualquer outra coisa, é o mesmo que todos nós, seres humanos, mais queremos: a felicidade.
O tema central da parábola deste domingo revela o desígnio de Deus para a humanidade, ou seja, aquilo que uma festa de casamento supõe na vida: amor, encontro, família, alimento, festa, prazer... Esse, e não outro, é o plano de Deus para a humanidade. Aqui estamos bem distantes daquela falsa imagem de Deus que é apresentada em muitos grupos e comunidades: Deus “estraga-prazer”, juiz que ameaça com o inferno, senhor que exige penitência, mortificação...
O Deus de Jesus é o Pai da festa, que somente celebra e quer celebrar uma festa, a festa da vida. Ele faz de tudo para que seus filhos e filhas sejam felizes, realizados...
Deus quer que toda a humanidade se salve, desfrute da vida, tenha esperança e viva com pleno sentido. Ou seja, Deus não criou “dois espaços”: um, como se fosse uma mansão celestial e outro, como se fosse sala de torturas. Deus não cria e não quer o inferno para ninguém. Ele quer um encontro universal, um banquete fraterno para a humanidade. Na mesa do Senhor há lugar para todos, bons e maus. Comensais da mesa do Senhor é a humanidade inteira, sem distinção de raça, de religião, de gênero...
Partindo da mensagem de Jesus, podemos afirmar que o sentido profundo da religião cristã está em sua capacidade de celebrar e de festejar seus santos e santas, os tempos litúrgicos sagrados, as datas fundacionais, os momentos festivos dominicais... E tudo acontece ao redor da mesa: mesa da inclusão, da partilha, da acolhida, da solidariedade... Quem participa dos tempos festivos celebra a alegria de sua fé no “Deus da festa”, em companhia de irmãos e irmãs qque partilham suas mesmas convicções, escutam a mesma Palavra sagrada, repartem o mesmo pão, reforçam os laços e se sentem próximos d’Aquele que é festa.
Sabemos do trágico sintoma de uma sociedade saturada de bens materiais e que assiste lentamente, não a morte de Deus, mas a morte do próprio ser humano que perdeu a capacidade de festejar gratuitamente, de alegrar-se pela bondade da vida, de manifestar gratidão por tantos dons recebidos.
Por ter perdido a jovialidade e o espírito da alegria, grande parte dos nossos contemporâneos não sabe festejar. Conhecem a frivolidade, os excessos do comer e beber, a superficialidade na convivência...; nas festas comercializadas encontramos de tudo, menos alegria e solidariedade gratuita. Tal situação também se faz visível, muitas vezes, nas “festas litúrgicas”; muitas delas tem “cara de velório”.
As festas na vida cristã devem ser preparadas e celebradas por todos; ninguém tem o controle da festa. Sem esta disposição interior corremos o risco de perder seu sentido alimentador da vida que levamos. Muitas vezes, por não estarmos preparados e por não sabermos preparar as festas nas nossas comunidades, saímos delas vazios, com a sensação de termos cumprido somente uma obrigação. Uma festa assim não reforça os laços entre as pessoas, não desperta compromisso e não alimenta um novo sentido para a vida. O valor delas está justamente em saborear um sentido maior para levar adiante a vida, sempre desafiante e inspiradora.
E o sentido da festa cristã está na “memória” que fazemos d’Aquele que transitou por muitas refeições, algumas delas escandalosas, anunciando não um Deus que ameaça, mas um Deus que se alegra com a alegria festiva de seus filhos e filhas.
Fazendo a festa, a comunidade descobre que foi a festa que a fez.
A festa verdadeira é lugar da liberdade, da antecipação do futuro, abre espaço à igualdade, estabelece novas relações entre os participantes. Ela sim, re-cria a comunidade, recriando os participantes.
A festa é como um dom que já não depende de nós e que não podemos manipulá-la. Podemos preparar a festa, mas a festividade, ou seja, o “espírito da festa”, surge gratuitamente. Ninguém a pode prever nem simplesmente produzir. Só podemos nos preparar interior e exteriormente e acolhê-la.
A grandeza e a originalidade da vida cristã não estão na sua doutrina, nos seus dogmas, nas suas normas, e nem nos ritos de mortificação e penitência. A fonte da identidade cristã está nesta afirmação básica: “Deus é festa e Ele vem ao nosso encontro em festa”; e o lugar privilegiado da festa é a mesa da refeição, o banquete da vida. Por isso, a festa é um “sim” à vida, à comunhão, ao encontro. A festa é tempo forte no qual o sentido secreto da vida é vivido de uma maneira intensa. Da festa saímos fortalecidos para assumirmos os compromissos da vida com mais inspiração e criatividade.
O final da parábola deste domingo parece um pouco estranho, certamente um acréscimo bem posterior feito pela comunidade de Mateus. É evidente que a parábola não tem a intenção de terminar com um desfile de moda, quando alguém não traz a veste adequada. Também não se trata de uma questão moral, porque ao banquete são admitidos todos: bons e maus. Além disso, Jesus sempre reagiu a uma moral externa e sempre foi contra o legalismo. Ele não situa a moral em um traje. Para Jesus, o bom e o mau é o que sai de dentro e não tem nada a ver com a camisa ou veste que distingue de outras pessoas.
Aqui estamos, mais uma vez, no mundo do símbolo. Poderíamos pensar, talvez, que aquele homem não tivesse sentido de festa, de gratuidade, de amor. Se não tem sentido de fraternidade, não “pinta” nada no banquete; está isolado, sem sintonia com o momento. É como o irmão mais velho da parábola do pai misericordioso: não sentia alegria, gratuidade, paz pela volta de seu irmão mais novo que estava perdido.
Quem não tem esse sentido amável da vida não será nunca feliz em nenhum lugar. Quem não se alegra com o bem dos outros, com a presença dos pobres e excluídos, está deslocado e não será feliz.
Mas, mesmo que sejamos uns pobres invejosos e o nosso traje se chame ressentimento, contrariedade, rancor, intolerância... Deus também nos chama e nos convida à festa.
Texto bíblico: Mt 22,1-14
Na oração:
- a sua “experiência de Deus” está associada à felicidade, à festa, ao banquete..., ou, pelo contrário, está associada a sofrimento, mortificação, ameaça, medo, juízo...?
- “Deus da religião” x “Deus de Jesus”: o que predomina em sua comunidade cristã?
- busque vivenciar os “momentos festivos” numa atitude de profunda reverência pela vida.
“De Deus dizemos tranquilamente coisas que não nos atreveríamos a
dizer de nenhuma pessoa decente” (Pe. Tony de Mello sj)
Pe. Adroaldo Palaoro sj
13.10.23
“Quando o dono da vinha voltar, o que fará com os vinhateiros?” (Mt 21,40)
Na perspectiva bíblica, a vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, numa relação de aliança. A vinha é dada por Deus em função da vida. Ela deve, por isso, ser recebida como fecundidade, não como algo que é objeto de conquista e domínio. Por isso a Vinha é sagrada e é lugar de contemplação e encontro íntimo com o Criador; ela é o teatro da glória de Deus, isto é, da manifestação da presença divina.
E o ser humano é chamado a “trabalhar com” o Criador, cuidando da Vinha, para que ela seja fecunda e alimente a alegria de todos. Aqui já não cabe mais nenhuma atitude de dominação, de exploração, de depredação e de posse. O cuidado e a beleza da vinha impõem-se ao desejo consumista desenfreado, pois somos jardineiros e não exploradores.
O Evangelho deste domingo revela que, quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril. Quando uns poucos se apropriam dela como donos, ela passa a ser o lugar da espoliação, da devastação, da morte e deixa de ser espaço para a convivência fraterna e solidária.
De fato, contemplando a “grande Vinha do Senhor”, percebemos que o poder-dominação sobre a nature-za e o consumismo exacerbado destruiu o sentido cordial das criaturas e legou-nos um devastador vazio existencial.
Todo ser humano, chamado à comunhão e à união com o seu Criador, com os outros e com as criaturas, experimenta em si, ao mesmo tempo, a tendência egóica de se apoderar do grande dom da Vinha, que limita, trava, perturba seu desejo de viver em sintonia com o Senhor e em harmonia com os demais.
Na perspectiva bíblica, o pecado aparece em primeiro lugar como a ruptura de uma aliança com o Criador, com os outros e com as criaturas. Não se trata de uma mera infração, uma quebra de lei, nem mesmo de uma falta contra nós mesmos, mas sim de quebra de uma relação de amor e de amizade. A Bíblia nos falará da situação do pecador como sendo, radicalmente, uma situação de fechamento, de estar bloqueado, inca-paz de viver a vocação de jardineiro e de cuidado. Em uma palavra, trata-se de uma recusa a viver e a amar.
Segundo a revelação bíblica, no cenário da Grande Vinha, as criaturas não estão colocadas umas ao lado das outras, em justaposição, mas são todas sinfônicas, inter-ligadas, inter-dependentes. Há uma grande unidade, feita de muitos níveis, de muitos seres diferentes, todos eles ligados e religados entre si. E, por isso, num profundo e intenso dinamismo.
O drama do ser humano é não se sentir em comunhão num todo maior e perder a memória de que é parte do todo; é não se sentir um elo vivo e esquecer que este é um elo da única corrente de vida.
A antropologia bíblica é iluminadora ao reconhecer a vida humana numa estreita interconexão com outros seres, como uma teia interdependente.
“A terra não pode ser vendida para sempre porque a terra é minha e vocês são inquilinos e hóspedes meus” (Lev. 25,23). Desta afirmação podemos deduzir claramente que o ser humano não é senhor da terra e não pode fazer com ela e com os outros seres aquilo que quiser.
Ao predominar a auto-afirmação e o domínio do ser humano sobre a Vinha, produziu-se a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Ele se colocou num pedestal solitário a partir de onde pretende dominar a Terra e os céus; como consequência dessa atitude temos a devastação da vinha.
O embrutecimento do ser humano, de sua interioridade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, repercutem em falta de respeito pela natureza, em ruptura com as outras criaturas, em insensibilidade ecológica.
Há um clamor generalizado que emerge da realidade desafiante enfrentada pela humanidade: o planeta Terra está gravemente enfermo. As consequências trágicas estão presentes por toda parte: degradação do meio ambiente, diminuição acelerada das fontes de água potável, desertificação, degelo das calotas polares
com a consequente elevação do nível do mar, grande incidência de furacões e de queimadas, extinção de milhares de espécies de animais, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... - Estrangulou-se a capacidade de enternecimento, de encantamento e de reverência diante da profundidade da vida; o ser humano não é mais capaz de “louvar, reverenciar e servir a Deus nosso Senhor”.
Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra.
Ferir a Vinha é ferir o próprio Criador. Quando observamos vinhas outrora verdejantes e agora destruí-das ou entulhadas de lixo, uma sensação de violação, de tragédia, quase de sacrilégio, se manifesta no nosso interior. E uma voz ecoa das profundezas da destruição: “Quê fizestes de minha vinha?”.
Como seres humanos, somos convocados a desenvolver uma consciência criatural, em que a Vinha deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor.
É nesse momento dramático que uma nova cosmologia se revela inspiradora. Em vez de “dominar” a natureza, situa-nos no seio dela em profunda sintonia e sinergia.
O que caracteriza essa nova atitude é o cuidado em lugar da dominação, o reconhecimento do valor de cada criatura e não sua mera utilização humana, o respeito por toda forma de vida e os direitos e a dignidade da natureza, não sua exploração.
A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a da posse, nem a da pergunta pelo seu porquê, mas a da acolhida em seu ser dado. A forma dessa acolhida é o assombro de sua presença e o temor diante de sua possível perda.
Enfim, a parábola do evangelho deste domingo aponta para uma relação de acolhida agradecida e reconheci-da para com a Vinha, pois ela é o lugar no qual não só existimos, mas somos chamados a uma plenitude de vida, em aliança e comunhão com o Deus Trindade.
Assim, o exercício do senhorio, ou a dominação, por parte do ser humano, deve significar respeito à ação criativa divina e contribuir com o crescimento e a evolução da natureza em todas as suas dimensões; igualmente, cuidar e fazer da vinha uma fonte de bênçãos, ou seja, de comunhão com ela e, a partir dela, crescer em harmonia interior, comunhão com as outras pessoas e e estreitamento de relações com o próprio Criador.
O evangelho nos dá a única alternativa possível ao desastre ecológico: fazer do amor a pedra angular.
A primeira lei não é a superioridade do ser humano em relação ao cosmos senão a solidariedade cósmi-ca. “Tudo foi criado” para uma imensa e cósmica solidariedade.
Texto bíblico: Mt 21,33-43
Na oração: Mobilize seus sentidos para ver, ouvir, tocar, sentir e saborear a beleza de nossa terra.
- Considere sua conexão com esta beleza e como ela lhe faz perceber o amor da Trindade ao cosmos, em constante evolução.
- Considere o novo sentimento de maravilha que cresce em seu coração e como dá novo sentido à sua missão de colaborador(a) no grande jardim do Criador.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.10.23
“Qual dos dois fez a vontade do pai?” (Mt 21,31)
Em nosso contexto social e religioso reina a diplomacia do “transitar entre o sim e o não”, ou seja, dissimular, não ser claro, nem transparente, deixar as coisas numa certa e intencionada ambiguidade. Quando é pedido um “sim” ou um “não”, costuma-se deixar levar pela “covardia do meio termo”.
De fato, há tantos modos de evitar dar uma resposta clara, de não nos comprometer; até usamos desculpas convincentes para ocultar nossa incoerência. Dizer “sim” ou “não”, é rotundo, é radical, é ser coerente.
É isso que Jesus pede de seus seguidores(as).
O texto do evangelho deste domingo (26º Tempo Comum) nos convida a entrar no significado do “sim” e do “não” na vivência do seguimento e na nossa vida.
Procuremos entender o texto em seu contexto: o povo judeu disse “sim” ao aceitar a Lei de Moisés, mas se negou, através de seus dirigentes, a aceitar a proposta de Jesus. No entanto, os pagãos e os pecadores, que primeiro disseram “não”, ao final são aqueles que aceitaram o Reino, pois se deixaram impactar pelo modo de ser e de agir de Jesus. O “sim” foi sendo modelado a partir do chão da vida e não da Lei.
Para Jesus, a fidelidade a Deus não passa pela mera observância da Lei, mas pela prática de um amor incondicional. Ele transforma o modo de nos relacionar com o Pai, fundamentado no modo como Ele mesmo vive, não como o distante Deus do Templo, mas como o Abba próximo e comprometido com a vida. Isto desmonta o pedestal de uma religião super-estruturada ao redor das normas e das leis de pureza, de impureza, de sacrifícios como pagamento pelos pecados e que foram determinados pelos hierarcas que imitam a um “deus” distante, frio, a quem é preciso acalmá-lo com oferendas, sacrifícios e mortificações.
Para denunciar esta atitude petrificada e dúbia das autoridades religiosas, Jesus utiliza o inteligente e oriental recurso das parábolas. A “parábola dos dois filhos” chamados a trabalhar na vinha do pai está dirigida especialmente à infidelidade dos dirigentes religiosos: dizem, mas não fazem; são fiéis por fora, mas incoerentes por dentro.
Jesus nos pede hoje mais valor, mais audácia, mais claridade. Quer que o “sim” esteja acompanhado da obediência. Mas, obediência a quê e a quem?
Trata-se de uma obediência filial. O senhor da vinha convida seus próprios filhos para que vão trabalhar nela. Há um filho que tem sempre o “sim” na boca. Encanta-lhe viver do favor do pai e manter uma boa imagem de filho obediente. Mas, à hora da verdade, não trabalha na vinha; dedica-se a outras coisas. É um hipócrita.
O filho que tem um “não” na boca, vai e trabalha na vinha. Não se preocupa com sua boa imagem. Trabalha na vinha a partir do anonimato, a partir da não-ostentação. Ele é verdadeiramente o filho obediente.
O Evangelho deste domingo, usando a imagem de dois filhos chamados pelo pai a trabalhar na vinha, realça o verdadeiro sentido da “obediência”: significa dar audiência a quem merece. Se sabemos que Deus nos mostra um caminho incomparável, então obedecer-lhe é o melhor que podemos fazer; obedecemos por amor e não por medo. Neste caso, a obediência já não pode ser meramente formal, do tipo “sim, senhor”. Ela será um movimento do interior do coração, ela mexerá com o nosso íntimo.
A obediência não se restringe a cumprir mandatos, nem a seguir leis, pois ela está profundamente unida ao crer no outro; porque “entregamos o coração”, obedecemos, ou seja, entramos em sintonia com o coração do Outro. Porque “entregamos o coração”, na obediência nosso coração pulsa no mesmo ritmo do coração de Deus. Tal obediência, inspirada pela obediência de Jesus, não alimenta dependência nem atrofia nossa autonomia; pelo contrário, nos faz mais libres, criativos.
A obediência de Jesus brota de um autêntico e pleno exercício de sua liberdade. Por isso, a verdadeira obediência só é possível a partir da autonomia da pessoa e supõe necessariamente o exercício da liberdade.
Esta entrega radical só é possível no ambiente do amor e da intimidade.
Assim, a obediência pressupõe a liberdade; ainda mais, é uma expressão de ser livre frente à própria liberdade, quando a pessoa reconhece um referente superior que a fundamenta, porque só a partir deste referente chega a encontrar o sentido sobre si mesmo.
A originalidade da parábola está na afirmação que Jesus lança aos dirigentes religiosos daquela sociedade: “Eu vos asseguro que os publicanos e as prostitutas entrarão antes de vós no Reino de Deus”.
Sem dúvida, as palavras de Jesus soaram não só provocativas, mas diretamente heréticas e inclusive blasfe-mas aos ouvidos das pessoas “religiosas” que o escutavam. Afirmar que “publicanos e prostitutas” vão entrar na frente no Reino de Deus causa um profundo incômodo nas pessoas que reduzem suas vidas a cumprir leis, ritos, doutrinas, sem nenhuma sensibilidade solidária com aqueles que são colocados à margem.
Para a religião, o valor mais importante costuma ser a crença e a norma, não tanto a atitude nem o comportamento ético das pessoas.
Para Jesus não importam as crenças e normas, mas o amor e a bondade, ou seja, aquelas atitudes e ações que são coerentes com a verdade do que somos. Na nosso “eu profundo” temos reservas de bondade, de compaixão, de mansidão... e que devem ser ativadas continuamente.
Seguramente nem todos os publicanos e nem todas as prostitutas eram exemplos de amor e de bondade, mas Jesus via em seus corações mais verdade, humildade e humanidade que nos egos inflados dos chefes religiosos.
Que podia ver Jesus naqueles homens e mulheres desprezados por todos? Talvez sua humilhação. Quem sabe, um coração mais aberto a Deus e mais necessitado de seu perdão; ou ainda, uma compreensão e uma proximidade maior para com os últimos da sociedade. Talvez menos orgulho e prepotência que a dos escribas e sumos sacerdotes.
No entanto, hoje e sempre, vivem a verdadeira vontade do Pai aqueles(as) que traduzem em atos o evangelho de Jesus e aqueles(as) que se abrem com simplicidade e confiança ao seu perdão.
Em chave de “interioridade”, podemos dizer que estes dois filhos, estas duas atitudes, convivem dentro de nós. Somos aquela boa pessoa que diz “sim” ao projeto de Jesus, mas, quando toca o nosso ego ou os nossos interesses usamos desculpas mesquinhas, ou seja, não nos definimos, não nos comprometemos...
Quando não há coerência com nossas atitudes, com nossos “sins” e nossos “nãos”, um sentimento de ansiedade vai emergindo de nosso interior. Ou seja, nosso interior geme, porque sofremos certa angústia que pode se tornar crônica. Tal angústia vai, aos poucos, nos tornando rígidos, legalistas, marcados por uma tristeza interior causada pela mediocridade, pela falta de fôlego em colaborar com o projeto de Jesus.
“Sacerdotes e anciãos do povo” x “publicanos e prostitutas”: tais grupos estão também presentes, e em constante conflito, em nossa própria interioridade.
Como integrá-los e como conviver com eles para que nossa vida seja criativa e expansiva?
A parábola deste domingo nos convida a reconhecer e abraçar o “publicano” e a “prostituta” que cada um de nós carrega em nosso interior.
Simbolicamente, “publicano” e “prostituta” é aquela dimensão nossa que temos reprimida e escondida, nossa própria sombra. É claro que, enquanto não a reconhecermos, projetaremos nos outros o que em nós mesmos rejeitamos. Só quando abraçamos nossa “negatividade”, nos humanizamos, porque nos abrimos à humildade. E só então poderá emergir a bondade e a compaixão para com os outros.
Texto bíblico: Mt 21,28-32
Na oração: coloque-se diante de cada um dos filhos da parábola: qual deles determina sua vida?
- que atitudes prevalecem em seu “trabalho” na Vinha do Senhor?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.09.23
Imagem: parábola dos filhos de artista desconhecido
“Estes últimos trabalharam uma hora só, e tu os igualaste a nós, que suportamos o cansaço e o calor o dia inteiro” (Mt 20,12)
A liturgia deste domingo nos faz encontrar com uma parábola simples, mas reveladora de uma força impactante. Chega até nós como uma Boa Notícia que nos surpreende, nos desloca e pode até provocar em nós algumas reações controvertidas, inclusive resistências.
A parábola começa como muitas outras: “O Reino dos Céus é como a história do patrão...”. Ela vai desve-lando o modo provocativo de agir deste personagem, o mistério mais profundo de seu ser, a profundidade e a coerência de sua bondade e de seu amor. Diante deste mistério não podemos permanecer indiferentes.
A parábola nos coloca diante de um senhor que sai de sua casa e vai, pessoalmente, buscar trabalhadores para sua vinha, em diferentes horários do dia. A seguir vem o núcleo do relato, o fato que muda o tom e provoca reações diferentes. No fim do dia paga a todos o mesmo valor que lhes havia prometido. E, o mais estranho, é que começa a pagar pelos últimos. Tal atitude provoca reações de protesto nos ouvintes.
O dono da vinha parece estar sendo muito injusto. Os primeiros que foram chamados trabalharam várias horas a fio e aturaram o calor do dia. Como, então, o senhor pode dar o mesmo salário àqueles que trabalha-ram apenas uma hora? Parece que estamos diante de uma tremenda “injustiça”. Vivemos a cultura da meritocracia; cada um deve receber segundo seu esforço ou suas conquistas.
Quanta importância é dada aos méritos: na vida, na sociedade, na educação, na religião! Para isso existem as homenagens, premiações, reconhecimentos públicos, livros comemorativos, nomeações honoríficas...
Escutamos com frequência: “mereceu pelo que fez!”; “depois de tanto esforço realizado, era justo que ganhasse o prêmio!” Cremos que faz parte da justiça “ganhar quem merece, que trabalhou mais, quem se esforçou mais...” Inclusive, quando fazemos elogio a uma pessoa que faleceu, destacamos sempre seus méritos: o que ela fez, a qualidade de suas obras, o prestígio que foi conquistando, o trabalho que realizou...
A ideia do mérito perpassa todas as dimensões da existência, incluída a dimensão religiosa, onde dá lugar a uma “religião mercantilista”, que conduz facilmente ao farisaísmo: o fiel não só presume de suas boas obras, mas se considera “justo”, acima dos outros, e merecedor dos favores divinos (ou com “direitos” diante de Deus). É a “religião do ego”. Porque não é justo que “os últimos sejam os primeiros”.
O evangelho deste domingo revela-se desconcertante, porque rompe o sistema vigente da retribuição dos méritos. O Senhor do Universo não é “deus mesquinho” que estabelecer uma “contabilidade” para premiar ou retribuir seus filhos e filhas. “Os primeiros serão os últimos e os últimos serão os primeiros”, afirma Jesus com contundência. “Trabalhar na vinha do Senhor” não é questão de quantidade, mas de qualidade. Já é um privilégio o fato de sermos chamados a colaborar e devemos aproveitar da oportunidade que nos é oferecida. Aqui não há lugar para comparação, competição e inveja.
Os trabalhadores da primeira hora revelam que sua vida tem um sentido interesseiro. Eles trabalham e, ao final do dia, recebem um salário adequado: o pagamento combinado de um denário, que na época corres-pondia ao preço justo de uma diária. Mas, assim que começam a se comparar com aqueles que trabalharam menos do que eles, ficam insatisfeitos e pensam: “teria sido mais fácil se tivéssemos começado a traba-lhar mais tarde”. Assim confessam que, para eles, o trabalho significa um fardo; e o calor, sofrimento.
Há um outro aspecto interessante revelado pela mesma parábola. Aqueles de primeira hora que se queixam do mesmo tratamento dado a todos pelo senhor, mostram-se incapazes de compreender a atitude do dono da vinha. Eles não têm direito a exigir, porque foi combinado um “denário” pela diária, mas se sentem mal que os últimos recebam o mesmo tratamento que eles.
Com esta parábola o evangelho pretende fazer saltar pelos ares a ideia de um Deus que reparte seus favores segundo o grau de fidelidade às suas leis, ou pior ainda, segundo seu capricho. Salta à vista a novidade da mensagem de Jesus, uma novidade que pode ser resumida numa palavra: gratuidade.
Infelizmente, continuamos cultuando a um “deus mesquinho” e que nos interessava manter. Na realidade, nada temos que “esperar” de Deus; Ele já nos deu tudo desde o princípio; basta nos abrir ao seu dom total, que é já uma realidade, embora ainda não tenhamos descoberto isto.
A mensagem da parábola é evangelho, boa notícia: Deus é igual para todos: amor, dom infinito. Devemos proclamar isso para todos, sem exceção. Não podemos ter a pretensão de aplicar a Deus nosso conceito de “justiça religiosa interesseira” que consiste em sermos bons para que Deus nos premie ou, pelo menos, para que não nos castigue.
No fundo, o que a parábola deixa transparecer é a queixa daqueles que se sentem “injustiçados” porque foram chamados ao amanhecer e receberam a mesmo valor daqueles que foram chamados ao longo do dia. É a queixa que brota da comparação com os outros e que expressa nossa mentalidade estreita e nossos cálculos mesquinhos. Tal atitude nos revela que não conhecemos o nosso Deus. Relacionamo-nos com Ele como o assalariado com seu empregador, ou seja, mais trabalho, mais soldo.
A queixa também revela um pecado de raiz, escondido em todos nós: a inveja. Sentimos inveja porque os outros têm algo que não temos, sentimo-nos prejudicadas por Deus e pelo destino. Quanto mais nos comparamos com outros, mais insatisfeitos ficamos. Sentimo-nos injustiçados e bloqueamos nossa própria vida. Poucos sentimentos humanos causam tanto sofrimento e interferências nas relações entre as pessoas como a inveja. Esta emoção negativa só serve para produzir lamúrias, queixas, amarguras, naquele que é invejoso, e provoca desconcerto e incompreensão naquele que é invejado.
A inveja nos corrói por dentro, nos morde, nos faz dobrar sobre nós mesmos. E, ao mesmo tempo, coloca uma barreira entre nós e aqueles a quem invejamos. Assim, nos convertemos em rivais, em inimigos, em objeto de menosprezo. Na realidade, o objeto invejado é o de menos. Pode ser o trabalho, um bem material, uma relação pessoal, uma conquista... O terrível é como a inveja mata a relação. E como vamos nos fechando em um poço de amarguras e queixas, esquecemo-nos de todos os dons e benefícios que temos.
Que atitudes sadias devemos assumir para não deixar que a inveja e a comparação determinem nossa vida?
Frente à comparação e à inveja, talvez o mais urgente seria despertar a gratidão, o olhar lúcido e consciente à nossa própria vida. Aprender a valorizar os muitos dons que temos, os benefícios que continuamente recebemos e que são oportunidades que nem todos têm. Aprender a reconhecer e celebrar os dons próprios, os recursos originais, as conquistas pessoais...
Uma outra atitude seria a de ativar a alegria pelo bem alheio, aprender a vibrar com as conquistas dos outros.
Alegrar-se com a alegria do outro é a expressão máxima de maturidade, de descentramento, de gratuidade.
A gratidão nos revela que tudo o que somos ou temos foi dado por Deus e recebido por nós; tudo foi e é graça, como se lê na carta de Paulo: “em que você é mais que os outros? O que é que você possui que não tenha recebido?” (1Cor 4,7). O fato mesmo de “ir à vinha na primeira hora” já é um presente, um privilégio, uma oportunidade a ser vivida com intensidade, em comunhão com os outros.
Quando compreendemos a verdade do que somos, ou seja, plenitude de vida, deixamos de nos apropriar dos resultados; atuamos sem a ganância do fruto; nossas ações nascem e fluem a partir da compreensão do que somos; o orgulho no êxito e a culpa no fracasso se esvaziam; acabam a comparação, o juízo e a desqualificação dos outros.
Texto bíblico: Mt 20,1-16
Na oração: Alimente uma “memória sadia”, reconhecendo que tudo é Graça, “de graça”, que você é uma pessoa “agraciada”, “cheia de graça”...
- O agradecimento é, para S. Inácio, a experiência humana que mais pura e decididamente mobiliza a generosidade da pessoa; a gratidão é a mais agradável das virtudes: que virtude mais leve, alegre, mais luminosa, mais humilde, mais feliz!!! É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como a gratidão sem causa, uma gratidão incondicional. Gratidão = desfrutar a eternidade no cotidiano da vida.
- Viva em contínua “ação de graças”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.09.23
imagem: pexels.com
“Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete” (Mt 18,22)
O evangelho deste domingo também faz parte do chamado “discurso comunitário”, onde Jesus insiste na importância decisiva do perdão como atitude permanente para manter unida sua comunidade de seguido-res(as). Ele insiste fortemente sobre esta virtude porque esta é uma necessidade vital quando a vida é ferida por ofensas, rupturas, conflitos... O perdão re-situa as pessoas na grande corrente da vida; busca restabele-cer um vínculo positivo entre vidas feridas, vidas que se ferem e vidas que as rodeiam.
Jesus vive comprometido com a vida saudável, e faz a vida crescer de forma integral, sem divisões. Ele devolve às pessoas a saúde em seus corpos, em suas emoções, projetos e relações; ele reconstrói os vínculos quebrados e move sua comunidade a viver o perdão como atitude contínua de vida.
De fato, o perdão é uma experiência forte de querer re-conectar-se com a vida; quer, para as partes envolvidas no conflito, abrir uma porta à vida; manifesta-se como força capaz de derrubar um muro feito de ódio, de violência, de sentimentos feridos, de agressividade destrutiva. O perdão busca estabelecer uma aposta pela vida. É uma atitude realista, vivida em profundidade e a longo prazo.
O perdão não é esquecimento e negação do mal-feito, mas recriador e portador de nova vida.
A experiência do perdão, mais forte que o mal, alarga o coração e nos convida a ter mais compaixão.
Por ser um atributo tão nobre, o perdão configura o ser humano à imagem de Deus.
O perdão é divino porque, para o ser humano, ele é verdadeiramente divino em seus efeitos e em seu próprio processo; ele traz em si algo de divino, que significa efetivo recomeço, como um novo momento inaugural (uma nova criação, segundo a Bíblia).
O perdão é um dom que abre para uma história nova. Ao se fazer oferta, o perdão se propõe abrir um novo caminho; ele evoca uma nova aliança. Por isso, o perdão não é apenas um ato criador, mas “re-criador”, portador de uma nova vida. Restaura o amor e seu mais belo fruto, a comunhão das pessoas.
O perdão abre uma nova história. O perdão não deleta o ato causador do mal; ele toma a iniciativa de uma nova oportunidade de vida. E como houve uma ruptura de continuidade, ele se propõe abrir um novo caminho, virar a página e escrever um novo capítulo.
“O perdão não é o esquecimento do passado, é o risco de um futuro diferente daquele que foi imposto
pelo passado ou pela memória” (Christian Duquoc).
Os recursos do verdadeiro perdão são infinitos. Eles jamais acabam. O perdão é “alargamento do coração humano”, é movimento, é expansão de si, é des-centramento... e impulso na direção do outro.
O prefixo “per” é o mesmo que encontramos nos verbos per-correr, per-durar, per-fazer..., e leva à ple-nitude a ação expressa pelo verbo. O prefixo “per” denota intensidade, profundidade.
No latim, “per-donum” significa dom levado à perfeição; ou “per-donare”, significa dar prova de uma extrema generosidade. O perdão é um dom que nos permite ir além de nós mesmos; é um dom em excesso.
Perdoar é doar-se em plenitude; é dar mais que o ofensor merece.
O perdão é o dom realizando-se no supremo grau de sua gratuidade; é uma atitude de quem não se prende ao que o outro merece e nem se escandaliza com sua miséria.
“Devemos perdoar como pecadores e não como justos”.
A plenitude do dom é a vida. Perdoar é restituir a vida a quem nos ofendeu. Toda ofensa, em qualquer grau, é um atentado contra a vida.
O perdão restabelece a ordem da vida. Quem perdoa e quem é perdoado saem mais verdadeiros, mais inteiros, mais humanos depois desse gesto.
O perdão realmente transforma vidas. Quando nós vemos o que acontece quando as pessoas se perdoam, nós sabemos que estamos diante de uma das mais eficazes forças na experiência humana. Por isso, segundo Jesus, o verdadeiro perdão não tem limite (77x7). O perdão precisa ser um gesto repetido muitas vezes até se tornar um “hábito do coração”.
É um processo voluntário no qual, quando perdoamos, optamos não por revidar, mas, pelo contrário, optamos por responder de maneira amorosa e criativa a quem nos causou danos ou ofensas. Perdoar se revela uma atitude virtuosa porque nos coloca inclusive acima de nós mesmos, do nosso primeiro instinto de vingança; nos situa no melhor de nós mesmos.
Em si mesmo, o perdão é um ato não de justiça, mas de amor; sua gratuidade é superior a tudo o que a justiça poderia requerer. Perdoar é ir mais longe que a lei, mais longe que a consciência.
O perdão é uma recusa ética de julgar o outro, quer dizer, um “alargamento do coração humano”; em outras palavras, um amar mais. Quem ama gosta de perdoar, porque dessa forma demonstra melhor seu amor.
Quanto mais se ama mais se perdoa, porque a delicadeza do coração permite perceber todas as feridas infligidas à comunhão das pessoas. Perdoar é amar mais. De fato, não perdoar é sempre amar menos, é viver sob o regime da aspereza, da amargura, da tristeza que acabam por se estender aos mais próximos e envenenar as relações dos seres mais queridos.
O perdão restaura o amor e seu mais belo fruto, a comunhão das pessoas.
Enfim, perdão é amor que reconstrói o passado. Só quem doa amor ao ofensor dá-lhe as condições profundas de contrição, compunção, compaixão e arrependimento, as quatro vias através dos quais o ser humano pode renascer de si mesmo e das trevas, trocando a morte pela vida.
Por ser o gesto mais difícil e elevado, o perdão é a única forma de permitir ao ofensor a entrada de amor no seu coração. Qualquer forma de cobrança, punição e vingança reforça a crueldade do ofensor e, de certa forma, vai fazê-lo sentir-se justificado.
Quem não busca perdoar e quem resiste receber o perdão correm o risco de ficarem com uma liberdade atrofiada e uma vida diminuída. Todo obstáculo ao perdão é um obstáculo ao amor.
O perdão busca precisamente esse desbloqueio, para que a vida possa fluir.
Portanto, é no perdoar que somos divinizados: “errar é humano, perdoar é divino”.
O perdão reconstrói a paz interior, a paz na família e nas relações sociais, a paz entre os povos. E essa reconciliação entre nós se torna sacramento da reconciliação com Deus, o último elo e o mais importante do perdão. Perdoados por Deus e transformados interiormente por tal graça, nascemos de novo.
Texto bíblico: Mt 18,21-35
Na oração: Fazer “memória” dos momentos em que você experimentou a força criativa do perdão do outro, ou foi presença por onde fluiu o verdadeiro perdão.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
14.09.2023
imagem: pexels.com
Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente. 19. Rezar e servir com alegria: Kateri Tekakwitha, primeira santa nativa da América do Norte
Agora, continuando a nossa catequese sobre o tema do zelo apostólico e da paixão pelo anúncio do Evangelho, hoje olhemos para Santa Kateri Tekakwitha, a primeira nativa da América do Norte que foi canonizada. Nascida por volta de 1656 num povoado do norte do Estado de Nova Iorque, era filha de um chefe Mohawk não batizado e de uma mãe cristã Algonquina, que ensinou Kateri a rezar e a entoar hinos a Deus. Muitos de nós também fomos apresentados ao Senhor pela primeira vez no âmbito familiar, sobretudo pelas nossas mães e avós. Começa assim a evangelização; aliás, não esqueçamos isto, que a fé é sempre transmitida em dialeto pelas mães, pelas avós. A fé deve ser transmitida em dialeto e nós recebemo-la neste dialeto das mães e das avós. A evangelização começa muitas vezes assim: com gestos simples, pequenos, como os pais que ajudam os filhos a aprender a falar com Deus na oração, narrando-lhes o seu amor grande e misericordioso. E as bases da fé para Kateri, e muitas vezes também para nós, foram lançadas deste modo. Ela recebeu-a da mãe em dialeto, o dialeto da fé.
Quando Kateri tinha quatro anos, uma grave epidemia de varíola atingiu o seu povo. Os seus pais e o seu irmão mais novo morreram e Kateri ficou com cicatrizes no rosto e problemas de vista. A partir daquele momento, Kateri teve que enfrentar muitas dificuldades: certamente as físicas devido aos efeitos da varíola, mas também as incompreensões, perseguições e até ameaças de morte que sofreu após o seu batismo, no domingo de Páscoa de 1676. Tudo isto incutiu em Kateri um grande amor pela cruz, sinal definitivo do amor de Cristo, que se ofereceu até ao fim por nós. Com efeito, o testemunho do Evangelho não consiste apenas no que é agradável; devemos também saber carregar as nossas cruzes quotidianas com paciência, confiança e esperança. A paciência perante as dificuldades, diante das cruzes: a paciência é uma grande virtude cristã. Quem não tem paciência não é um bom cristão. A paciência de tolerar: tolerar as dificuldades e tolerar também os outros, que às vezes são tediosos ou nos causam dificuldades... A vida de Kateri Tekakwitha mostra-nos que cada desafio pode ser superado, se abrirmos o coração a Jesus, que nos concede a graça de que precisamos: paciência e coração aberto a Jesus, eis uma receita para viver bem!
Depois de ter sido batizada, Kateri foi obrigada a refugiar-se entre os Mohawks na missão dos Jesuítas, perto da cidade de Montreal. Ali, assistia à Missa todas as manhãs, dedicava-se à adoração diante do Santíssimo Sacramento, recitava o terço e levava uma vida de penitência. Estas suas práticas espirituais impressionaram todos na Missão; reconheciam em Kateri uma santidade que atraía, porque nascia do seu profundo amor a Deus. Atrair é próprio da santidade. Deus chama-nos por atração, chama-nos com o desejo de permanecer próximo de nós, e ela sentiu esta graça da atração divina. Ao mesmo tempo, ensinava as crianças da Missão a rezar e, através do cumprimento constante das suas responsabilidades, incluindo o cuidado dos doentes e dos idosos, oferecia um exemplo de serviço humilde e amoroso a Deus e ao próximo. A fé manifesta-se sempre no serviço. A fé não é para nos enganarmos a nós mesmos, à alma: não, é para servir.
Embora fosse encorajada a casar-se, ao contrário Kateri queria dedicar completamente a sua vida a Cristo. Impossibilitada de entrar na vida consagrada, emitiu o voto de virgindade perpétua a 25 de março de 1679. Esta sua escolha revela outro aspeto do zelo apostólico que ela tinha: a dedicação total ao Senhor. É claro que nem todos são chamados a fazer o mesmo voto de Kateri; no entanto, cada cristão é chamado, todos os dias, a empenhar-se com um coração indiviso na vocação e na missão que Deus lhe confiou, servindo a Ele e ao próximo em espírito de caridade.
Caros irmãos e irmãs, a vida de Kateri é mais um testemunho de que o zelo apostólico implica tanto uma união com Jesus, alimentada pela oração e pelos Sacramentos, como o desejo de difundir a beleza da mensagem cristã através da fidelidade à própria vocação particular. As últimas palavras de Kateri são maravilhosas. Antes de morrer, disse: “Jesus, amo-te!”.
Portanto, também nós, haurindo força do Senhor, como fez Santa Kateri Tekakwitha, aprendamos a realizar as ações ordinárias de maneira extraordinária, e assim a crescer todos os dias na fé, na caridade e no testemunho zeloso de Cristo.
Não nos esqueçamos: cada um de nós é chamado à santidade, à santidade de todos os dias, à santidade da vida cristã comum. Cada um de nós tem esta vocação: vamos em frente ao longo deste caminho. O Senhor não nos abandonará!
Papa Francisco
23 de agosto de 2023
Audiência geral
“Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí, no meio deles” (Mt 18,20)
O evangelho deste domingo (23º Dom Tempo Comum) faz parte do chamado “discurso comunitário”, onde Mateus recolhe os ensinamentos de Jesus a respeito das “relações oblativas” que devem reinar em sua comunidade.
De fato, em seu ministério público, Jesus não só se revela como o “fundamento” da comunidade dos seus discípulos, mas ativa aqueles “atributos” que são essenciais para alimentar os vínculos entre aqueles(as) que o seguem: “tornar-se como criança”, “não ser pedra de tropeço para os pequenos”, “cuidado com a ovelha que se perde”, “a vivência do perdão”, “a correção fraterna”, “a oração em comum”...
Profundo conhecedor da condição humana, Jesus tinha plena consciência que o ser humano é frágil, limitado, e que nenhuma comunidade subsiste sem uma contínua atitude de abertura e de acolhida do “outro”.
Sabemos por experiência que a presença do outro (“alter” em latim) sempre nos “altera”.
O ser humano é incapaz de amadurecer em solidão. Desde nosso nascimento, viemos ao mundo em um estado de fragilidade que faria morrer muitos animais; por isso, precisamos uns dos outros. Fomos concebi-dos dentro de uma matriz de relações e vivemos sempre em um mundo densamente povoado de surpreen-dentes presenças humanas, que são imprescindíveis para chegarmos a ser “pessoas”.As relações interpessoais são fundamentais em nossa vida. Portanto, somos chamados a acolher os outros, reconhecer sua dignidade, sentir-nos responsáveis por eles, assumir a alteridade como princípio e lugar de crescimento e de formação pessoal...
O Evangelho de hoje aponta para esta realidade: nós nos constituímos como “humanos” pelas nossas relações; em outras palavras, só nas relações com os outros podemos crescer em humanidade.
Estamos sempre em contato com o “outro”. E o outro é pessoa. O outro revela certa magia, ao mesmo tempo sedutor e enigmático. O outro é plural, apresenta múltiplos rostos; é diferente, inédito... Só seremos nós mesmos quando alguém nos descobre, nos acolhe, nos aceita... respeita nossa verdadeira identidade. O outro é a realidade que nos permite tomar consciência de nós mesmos.
Essa identidade se revela por meio das relações: ninguém cresce sozinho, precisamos dos outros; preci-samos viver relações sadias e maduras com os outros (família, amigos, trabalho, grupos, comunidades...). Nesse sentido, uma pessoa encontra somente sua realização na interação com o ambiente que a cerca.
O ser humano está comprometido com os outros; por sua própria natureza, ele se torna pessoa humana somente em interação com os outros; ele possui impulsos naturais que o levam em direção ao convívio, à cooperação, à comunhão...; ele é reserva de humanidade e compromete-se com a dignidade humana.
O ser humano é um ser constitutivamente aberto, essencialmente em referência a outras pessoas: estabe-lece com os outros uma interação, entrelaça-se com eles, e forma um nós: a comunidade.
Mas, o “discurso comunitário” em Mateus nos adverte que não podemos partir de uma comunidade de “perfeitos”, mas de uma “comunidade de irmãos” que reconhecem suas limitações, fragilidades... e necessitam do apoio mútuo para superar as dificuldades e reforçar os laços internos.
“Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu...” Esta expressão fora dita, anteriormente a Pedro (cf. Mt 16,19), como presença de unidade e comunhão da comunidade. Agora Mateus expõe que a graça (e o dever) de perdoar é concedido a toda a comunidade, a cada membro. Ninguém fica excluído da busca de diálogo ou de soluções diante de um conflito. É de todos a responsabilidade da marcha comunitária e do bem comum. A todos lhes é exigido uma maturidade que vai sendo alcançada, pouco a pouco. Para isso, a correção fraterna e o acompanhamento mútuo se fazem indispensáveis.
A comunidade é a última instância de nossas relações com Deus e com os demais. O Evangelho de hoje insiste que é preciso esgotar todos os recursos para ajudar o outro a sair de seu erro. Qualquer pessoa que, sem saber, vai pelo caminho equivocado, agradeceria se alguém lhe indicasse, com amor, seu erro e lhe mostrasse o verdadeiro caminho. Se ao fazer hoje a correção fraterna, damos por suposto que o outro tem má vontade, será impossível que ele aceite a retificação. A partir dessa perspectiva estamos dando por suposto que nós somos bons e o outro é mau.
A correção fraterna é um sinal de grandeza e delicado amor; começa com a correção a sós; caso não tenha resultado, chamar outros dois ou três e, se for preciso, recorrer à comunidade.
Numa comunidade cristã todos devemos ser acolhidos com nossas limitações e capacidades, com nossos erros e acertos; a comunidade cristã, se é comunidade e se é cristã, não é espaço de acusação e julgamento quando nos equivocamos; nela somos absolvidos quando somos culpados, somos buscados quando nos perdemos, somos perdoados quando erramos.
A correção fraterna não é condenar, ou castigar, ou expulsar, mas des-velar as limitações, sem ódio, sem espírito de crítica, de vingança, sem rancor. O objeto da correção fraterna não é dizer que eu tenho razão e que o outro está equivocado e, por isso, é mal. O objeto da correção não é sancionar para servir de lição. O objeto da correção fraterna é “ganhar” o irmão.
É no horizonte do amor que a correção fraterna acontece e não no horizonte da lei. O amor e a caridade são muito superiores a uma justiça entendida a partir de uma mera aplicação da lei corretiva.
É muito difícil cumprir hoje esse encargo da correção fraterna porque ela está pensada para uma comunidade, e o que hoje mais falta é precisamente o sentido de “comunidade”.
O sentido da relação, sadia e amorosa, com os outros é um dom de Deus, que nos foi dado a todos.
Deus nos fez amor para o mútuo encontro, para a doação, para a comunhão...
Fomos criados “à imagem e semelhança” do Deus Trindade, comunhão de Pessoas (Pai-Filho-Espírito Santo). Como criaturas, fomos atingidos pela marca trinitária de Deus. Quanto mais unidos somos, por causa do amor que circula entre nós, mais nos parecemos com o Deus Trindade. “Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu Amor em nós é perfeito” (1Jo. 4,12).
Deus colocou em nossos corações impulsos naturais que nos levam em direção ao convívio, à cooperação, à acolhida, à solidariedade...
Deus é o ponto focal para enxergarmos o outro. Se há “eu” e se há “tu”, então a presença de Deus se revela.
A fraternidade, a vida em comum se mede pelo amor, por atos e gestos de doação, de perdão, por vivências de comunhão, por experi-ências de partilha do mesmo ser, da mesma vida, da entrega mútua...
O amor é olhar o outro com olhos tão limpos, bondosos, desinteres-sados, tão profundos, que só desejamos que o outro seja único e ori-ginal, na sua verdadeira identidade.
O autêntico seguimento de Jesus, portanto, significa que a qualidade da comunidade possibilita encontros cheios de graça.
As duas realidades – pessoa e comunidade – se condicionam e se complementam. “A pessoa faz a comunidade e a comunidade faz a pessoa”.
Texto bíblico: Mt 18,15-20
Na oração: Não podemos esquecer que cada um de nós é um “outro” para os outros.
E poderíamos nos perguntar que espécie de “outro” temos sido para os outros.
- Ser “outro” é mandamento, é apelo à responsabilidade, à ajuda mútua, ao perdão re-construtor...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
07 de setembro de 2023
“Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga” (Mt 16,24)
A paixão-morte de Jesus foi, para os primeiros cristãos, o ponto mais impactante de suas vidas. Seguramente, o primeiro núcleo dos evangelhos foi constituído pelo relato da paixão-morte de Jesus. Não nos deve estranhar que, ao relatar o restante de sua vida, se faça a partir dessa perspectiva.
Por isso, até quatro vezes Jesus anuncia sua paixão e morte no evangelho de Mateus. Não era preciso ser profeta para dar-se conta de que a vida d’Ele corria sério perigo. O que Ele dizia e o que fazia ia contra à religião oficial, e os encarregados de sua custódia tinham o poder suficiente para eliminar uma pessoa tão perigosa para seus interesses. Até seus familiares mais próximos quiseram impedi-lo, forçando-o a levá-lo para sua casa, porque havia escolhido um caminho de loucos.
Pedro se rebela só de imaginar Jesus Crucificado. Não quer vê-Lo fracassado; só quer seguir a Jesus vito-rioso e triunfante. Também nossa sociedade, marcada pelo imediatismo, competitividade, busca de resulta-dos e rejeição a todo tipo de fracasso, a presença da Cruz é um escândalo inaceitável. De fato, nela mesma, a Cruz não tem sentido. Se a Cruz é de tal modo exaltada, fazendo com que a vida e a ação de Jesus fiquem reduzidas a ela, então acontece que ela se torna angustiante e aflitiva, incapaz de motivar ao seguimento ou de acender a esperança.
Jesus não morre na cruz para buscar o sofrimento, mas por ser consequente até o fim com sua mensagem: o amor incondicional do Deus da vida. Ele não fugiu, não contemporizou, não deixou de anunciar e testemunhar, embora isso o levasse a ser crucificado.
Nesse sentido, a Cruz de Jesus não permanece confinada em si mesma; ela se insere no interior da paixão dolorosa do mundo e seu sentido mais profundo reside em sua solidariedade para com todos os crucificados da história.
Com a Cruz “descemos” com Jesus até à cruz da humanidade. A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradi-ções sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, identificado com os crucificados da história. Como diz Jon Sobrino, não podemos crer no Crucificado de um modo coerente se não estamos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão dependurados nela.
A cruz e a morte só são dignas quando são consequência da luta contra a “cruz” e a “morte” impostas às pessoas e quando expressam solidariedade com os crucificados. Aqui há espaço de transformação.
A cruz se ilumina quando requer o abraço de uma situação inevitável. Se a enfermidade não tem cura, se a morte de um ser querido nos arrebata, se uma catástrofe natural nos deixa impotentes, se a denúncia profética de uma injustiça acarreta perseguições etc., crescemos quando abraçamos essa cruz e a superamos espiritualmente.
A Cruz liberta quando não termina nela mesma, mas na ressurreição. Enquanto a carregamos é leve se ela aponta para um horizonte de esperança. “Vinde a mim, vós todos que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso... Porque meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11-28-30). Mas, para carregar a Cruz como Jesus, é preciso passar por um processo de esvaziamento de nosso “falso eu” que, continuamente, busca seus interesses, alimenta vaidades, quer ser o centro das atenções, sem nenhuma sensibilidade solidária com os sofredores e vítimas de uma sociedade que violenta e exclui.
O chamado de Jesus a “renunciar a si mesmo” é um convite ao descentramento, a não viver girando obsessivamente sobre o próprio eu. Os místicos falam com frequência da “morte do próprio eu”, e da felicidade que brota do interior quando a pessoa se deixa possuir pelo amor de Deus.
Há uma forma de viver agarrada ao próprio eu, que é fonte permanente de sofrimento. Muitas vezes, o que mais sofrimento gera na pessoa é precisamente esse modo de viver apegado a ela mesma, buscando cegamente e acima de tudo o próprio êxito, a boa imagem, a aprovação e a estima dos demais. Esse cultivo equivocado do ego inflado se converte em fonte de preocupação e sofrimento.
Inconscientemente, a pessoa pode alimentar falsamente seu “ego” e inclusive agigantando-o de forma desproporcional, organizando todo seu entorno a partir dele: minha pátria, meu partido, minha igreja, minha ideologia; o ego vai então ficando cada vez mais seduzido e mais exposto a toda sorte de problemas.
A atitude mais saudável está em tomar consciência de que a origem de tanto sofrimento inútil está no indivíduo mesmo, nesse coração cheio de egoísmo, de apegos, de invejas, de falsas ilusões, de sede de poder, de ressentimento, de vazio interior... Da mesma forma que a dor física é um sinal de alerta que avisa que algo funciona mal no organismo, existe todo um conjunto de sofrimentos que revelam modos equivocados de viver: apegos, servidões, contradições e incoerências que impedem um desenvolvimento sadio da pessoa.
Este sofrimento não é uma cruz que devemos carregar, mas uma carga que devemos “soltar”, se quisermos viver com o espírito de entrega de Jesus
No que se refere à experiência específica de seguimento, deveríamos retomar o sentido da mensagem de Jesus referente ao “negar-se a si mesmo” para poder viver. “A negação de si” enquanto negação daquilo que nega a vida. “Negar-se a si mesmo” é deixar de identificar-nos com a tirania das mensagens de nossos pequenos “eus”, que se refletem em nossa própria linguagem.
“Negar-se a si mesmo” é um conselho sábio: significa negar o que na realidade “não somos”, despertar da ilusão e do engano, deixar de girar em torno de um suposto “eu” que não existe, para viver a unidade de todos e de tudo em Deus e agir assim de um modo coerente na vida.
Não somos um pequeno “ego” que cremos ser. Precisamos despertar dessa ilusão e entrar em contato com nosso verdadeiro Eu, nosso Ser e, a partir dele, olhar a vida, olhar nossa atividade e olhar os outros, a fim de viver em conformidade com quem somos em profundidade. É esse o modo de “ganhar a vida”.
Precisamos perceber que aquilo que para nosso ego é “perda” e perigo, para nosso Eu verdadeiro é ganho profundo e libertação. Ganhamos mais vida quando ela se esvazia de “ego” e se deixa conduzir pelo amor oblativo que procede d’Aquele que é pura fonte de Amor.
Texto bíblico: Mt 16,21-27
Na oração: Todos nós somos habitados por um conjunto de “eus”, alguns conscientes, outros inconscientes. São os “pequenos amores” ocultos (um eu orgulhoso, irado, triste, prepotente, avarento, luxurioso...) que habitam reprimidos nosso interior. São elementos de nossa própria sombra, aos quais deveremos prestar atenção se quisermos avançar rumo a uma pleni-tude humana e espiritual. Uma experiência espiritual profunda consiste em estar cada vez mais lúcidos com relação a eles e identificando-nos prazerosamente com nosso Eu verdadeiro.
- Quais são seus “amores” (afetos desordenados que exigem alto investimento) que fragilizam e atrofiam o seguimento de Jesus?
- Diante da presença inspiradora da Graça, dê “nomes” aos seus “falsos eus” para não se deixar determinar por eles. Ao mesmo tempo “dê nomes” às expressões do seu “eu” original, que plenificam e dão sentido à sua vida.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.08.23
“Tu és pedra, e sobre esta rocha eu construirei minha Igreja” (Mt. 16,18)
O evangelho deste domingo (21º Dom. Tempo Comum) nos situa num destes momentos em que Pedro, com sua habitual ousadia e rapidez, responde à pergunta que Jesus lhes dirige sobre sua identidade: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Diante da pronta confissão Jesus o chamou, em hebraico, “Kephas”.
O texto grego usa duas expressões: “petros” e “petra”. Simão é por si mesmo um “petros” (pedregulho, cascalho), mas, através de sua confissão messiânica, afirmando que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo, ele realizou uma missão essencial no princípio da igreja; assim, o mesmo Jesus acolheu esta profissão de fé e lhe chamou bem-aventurado (“makarios”), acrescentando que sobre a rocha da confissão de Pedro (“petra”) edificará sua Igreja.
Por ter recebido uma revelação muito alta de Deus, o próprio Simão que em si mesmo é “petros” (pedra movediça, incapaz de ser alicerce) se converte, de maneira muito profunda, em Petra/rocha firme, revelan-do-se o alicerce da nova comunidade. O texto distingue e vincula assim duas palavras fundamentais: a) Pe-tros (Pedro masculino), pedra-cascalho do caminho; b) Petra (rocha, feminino), na qual se expressa a reve-lação do Pai (“não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu”).
A realidade de Pedro está vinculada à sua história familiar, ao mundo conhecido ao qual pertence, à sua personalidade: é Simão (“petros”). No entanto, o olhar intenso e profundo de Jesus vai mais além, “perfura” essa realidade, descobrindo em Pedro a sua verdadeira identidade para o qual foi chamado a ser, ao se abrir à Graça: é “Petra” (Cefas). A missão para a qual foi chamado a ser, Pedro ainda não a conhece, mas é um dom que lhe foi dado já desde antes de nascer.A acolhida de Jesus se expressa na palavra de verdade oferecida e não imposta, uma palavra que o leva a dialogar consigo mesmo e a aprofundar: “Tu és ‘petros’ e sobre esta ‘Petra’ construirei a minha Igreja”.
Pedro aparece, então, como o primeiro discípulo que manifesta sua fé pessoal em Jesus. E o evangelho faz um convite para que cada pessoa, cada seguidor(a), expresse para si mesmo qual é sua fé em Jesus.
Como consequência, essa mesma fé, que aflorou na primeira comunidade cristã, é a que emerge e se prolonga, ao longo dos séculos, em cada seguidor(a) de Jesus, com sua fortaleza (petra-rocha) e, ao mesmo tempo, com sua fragilidade (petros-pedra); sem dogmatismos nem doutrinas, mas com a modesta manifes-tação de alguém que se sente interpelado e animado pelo modo como Jesus viveu e pelos estímulos que Ele lhe deu para caminhar na direção da nova humanidade.
Por isso, continua sendo decisiva a pergunta de Jesus: “E vós, quem dizeis que eu sou?” No entanto, não basta ter uma ideia clara sobre Ele ou um conceito teológico apurado, mas viver uma relação que se expressa como adesão a um estilo de vida cristificado.
O seguimento de Jesus não é questão de razão ou um profundo conhecimento da cristologia; é questão de sedução, de atração, de paixão... Só podemos responder à sua pergunta com o coração. Se a pessoa de Jesus – seu modo de ser e viver – não provoca um impacto afetivo em nosso interior, o seguimento vai se tornando estéril e sem maiores implicações na vida.
A pergunta sobre “quem é Jesus para nós” é fundamental para radicalizar nosso seguimento, e é fundamental para entendermos a nós mesmos; cada um precisa se situar de maneira única e original diante da mesma pergunta feita a todos. Em muitas ocasiões as perguntas nos ajudam a avançar mais que as nossas próprias respostas. As “perguntas existenciais” são provocativas e mobilizadoras pois sacodem nossas vidas e desper-tam os recursos mais nobres em carregamos em nossa interioridade. Por isso, a pergunta por Jesus se volta a nós mesmos; perguntar por Jesus é perguntar por nós mesmos. Nesta rede de perguntas e respostas o que está em jogo não é tanto a identidade de Jesus, mas a nossa identidade de seguidores(as) seus(suas). No centro das perguntas que nos fazemos na vida vão surgindo respostas com as quais vamos configurando nossa existência, identificada com a vida de Jesus. Mas hoje, talvez num gesto de ousadia e atrevimento, poderíamos inverter as perguntas. No Evangelho, é Jesus quem pergunta e nós respondemos; agora somos nós que fazemos as perguntas a Jesus. Se Ele está interessado em saber o que os outros pensam dele, também nós estamos interessados em saber o que ele pensa de nós:
“Senhor, que dizes, que pensas de mim?” “Senhor, que pensas e dizes de mim como batizado(a) e teu(tua) seguidor(a)? Sou realmente essa imagem do(a) homem/mulher novo(a) nascido(a) de tua Páscoa?” Senhor, que pensas e dizes de mim como: jovem? adulto? cristão/ã? trabalhador(a)...?”
“Senhor, Tu que pensas de mim como pessoa? Porque tu me deste a vida não para que a conserve atrofiada, mas para que me realize humanamente e chegue a ser uma pessoa livre, madura e comprometida. Tenho amadurecido no amor, chegando a ser essa pessoa que Tu esperas de mim?”
Talvez, de início, possamos sentir um pouco de medo da verdade que Ele dirá sobre nós. Mas, pensando bem, podemos concluir que Jesus pensa melhor sobre nós que nós sobre Ele. E se nos dá vergonha responder às suas perguntas, certamente que Jesus não sentirá vergonha alguma em responder às nossas.
Ao responder nossas perguntas, Jesus nos faz ter acesso àquilo que é o fundamento, a rocha sobre a qual construímos nossa vida. Assim como Ele respondeu, afirmando a verdadeira identidade de Pedro, podemos afirmar que “petros” é o que em nós é fragilidade, incoerência, vulnerabilidade, limitação... “Petra”, ao contrário, é o que é sólido, firme, consistente, sobre o qual fundamentamos a vida. “Carregamos um tesouro em vaso de barro” (2Cor. 4,7). Como seres humanos vivemos a integração de “petros” e “petra”.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar na vida superando as dificuldades e os inevitáveis resistências na vivência do seguimento de Jesus. O “eu profundo” constitui-se como um centro sólido, consistente e estável de nosso ser, radicalmente diferente das experiências fluidas que o atravessam. Existem camadas sólidas da experi-ência do “eu” que devem se contrapor às experiências passageiras de sentimentos vazios, desejos peri-féricos, sonhos sem paixão.
É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para nos ajudar a crescer dia-a-dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, onde vivemos o melhor de nós mesmos, onde se encontram os dinamismos do nosso crescimento, de onde brotam as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da nossa vida.
Vivemos um contexto social e cultural no qual se constata um modo de vida que não favorece o contato com a nossa rocha interior. Seduzidos por estímulos ambientais, envolvidos por apelos vindos de fora, cativados pela mídia, pelas inovações rápidas, magnetizados por ofertas alucinantes... nós nos esvaziamos, nos diluímos, perdemos a interioridade e... nos desumanizamos. Tudo se torna líquido: o amor, as relações, os valores, a ética, as grandes causas... (cf. Bauman).
Diante desta “cultura líquida” é urgente gerar espaços que facilitem o acesso à rocha da interioridade, possibilitar o retorno à “base interior” onde é gestada a nossa identidade e as nossas opções mais firmes.
Somos um mistério no meio de mistérios, em um mundo de surpresas e de assombros.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: Muitos caminhos conduzem à nossa própria interioridade. A oração é a chave de acesso; ela é esse silencioso exercício de deixar que Deus nos habite para que possamos abrir as portas do coração e janelas da mente àqueles que encon-tramos. Onde o Deus de Jesus tem liberdade de atuar, ali desaparece todo resquício do medo que desumaniza.
- Deixe que a “chave” da oração abra as portas do seu coração e mostre todos os seus tesouros escondidos nas arcas de seu interior. Permita que a “petra” de sua existência brote com leveza das profundezas de seu ser.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
24.08.2023
“A minha alma engrandece o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador” (Lc 1,46-47)
Maria foi assunta ao céu porque desceu ao mais profundo de sua humanidade e da humanidade dos outros.
A Assunção nos revela que ela foi humana por excelência; toda sua humanidade foi atravessada pelo divino: nela não havia resquícios de ego inflado, de vaidade, de busca de prestígio e poder. Reconheceu-se como “humilde serva” porque desceu ao “húmus” de sua vida e aí deixou-se conduzir por Aquele que entra na história de cada um pelo lado da fragilidade, limitação, pobreza... Ela viveu a assunção em todos os momentos de sua vida, porque se sentia envolvida pela presença misericordiosa e providente de Deus.
Toda a vida de Maria foi “assumida” por Deus porque ela cuidou da vida, colocou sua vida a serviço a vida, ativou todos os seus recursos de vida... Vida aberta, comprometida, vida que se fez visita e se deixou visitar.
Maria “desapareceu” no divino porque mergulhou no humano. Sua humanidade foi plenificada. Por isso, a Assunção é uma vitória solidária: nela, todos seremos “assumidos por Deus”. Esta é uma reali-dade que não acontecerá apenas no fim dos tempos; é realidade sempre atual: já vivemos em Deus, n’Ele nos movemos e existimos; Ele nos envolve continuamente com sua providência, misericórdia e cuidado.
Vivemos, então, em contínuo “estado de assunção”. Portanto, a Assunção de Maria diz respeito a todos nós; todos estamos implicados neste mistério; experi-mentamos a assunção através de dois movimentos:
No primeiro, vivemos a assunção quando descemos ao mais profundo de nossa humanidade, às raízes de nossa existência. Há muitos recursos, dons, potencialidades, desejos nobres, inspirações, beatitudes originais, presentes em nosso interior e que querem emergir, elevar-se... A assunção começa em nosso interior quando o “que há de divino em nós” se expande, plenificando e dando sentido à nossa existência. Deus assume tudo o que é humano em nós e ilumina, plenifica... Nada do que é humano lhe escapa; Ele nos eleva, nos faz planar sobre suas asas de águia, para ampliarmos nossos horizontes, nossa visão da realidade... Com sua Graça, desperta e ativa todos os nossos dinamismos e potencialidades internas.
Quem vive a assunção sonha alto, deseja grande, torna-se criativo e um eterno buscador. Sua vida torna-se oblativa, descentrada, é movimento de saída de si... A assunção o faz viver com os pés plantados no chão da vida e da história e, ao mesmo tempo, o faz transcender, romper fronteiras, ir além de si mesmo...
Quem não se deixa inspirar pelo mistério da assunção limita-se a uma vida “normótica”, repetitiva, mecânica, estreita, atrofiada... Perde o sabor da vida, trava sua criatividade e mata sua capacidade de sonhar.
O segundo movimento despertado pelo mistério da Assunção é este: a partir de uma interioridade expandida a pessoa se eleva na direção do outro, através do serviço solidário, da presença compassiva e do compromisso eficaz na transformação da história. A assunção move a pessoa a reforçar os laços, alimentar a comunhão, mobilizar a viver a cultura do encontro; a assunção faz romper fronteiras geográficas, sociais, culturais, religiosas... conclamando à vivência da fraternidade universal. Ela abarca a humanidade inteira.
Porque parte do chão da humanidade, a assunção nos humaniza e nos capacita a criar mediações humanizadoras. Não é possível crer na assunção da humanidade se nos deixamos levar pela cultura da aparência, do ódio, da intolerância, da violência...
Quem entra no fluxo desses dois movimentos da Assunção, sente despertar em si uma profunda gratidão; brota de seu coração e de seus lábios um novo “magníficat”, onde reconhece a ação criativa de Deus, em si mesmo, nos outros e na criação... Proclama que Deus fez, faz e fará maravilhas nele(a), por ele(a), através dele(a)... Vive com vibração e intensidade porque sente que tudo é Graça, de graça, envolvido pela graça...
Assim, celebrar a Assunção é entrar no fluxo da gratidão que Maria canta no seu “magnificat”. É modo de ser e viver inspirado na vida de Maria; é preciso nos situar de “maneira mariana” diante de nossa história.
“O Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor”, é uma exclamação que Lucas põe nos lábios de Maria para fazê-la nossa e repeti-la com frequência. Quando algo ou alguém nos emociona, não podemos evitar expressar esse sentimento. O regozijo não é completo se não o compartilhamos. A experiência prazerosa de um Deus que é Misericórdia e Santo fez brotar os mais belos salmos e orações que nos foram legados, cheios de benção e assombro agradecido. A gratidão perpassa o Magnificat e é o sentimento mais nobre que brota das profundezas do coração do ser humano, ao se sentir cumulado de tantos dons.
Todos temos experiência que a nossa história carrega lembranças de fatos e de vivências negativas: crises, fracassos, rejeições, erros, pecados... Os desencontros, quebras e rupturas... costumam deixar feridas.
Tudo isso pesa na memória e continua influenciando negativamente no presente.
Com isso, ela se torna “memória mórbida, doentia”: depósito de rancores, ressentimentos, hostilidades...; ao se fixar no passado, a “memória mórbida” alimenta remorsos, sentimentos de culpa, desânimo, angústia..., embotando a vida, queimando energias, paralisando a pessoa e não abrindo futuro de sentido.
Pessoa doente na memória é doente no seu coração, na sua afetividade, nos seus sentimentos...
Se a memória não é “evangelizada”, ela continua remoendo aquilo que aconteceu, num desgaste muito grande de energia. Não há mudança e conversão se não houver mudança e conversão da memória.
Somente através da “memória redentora”, a pessoa é capaz de se colocar diante do passado, de modo livre e aberto, dando-lhe um novo significado.
A memória sadia não muda o passado, mas o “re-corda” (coloca de novo o coração) de modo novo e inspirador. A memória resgata referências, cura feridas, reconcilia-se com a vida e consigo mesma, com as próprias riquezas e fraquezas, com o próprio passado; ela tem sua função de lugar santo do louvor e da gratidão, pois ajuda a tomar consciência dos benefícios recebidos e possibilita ter acesso às recordações não neutras, mas aquelas que tem um significado para o presente. Ela é capaz de tirar proveito de todas as vivências pessoais (nada é descartado, tudo é integrado); abre possibilidade para rever a própria história e lê-la como História de Salvação.
Através da memória pacificada, nossa vida é iluminada, provocada, sacudida..., para que ela saia do “fatal ponto morto” e entre no movimento expansivo da Graça.
Ativar a atitude de assombro e gratidão diante do muito que recebemos, em lugar de viver centrados naquilo que nos falta, tem uma consequência enraizada em cada um de nós: saber-nos e sentir-nos abençoados nos motiva a compartilhar o que recebemos; quem é grato(a) deseja corresponder e o serviço gratuito é a melhor resposta ao amor de Deus, presente em mil formas e intensidades na nossa vida.
Abrir-nos ao assombro é uma genuína manifestação da humildade que esvazia toda pretensão de nosso ego inflado e prepotente. A humildade é também o melhor caminho para ativar a admiração frente às nossas próprias capacidades ainda adormecidas. Carecemos da “faísca” própria da experiência assombrosa de sentir-nos amados(as) por um Deus providente e cuidador.
Entremos no movimento vital da Assunção! Sejamos simplesmente humanos! Vivamos com sabedoria e intensidade, numa atitude de contínuo agra-decimento! É isso que Deus deseja a todos os seus filhos e filhas.
Texto bíblico: Lc 1,39-56
Na oração: Por que canta Maria? A resposta mais bela e mais óbvia está, talvez, num verso de S. João da Cruz: “Todos os apaixonados cantam!”. Maria canta porque está apaixonada.
É muito importante notar que a oração mariana por excelência não coloca em cena ideias, mas fatos. O Senhor realiza maravilhas: nela, nos outros, em ca-da um de nós.
- Faça de sua oração um canto apaixonado: louve, agradeça, silencie...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
17.08.23
“Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar...” (Mt 14,22).
Jesus, “homem do mar”. Os evangelhos o apresentam como carpinteiro/operário da construção. Mas tinha amigos pescadores e com eles aparece nos evangelhos passando, várias vezes, de um lado a outro, pelo mar da Galiléia. Jesus não vive só no “terreno sólido”; Ele vive também “no terreno do mar”, sai dos limites conhecidos, aventura-se ao novo, abre-se ao diferente...
O evangelho deste domingo nos fala de uma realidade muito humana: somos seres de travessia e vivemos contínuos deslocamentos, desde o ventre materno. Saímos de lugares estreitos em direção a espaços mais amplos, até à travessia definitiva. Toda travessia tem um “para que” (um sentido); ela aponta para algo maior, inspirador. O perigo é deixar-nos determinar pelo medo, bloquear nosso espírito aventureiro e nos “acostumarmos” com a margem conhecida.
O relato sobre a travessia do mar em Mateus nos revela que há muitas tormentas e ameaças ao nosso redor. Em meio à tempestade levantam-se ondas de obscuridades sem sentido, de medos paralisantes, de dúvidas angustiantes... Sopram outros ventos tempestuosos que nos ameaçam, arrastando tantas seguranças que nos sustentaram, quebrando tantos salva-vidas aos quais nos agarrávamos...
Mas, em meio às tempestades urge não perder a calma, ter a coragem de “permanecer na barca” e não permitir que o ruído dos ventos nos vença, que os relâmpagos nos ceguem, que as ondas nos levem...
“Permanecer na barca” é a palavra-chave: permanecer firmes nos compromissos assumidos, nos passos que buscam abrir caminhos novos, ainda que seja arriscado;permanecer ancorados na fidelidade a Jesus e a seu Reino e consentir que os ventos levem todos os nossos velhos padrões mentais, ideias fixas e atitudes petrificadas, preconceitos e tudo o que já está caduco e que não nos impulsionam para a outra margem...; permanecer apenas com a pessoa de Jesus e seu sonho como o melhor legado que podemos oferecer aos nossos contemporâneos, sacudidos por tormentas que os afundam sem poderem vislumbrar um novo horizonte e um novo sentido para suas existências.
Na tempestade também é necessário “soltar amarras e içar velas”, ou seja, atrever-nos a “viver no Vento”. Aproveitar dos “ventos contrários” para transformá-los em “ventos favoráveis” que conduzam nossa vida para a “outra margem”. Soltar as amarras e âncoras de nossos apegos, de nosso consumismo, de nossa prepotência, afã de domínio, fundamentalismos, patriarcalismo, machismo... Precisamos perder o medo dos novos ventos e içar as velas das novas ideias, das visões arrojadas, dos projetos criativos, da riqueza da pluralidade de culturas, religiões, raças, deixar-nos mover pelo vento dos movimentos de libertação (povos em desenvolvimento, negros, indígenas, os sem-terra, os movimentos ecologistas, pacifistas, feministas...), enfim, acolher o vento que nos impulsiona em direção ao novo e diferente...
A barca de nossa vida naufragará na estreita calma de mares mortos se não formos capazes de desatar os antigos nós de marinheiros que impedem içar as velas para receber os novos ventos da história.
Durante a tormenta aprender a recordar que depois da tempestade vem a calma, para não perder assim o horizonte nem a esperança. Afinal, somos “seres de travessia”.
Temos entranhas ardentes de voltar ao alto mar, a disposição de enfrentar tormentas, o desejo de descobrir terras desconhecidas, a exploração do novo, a paixão por um horizonte de sentido.
Tantos anos ancorados em portos seguros, com ritmos e horários pre-fixados, sem criatividade e sem intuição...; agora é tempo de nos perder no mar, com a proa voltada para a imensidade...
Este é o desafio: despojar-nos do medo, romper os limites e confiar no Sopro, sutil ou tormentoso, que continua nos conduzindo para onde não sabemos. Reconhecer o temor nos impulsiona fortemente a atravessá-lo, a abandonar desculpas esfarrapadas, a não nos deixar prender pelos custos previsíveis. Continuar quebrando nossas pobres seguranças, despojar-nos daquilo que nos alivia e sair, sem alforge, nem duas túnicas, sem sandálias...
A travessia traz e leva inovação. Deslocar-se, querendo ou não, implica uma mudança de posição, uma alteração do ângulo habitual, uma exposição ao diferente, um amadurecimento do próprio olhar, um reconhecimento de que alguma coisa nos falta, uma adaptação a realidades, tempos e linguagens, ou a descoberta de uma incapacidade para tal; um confronto indispensável, um diálogo tenso ou deslumbrado que nos deixa, necessariamente, com uma tarefa futura (Card. Tolentino).
O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que sabe estar longe de seu centro e entende sua missão de busca e peregrinação interior, de colocar-se em movimento...
Sair da margem conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade...
A outra margem: lugar provocador, incitador e que desperta curiosidade... É aqui que brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, os projetos ousados, as ideais vitais.
Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em seu próprio interior...
Os poetas, artistas, místicos... são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”, vislumbram o outro lado, tocam as raízes mais profundas do próprio ser.
O seguidor de Jesus tampouco sabe o que há do outro lado. A ele, como aos demais, lhe custa ver claramente. No entanto, considera que a outra margem é talvez diferente, mas tão apaixonante como esta margem onde ele está; e então, decide animar-se a cruzar a vastidão do mar interior.
Em resumo: nessa experiência não se trata tanto de “chegar”, mas de “ser levado”, pois nossos remos não servem para vencer a distância e a correnteza, e precisa do vento benfeitor que sopre, dirija, empurre e persevere, até a outra margem.
No nosso processo espiritual queremos desenvolver esta capacidade de ver quem nós somos e onde estamos, sem o temor de nos defrontarmos com respostas desagradáveis.
Somente partindo da realidade de nós mesmos, que é sempre uma realidade rica e original, é que poderemos crescer como “peregrinos” em direção à nossa interioridade e em direção a um maior compromisso.
A percepção e o sentido da nossa própria identidade vão se ampliando quando surge uma capacidade de interessar-nos por realidades mais amplas e desafiantes...Novas ideias, novos mundos, novos sonhos e projetos... vão definindo nossa identidade pessoal.
Se uma pessoa não criar intensos interesses “fora dela mesma”, viverá alienada em sua existência, fechada no seu pequeno mundo. Se ela se expande passará, então, a participar de outras esferas significativas da vida, dedicando-se a uma grande quantidade de interesses e projetando-se ardo-rosamente para o futuro. Isso significa ser “habitante de fronteira”.
Texto bíblico: Mt 14,22-33
Na oração: Diante de Deus, deixe seu coração responder:
- Tenho medo de alguns “aspectos” de minha vida?
- O que está me “amarrando”, impedindo-me atravessar para a outra margem?
- Tenho consciência que em meu interior ainda existem “terras inexploradas”?
- Que “meios” utilizo para chegar a esta “fronteira do coração”?
Pe. Adroaldro Palaoro sj
10.08.23
Imagem: pexels.com
“Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” (Mt 17,5)
O apelo do Deus de Jesus a seu povo, a cada filho e filha é este: “escutar”. O maravilhoso “Shemá Israel”, que nossos irmãos judeus tanto repetem e veneram, esteve nos lábios de Jesus infinitas vezes ao longo de sua vida. Em seus lábios sim, como bom judeu que era, mas sobretudo em sua vida, como uma atitude.
De Jesus falamos mais de suas palavras e de seus feitos, o que Ele “fez e disse”.
Quando nos referimos ao seu “fazer”, nós nos fixamos em suas curas, em seus gestos eloquentes como multiplicar o pão para alimentar a multidão, no gesto de lavar os pésdos seus discípulos, de devolver vida e força às pessoas alquebradas por enfermidades etc.
E o que Ele “disse”, os textos canônicos e apócrifos conservam para serem rezados, estudados, repetidos diariamente em centenas de liturgias, nos corações orantes, nos estudiosos enamorados da Palavra...
De Jesus falamos muito pouco de sua escuta. Jesus é “Shemá” em sua mais pura essência. Embora pareça que tenha falado muito, sempre nos inspira uma etapa longa de sua vida, antes de seu batismo, na qual vivia uma vida normal, como todo bom judeu, cujo guia foi a fidelidade ao “Shemá”.
Jesus escutava seu Abba, sua realidade social e religiosa e continuou escutando. E porque escutou, se tornou um buscador; encontrou João no deserto e o escutou. Depois de um tempo, tomou uma decisão, deixou-se batizar e imediatamente foi conduzido pelo Espírito ao deserto para escutar.
O motor da atividade de Jesus foi a escuta da voz do Pai, dos textos revelados e do pulsar da vida.
Assim como aconteceu com Jesus, ativar a capacidade de escuta é a que nos possibilita a entrada no mistério. A escuta é como um sacramento que nos unge para a trajetória do seguimento de Jesus, para a travessia que nos faz sair das pequenas ou grandes atrofias: maneiras de pensar, opiniões petrificadas e inamovíveis sobre Deus e os outros, atitudes petrificadas, moralismos doentios, culpas mórbidas... para poder caminhar em direção à plenitude de vida, que é a meta. Tal plenitude não é um lugar físico, é um “estado interior” que nos ajuda a descobrir a direção e a felicidade. Na mentalidade judaica trata-se da “Terra prometida”.
Esta não consiste simplesmente em estarmos bem, mas em estarmos em comunhão com tudo, em descobrir que somos uno, que estamos conectados, que somos uns com os outros, que possivelmente passou por nossos pulmões o mesmo oxigênio que passou pelo resto da humanidade, que somos pó de estrelas...; logo, pertencemos ao infinito, ao cosmos e desfrutamos contemplando as estrelas. Somos família.
Escutar é perigoso, subverte; e é libertador, pois nos arranca da estabilidade e da acomodação. Quem escuta sai de si e se põe em movimento. Escutar é conectar com o pulsar de tudo e sentir que é preciso ser pessoa de travessia para outra margem, pessoa capaz de soltar para acolher, para abraçar e acompanhar.
A vida não é um mistério para aqueles que elegem caminhos seguros. Nossa vida começa a sentir o mistério quando escutamos e entramos em sintonia com a realidade e de sua mão nos deixamos introduzir em outro nível, o do “Shemá”, o da escuta da pulsação d’Aquele que é Presença providente e cuidadosa.
A festa da Transfiguração nos anima a que nos tornemos homens e mulheres de “Shemá”, de escuta. Deixar que o longo tempo que Jesus se dedicou a escutar nos contagie; deixar que este aspecto de nossa essência configure mais e mais nossa identidade como pessoas “escutadoras”.
A escuta mais profunda se realiza a partir da quietude e do silêncio interior. Como no lago sem ondas, em cuja superfície lisa se refletem as imagens, o ouvido interno capta o som de vida criada e criadora só quando os ruídos artificiais forem aquietados. É preciso afinar mais a capacidade de escuta interior para melhor sentir, discernir e optar.
Ao escutar Jesus nos sentiremos movidos a sair de nosso conformismo, romper com um estilo de vida egóico no qual estamos, talvez, confortavelmente instalados e começar a viver mais atentos à interpelação que nos chega a partir dos mais excluídos e desvalidos de nossa sociedade.
Saber escutar nos liberta do fechamento indiferente, do fanatismo e do conservadorismo que aprisiona a vida; liberta-nos também da surdez cúmplice dos ruídos alienadores que bloqueiam os clamores que provém da Terra machucada e dos irmãos violentados.
O “ouvido evangelizado” nos permite abrir ao diferente, à palavra e ao silêncio, à brisa e ao rugir da tormenta. Através do ouvido podemos saborear a beleza das melodias da natureza (água, vento, árvores, pássaros...) e da criação artística. Um ouvido atento que possa perceber o Silêncio, um silêncio carregado de Presença, e o Mistério que pode ser nomeado de diversos modos: Transcendência, Ser, Energia Puríssima, Alá, Deus, Ser, Presença...; Jesus de Nazaré o denominou “Abba”, como expressão de sua experiência de relação amorosa.
Saber escutar foi e continua sendo uma aprendizagem longa e difícil, que não termina nunca, e que vai nos conduzindo a um encontro com a Vida; portanto, a uma aprendizagem no caminho em direção ao amor.
É preciso aprender o ofício de “escutadores/as”; escuta descentrada que nos coloca no lugar da outra pessoa, escuta para ativar os dois ouvidos: um atento às necessidades dos outros, e o outro atento às nossas próprias ressonâncias interiores. Por isso, é importante aprofundar no que significa fazer do ouvido um lugar para o encontro com o Ser, com a vida, com o Amor, porque isto supõe uma aprendizagem, requer arte e técnica, supõe transitar cami-nhos diferentes, cultivar um modo original de nos fazer presentes na realidade que nos envolve.
É preciso afinar cada vez mais nossos ouvidos para poder escutar a voz dos sem voz, daqueles que já não tem nem forças para gritar, daqueles que perderam a esperança de serem escutados, daqueles que ficaram exaustos, atirados nos caminhos que eles acreditavam serem de vida e na realidade se converteram em ratoeiras de morte. Escutar não só os sem voz, mas todas as vozes silenciadas pelo medo, opressão, exclusão, violência, machismos imperantes durante tantos séculos. Vozes de quem não lhes damos voz, porque não são dos nossos, porque nos parece que não tem nada a contribuir, ou porque suas vozes diferentes das nossas nos ameaçam em nossas “seguranças-inseguras”, porque nos deslocam e nos põem em dúvida, porque nos denunciam e desmascaram nossas mentiras pessoais, sociais, culturais e religiosas.
Nossos ouvidos estão muito condicionados pelo nosso lugar social, racial, geográfico, familiar, ideológico...
Escutar não é ouvir. Ouvir é um processo fisiológico, escutar é outra coisa. É um processo psicológico e espiritual que supõe a implicação de toda a nossa pessoa, requer atenção, interesse, motivação...
Saber escutar é uma arte e uma missão, uma aprendizagem no qual podemos nos exercitar.
A escuta é, em si mesma, terapêutica pela capacidade que tem de facilitar a chave de compreensão da realidade do outro e de nós mesmos.
Sem escuta profunda a vida se desumaniza e o ser humano se automatiza egoísticamente.
Texto bíblico: Mt 17,1-9
Na oração: Inimiga número um da escuta é a pressa e a ansiedade que ela costuma trazer consigo.
A oração, por si mesma, é uma rebeldia contra a pressa dominante: uma oração mesclada de silêncio profundo, de respeitosa contemplação, isto é, de verdadeira escuta.
- Tome consciência daquilo que obstrui os seus ouvidos e os torna “incapazes de prestar atenção” (Jer. 6,10).
- Tome consciência da superficialidade diante da voz da consciência e da incapacidade de escutar o outro, fazendo ressoar a sua voz no seu coração.
- Tome consciência de todas as mensagens negativas que transformaram, seduziram e enganaram seus ouvidos, tornando-os surdos às mensagens celestes, à Palavra da verdade e da vida.
- Tome consciência da hipersensibilidade auditiva que o faz reagir bruscamente frente à incompreensão ou o seduz diante das vozes de morte que alienam e matam a capacidade de discernir.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
04.08.2023
“O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo...;
é também como um comprador de pérolas preciosas” (Mt 13,44-45)
As parábolas têm sua força na luz da proposta e não na agressividade do contraste. São implicativas, tem valor universal, não precisam de um passo prévio de preparação intelectual para poderem ser compreendi-das. São entendidas porque são transparentes, pequenas, sem contornos sofisticados.
As parábolas nos evangelhos despertam o dinamismo da fé para acolher a novidade do Reino apresentada por Jesus. É na mesma fé que elas adquirem força para serem propostas, compartilhadas e presenteadas.
As parábolas são parte essencial dos métodos terapêuticos de Jesus. Ele cura por meio de histórias, cura usando palavras que abrem o coração dos ouvintes para a própria verdade e para uma relação mais sadia com o Pai. Com seus relatos, Jesus desperta e extrai o melhor e mais nobre presente no interior de cada um; quem o escuta sente um novo movimento que o faz sair de si e abrir-se às surpresas da vida.
Por isso, as parábolas apresentam uma linguagem simples, comum, próxima. Para quem as escuta ou as lê, é preciso alargar seus espaços interiores numa atitude de atenção acolhedora, de encontro, de deixar-se envolver e provocar por elas, sem ter que forçar o texto ou uma interpretação. As parábolas apresentam-se sempre como relatos abertos, provocando diferentes reações, despertando e ampliando a vida.
Podemos, então, dizer que as parábolas contadas por Jesus são “arriscadas”. Não pertencem à literatura de consumo; ampliam a vida e a comprometem; pronunciá-las ou assumi-las como estilo de vida, dá medo... Colocam-nos no fluxo do divino e precisamente por isso tem um atrativo muito especial: são incontestáveis.
As parábolas do tesouro escondido ou da pérola procurada, presentes em diferentes tradições sapienciais, constitui um convite a encontrar ou descobrir aquilo que, mesmo sem saber, desejamos: o que realmente somos. Elas contêm várias indicações valiosas: o tesouro e a pérola estão aí, o tempo todo; trata-se simplesmente de descobri-los. Não são algo separado de nós, nem algo do qual carecemos, mas justamente aquilo que somos. Quando os encontramos ou descobrimos, tudo o mais começa a ser visto como algo secundário; e essa descoberta se traduz em alegria perene.
Todo ser humano anseia por esse tesouro e essa pérola. De fato, é essa aspiração que nos move, nos faz iniciar a busca e percorrer diferentes caminhos, atraídos sempre por seu aroma de plenitude.
No entanto, nessa busca pode acontecer de tudo: nos distraímos e terminamos enredados; nos conformamos com pequenas “guloseimas” ou nos entretemos com “brinquedos”, esquecendo o tesouro real; calamos a voz do desejo profundo, abafando-nos com múltiplos ruídos; dizemos a nós mesmos que a aspiração profunda é inventada e que é necessário ser “práticos” e não acreditar em “contos” ilusórios...
E, mesmo no melhor dos casos, quando a busca se apoia numa forte determinação, não é fácil superar a armadilha que nos incita a buscar o tesouro ou a pérola em “algo” fora, longe ou no futuro.
Há em todos nós o “bom odor” da plenitude. Mas, nossa mente, identificada com nosso ego separado, nos faz crer que a plenitude se encontra fora e aí começamos a correria que não conduz a nenhum lugar.
As parábolas deste domingo nos recordam esta inspiradora verdade: nós, em nossa verdadeira identidade, somos já o que estamos buscando. Não é preciso correr para fora, porque onde temos de chegar é no nosso eu mais profundo, na nossa essência, onde somos nós mesmos. Basta pacificar a mente e, se tivermos paciência e perseverança nisso, o silêncio nos mostrará o tesouro que desde sempre aspiramos. Quando isto acontece, a busca será concluída: descobrimos o que sempre fomos e que nos permanecia oculto.
Só podemos encontrar o tesouro e a pérola dentro de nós se descermos ao chão de nossa vida, ou mergulharmos nas profundezas de nossa interioridade. É normal que nós nos surpreendamos frente a frente com um “eu” desconhecido, temido ou reprimido há muito tempo.
O caminho para o nosso tesouro passa pelo diálogo com os nossos instintos, com nossas paixões, com nossos problemas e fragilidades, nossas angústias e nossas feridas, com tudo quanto grita dentro de nós e consome nossa energia. A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente em nossas feridas nós desco-brimos o tesouro do nosso verdadeiro “eu” escondido no fundo de nosso coração.
“Lá onde nós fomos feridos, onde nos quebramos, aí nós também nos abrimos para Deus” (H. Nouwen)
Se algo nos deixa claro nas parábolas deste domingo é que a renúncia ou desprendimento evangélico não é um meio para ter acesso ao Reino, mas consequência de tê-lo encontrado. É o tesouro e a pérola que exigem e possibilitam a renúncia, uma vez encontrado. Não o inverso. É muito curiosa esta íntima relação evangélica entre a alegria e a perda. Uma alegria que nos mobiliza... e nos despoja.
“A alegria é o primeiro efeito do amor e, portanto, da entrega... Pelo contrário, a tristeza é um vício causado pelo desordenado amor de si mesmo, que não é um vício especial, mas a raiz geral de todos eles”. (S. Tomás de Aquino).
A partir daqui se entende muito bem a ligação direta entre alegria e entrega total, pois “cada um tanto se aproveitará em todas as coisas espirituais, quanto sair de seu próprio amor, querer e interesse” (S. Inácio).
Sempre e quando seja um sair que nos adentra em nós mesmos, nos desaloja para poder viver “em casa”.
Talvez nos ajude a recuperar o sentido da abnegação e o “custo” (vendeu tudo) como condição necessária para uma vida evangélica. É o duplo movimento do “empobrecer-nos para sermos ricos” (2Cor 8,9), para que o tesouro que nos habita seja o centro de nossa vida e não o ego inflado e estéril.
E isso porque se trata de descentrar-nos, de esvaziar o ego e converter o “eu” em um receptáculo cada vez mais disponível para que Deus possa irromper e manifestar-se através dos nossos melhores recursos.
Enfim, podemos proclamar esta certeza: o tesouro e a pérola é o que “Deus é em nós”. Não se trata de um conhecimento discursivo ou racional, mas de uma experiência no mais profundo de nosso ser. Continuamos a investir na descoberta de um Deus que está fora, que nos controla à distância e que nos oferece falsas seguranças. Esse é um caminho equivocado que não conduz a lugar nenhum.
O tesouro é Deus mesmo presente em cada um de nós. Ele é a verdadeira realidade que somos, e que são todas as demais criaturas. A identidade de todos os seres é dada por essa presença que habita e ilumina tudo: “nos elementos dando o ser; nas plantas, a vida vegetativa; nos animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva; do mesmo modo em mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o entender” (S. Inácio).
O que há de Deus em nós é o fundamento de todos os valores. O Reino, que é Deus, está em nós. Essa presença é o valor supremo. Quando as religiões esquecem isto, elas se convertem em ideologias escravizantes. O tesouro, a pérola não representam grandes valores, mas uma realidade que está para além de toda valoração. Aquele que encontra a pérola preciosa não despreza as outras. Deus não se contrapõe a nenhum valor, mas potencia o valor de tudo o que é bom, belo e verdadeiro.
Sabemos que o coração se enraíza onde cremos ter o mais valioso de nossa vida, aquilo pelo qual faríamos qualquer coisa. E a isso que valorizamos como um tesouro, não só lhe entregamos o coração, senão que vivemos correndo atrás dele.
Texto bíblico: Mt 13,44-52
Na oração: Diante da presença de Deus, esteja aberto ao contato com a própria realidade interior, para que ve- nha à superfície aquilo que o sustenta e dignifica o seu viver.
Dirija seu olhar para o mais íntimo de si, onde nascem sentimentos e valores, decisões e gestos... onde você é convidado a se alegrar com os rastros da Graça.
- Em que investe sua vida, seu tempo mais importante, suas forças? Você busca o máximo que pode alcançar ou se conforma e se instala nas migalhas de segurança e comodidade que se esvai e se escorre como a água?
- Há uma sede existencial em seu interior que o mantém em permanente “estado de busca”; há um “voz interior” que o move a buscar o maior, o melhor, ativando todas as suas potencialidades?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
27.07.2023
Imagem: James Tissot
“Deixai crescer um e outro até a colheita!” (Mt 13,29)
A impressão que temos é que a paciência deixou de ser a virtude de nosso tempo; parece estar ameaçada de extinção. Aumenta a ansiedade que não espera, a angústia de não ter ainda o que se busca e a inquietude que parece não ter fim. Vivemos o tempo do imediatismo, da instantaneidade e da urgência. A pressa é a marca do nosso ritmo de vida e, por isso, nossas ações, decisões e a construção de nós mesmos são tão efêmeras e sem raízes. O impaciente se afoga em sua instabilidade, atropela tudo e rompe a harmonia, a beleza e a relação com os outros.
No entanto, a paciência é a atitude que faz vir à tona um conjunto de qualidades que nos fazem crescer como pessoas: saber esperar o ritmo das coisas e pessoas, tolerar o novo e diferente, aprender a conviver com aquilo que nos é próprio e respeitar o dos demais, firmeza na adversidade, levar adiante nossas próprias convicções, deixar-nos tocar pela crítica construtiva, olhar a realidade com uma visão mais ampla, crer naquilo que podemos chegar a ser, guardar no coração aquilo que ainda não está resolvido, não atropelar as pretensões dos outros, entrar em harmonia com a natureza, sonhar com uma realidade nova, trabalhar e confiar, respeitar o tempo de maturação das pessoas...
A paciência não é um controle absoluto de tudo, senão impedir que a urgência das coisas nos arraste para o turbilhão de pressas que nos impede respirar, pensar, decidir e agir com criatividade.
Em hebraico, a expressão “ser paciente”, significa “ter grandes narinas”. Isso quer dizer: respirar profundamente. De fato, ser paciente é ter uma respiração larga, uma respiração profunda.
Observemos a maneira como respiramos, quando estamos impacientes; a respiração se torna curta quando estamos ansiosos. Ativar em nós a paciência é entrar no fluxo do ritmo tranquilo da respiração.
Ser paciente é voltar sobre nossos próprios pés, enraizar-nos, aterrissar, estar aí, não nos deixar arrastar pela emoção. Após ter expirado profundamente, alguém é capaz de escutar o outro, é capaz de ser paciente.
A paciência é tecida na espera, mas também é uma virtude que se ativa no esforço constante, muitas vezes rotineiro e pouco heroico. A paciência abre a possibilidade do novo futuro, mantém acesa a busca e movimenta valores como a perseverança, o discernimento, a confiança, a resistência, a contemplação...
Segundo o evangelho deste domingo, o mistério escondido numa semente e as potencialidades presentes no ser humano merecem de todos nós o sagrado respeito pelo ritmo de crescimento, suscitando em nós uma atitude de admiração e encantamento.
A sementeira já foi realizada com êxito, as forças de Deus continuam agindo, mesmo ocultas e desenvol-vendo-se de uma forma silenciosa. Ainda não chegou a colheita, mas, com certeza ela virá. Enquanto isso, convém esperar pacientes e tranquilos e confiar na ação providente de Deus. O ativismo, a pressa e a inquietação não nos farão atingir os objetivos que almejamos; não são as pessoas que realizam o Reino de Deus por suas forças; o Reino chega pela força de Deus e vai crescendo silenciosamente, “por si só”, sem que se perceba a sua expansão.
As três pequenas e inspiradas parábolas deste domingo nos falam de espera paciente, de respeito aos ritmos e processos, de confiança no dinamismo da vida... Jesus, em diferentes intervenções, faz referência a todo o processo agrícola, desde o plantio da semente até a colheita dos frutos. Semear, cuidar do crescimento, colher... tem seu ritmo próprio, o ritmo da natureza.
As três parábolas têm uma mensagem comum. Nas três, o Reino de Deus se compara com algo pequeno e, ao mesmo tempo, carregado de vida, que cresce e se manifesta pouco a pouco, a partir de dentro, sem ruídos nem aparências. Não se impõe como uma superestrutura na qual vivemos ou temos, mas que perpassa e transforma tudo, como uma força silenciosa, mas potente, que vem da natureza, não de nós mesmos.
Infelizmente, estamos perdendo o ritmo da natureza e queremos que tudo aconteça com a mesma rapidez quando nos comunicamos através dos meios eletrônicos. Temos “entranhas de impaciência”. Desistimos facilmente diante da falta de frutos ou as más ervas que crescem no campo da vida; queremos que as coisas sejam como imaginamos que devem ser; queremos plantar hoje e encher os celeiros amanhã. É preciso voltar a aprender com a mãe natureza.
Um olhar repousado e paciente supõe capacidade contemplativa e vida interior, aprender a diminuir a velocidade de nossas vidas, ações e pensamentos, e preparar-nos para a serenidade e para a espera criativa.
“A idolatria começa com um gesto de impaciência” (Onaknin). Na parábola do trigo e joio a impaciência dos empregados leva-os a querer ter o controle do campo, onde fora semeada boa semente. A paciência, pelo contrário, está na entranha mesma da Vontade de Deus, que quer que cada coisa se desenvolva em liberdade, com seu tempo e seu espaço, sem que ninguém se sinta ameaçado. A paciência é mão estendida para Deus e para o outro, enquanto a impaciência é um punho que ameaça e arrebata.
O “apressado”, coloca-se em estado de revolta contra o que ainda está inacabado, sufocando seu amadurecer e impedindo o ritmo normal de desenvolvimento.
A “pressa” tende a mostrar-se raivosa e impor-se, cega, à realidade. Prisioneiro de suas limitações, o impaciente julga absurda toda demora e mostra-se incapaz de ter interesse por tudo o que o cerca. Impaciente e irado, caracteriza-se pela intolerância que é destruidora.
A paciência, por sua vez, nos dispõe a olhar ao nosso redor e sermos surpreendidos por tanta beleza; ela nos possibilita aguardar e deixar-nos “tocar” por algo surpreendente.
Cada um de nós recebeu milhões de boas sementes ao longo de nossa vida. Também nos foram oferecidos todos os nutrientes que precisamos para crescer em meio às más ervas, misturadas em nossa realidade interior. Será que somos conscientes de que germinar e dar frutos, fermentar e mudar nosso ambiente, é um processo lento que requer nossa colaboração? Como vivemos os tempos nos quais parece que estamos debaixo da terra, no escuro, para poder sair e dar frutos?
É preciso, sobretudo, escutar nosso terreno interior com mais profundidade. Ali há um rico “celeiro” e reservas dos melhores recursos que devem ser mobilizados para o nosso crescimento e maturidade.
A espiritualidade inaciana nos revela que a paciência é uma ferramenta imprescindível no processo de decisão, uma luz que indica o próximo passo no longo caminho de construção de nós mesmos. O hábito permanente do discernimento pode tornar revolucionários os pequenos gestos de cada dia.
Pois a paciência implica aprender a parar nas encruzilhadas dos caminhos para eleger o melhor.
A paciência faz a vida; ela mobiliza nossos recursos mais nobres, desperta a criatividade e nos impulsiona a investir nossas melhores energias naquilo que é essencial e que dá sentido ao nosso caminhar.
Texto bíblico: Mt 13,24-43
Na oração: Devemos deixar transparecer a paciência do Criador e trazer em nós a marca do tempo, dominando a pressa, purificando-a pela mística da atenção a tudo e todos que compõem o nosso cotidiano. Como simples peregri-nos que somos, sempre a caminho, haveremos de suportar, pacientes, o adiamento. Em clima de festa sentiremos a vida em sua lenta e promissora evolução.
- Seu ritmo cotidiano é iluminado pela paciência do Criador, que trabalha em tudo e em todos ou ele tem a marca da pressa, da ansiedade, da impaciência?...
Pe. Adroaldo Palaoro sj
21.07.2023
imagem: pexels.com
“O semeador saiu para semear” (Mt 13,3)
O ser humano é surpreendente, inesperado, imprevisível... é pulsação original, é interpelação inquietante; é existência peregrina, é identidade dinâmica...; é uma mina de significados e riquezas.
Com inesgotável potencialidade, ele re-cria a natureza e tem a possibilidade de inventar a sua própria vida. Onde há ser humano há espírito inteligente, impulso de liberdade e manifestação de tenacidade.Tratar com o ser humano é tratar com o imponderável, o misterioso... Ele é seduzido pela liberdade que lhe apresenta horizontes novos e lhe abre mares desafiantes. Ele é “espaço à vida aberta”, “vida que se expande”. Com seu pensamento e seu sonho, ele habita as estrelas e rompe todos os espaços.
Essa capacidade é o que nós chamamos transcendência, isto é, “transcende, rompe, vai para além daquilo que é dado”. Numa palavra, o ser humano é um projeto infinito; tem sentido de transcendência, projeta-se em muitas direções.
O ser humano é mais do que parece ser. Há nele algo maior que o leva a ser mais verdadeiro, mais justo, mais criativo, mais arrojado, mais responsável... “Desejando e elegendo aquilo que mais nos conduz...” (S. Inácio).
Jesus expressa toda essa originalidade e riqueza do ser humano através da parábola do camponês que, com suas mãos abertas, espalha as “sementes” em diferentes terrenos. A parábola começa afirmando: “Saiu o semeador a semear”. Ele faz isso com uma confiança surpreendente. Semeia de maneira abundante. A semente cai em todas as partes, inclusive ali onde parece difícil que ela possa germinar.
De fato, na semente encontra-se presente uma grande força de crescimento... A força da vida, contida no interior da semente, envelhecerá e se extinguirá se não houver quem confie nela, e arrisque a sua terra, seu tempo e seu trabalho.
Quando a semente é enterrada na terra, ela já conhece o seu caminho; ela avança passo a passo, seja durante as horas em que as circunstâncias lhe são mais favoráveis, porque é de dia e existe luz e calor em abundância, seja porque é de noite, e o ambiente para seu crescimento já não é tão propício.
Escondida ali, debaixo da terra, envolvida pelo absoluto silêncio, a semente germina e vai crescendo. O talo, a espiga e os frutos conduzem toda a vitalidade da minúscula semente até a maturidade da planta. E cada árvore vive intensamente o tempo que lhe cabe viver, o tempo suficiente para produzir frutos em abundância.
Ao terminar o relato da parábola do semeador, Jesus faz este apelo: “Quem tem ouvidos, ouça!”. Ele nos pede que prestemos muita atenção à parábola. Mas, em que deve estar focada nossa atenção: no semeador? na semente? nos diferentes terrenos?
Tradicionalmente, nós cristãos nos fixamos quase exclusivamente nos “terremos” onde cai a semente, para revisar qual é nossa atitude ao escutar o Evangelho. No entanto, é importante dirigir nossa atenção ao semeador e a seu modo de semear.
Para nós que crescemos em um contexto religioso desde a infância, a leitura literal desta parábola condicionou nossa visão da realidade em dois aspectos determinantes: o dualismo e o moralismo.
Em tal leitura aparecia a imagem do Deus semeador como um alguém separado e, portanto, distante.
Essa crença de separação, não só alimentava um dualismo religioso – Deus frente ao mundo – de nefastas consequências, mas que era a fonte de outras ideias igualmente perigosas em suas consequências: o pecado, a culpa, a alienação, o infantilismo religioso...
Com frequência, o dualismo religioso era acompanhado de moralismo. Se a semente não dava fruto numa pessoa devia-se simplesmente à sua própria maldade, já que não havia preparado adequadamente seu “terreno”. Assim se fazia presente a culpa em quem acreditava ser um terreno improdutivo ou caía-se no farisaísmo, passando a vida limitando-se somente a cumprir normas e leis.
A verdadeira “semente” é o que há de Deus em nós.
“O semeador saiu”. Para semear nos campos, na terra, é preciso sair de casa. Deus é, ao mesmo tempo, “semeador e semente”. Ele “desce”, faz um Êxodo, um deslocamento em direção à humanidade, onde encontra diferentes terrenos.
Em nossa terra interior já está semeada a presença de Deus; é como a semente enterrada que permanece fértil debaixo da terra desértica pela seca prolongada, e o olhar de Deus é como a chuva que ao cair desper-
ta a vida presente na semente. Também gerará novidades em nós, convertendo-nos em vidas germinais.
Deus se derrama em todos e por todos da mesma maneira, não como produto elaborado, mas como semente, que cada deve acolher e deixar-se fecundar por ela, para poder frutificar. O decisivo é tomar consciência do divino que nos habita e viver em harmonia com essa realidade. O fruto seria uma nova maneira de nos relacionar com Deus, conosco mesmo, com os outros e com as criaturas.
A semente é o mesmo Deus-Vida germinando em cada um de nós; sua presença é sempre fecunda.
Deus habita em suas criaturas e se manifesta em todas elas como algo tão íntimo que se constitui como semente de tudo o que é. Não devemos dar a entender que nós os cristãos somos os privilegiados que temos recebido a semente (Escritura). Deus se derrama em todos e por todos da mesma maneira (a mão-aberta).
Somente aquele que se deixa semear experimenta o sabor da seiva da vida de Deus entrando por suas raízes, percorrendo seu ser inteiro, fazendo-o crescer e dando os frutos de que nosso povo precisa. Aquele que não se deixa semear vive de ilusões e fantasias que envenenam sua existência.
Entrar no fluxo da ação do Semeador divino é preciso sair de nossos espaços seguros, de nossas ideias e convicções atrofiadas, de nossos próprios esquemas fechados e abrir-nos aos diferentes terrenos.
Semear é uma tarefa nobre na vida: semear trigo, trabalho, cultura, educação, semear ética, valores, esperança, respeito, dignidade, sentido da vida...
Ao mesmo tempo que nobre, semear é uma tarefa de grande responsabilidade. Pais, mestres, escolas, universidades, meios de comunicação, igrejas, etc., todos temos a nobre e bela tarefa de semear.
Ao nos convidar a ter raízes profundas, o Evangelho de hoje está afirmando algo muito importante: nesta terra, nesta realidade social, cultural, eclesial e política, já está semeado o Reino, já está viva e ativa a presença do Deus fiel que cria futuro. Nós nos alimentamos desta Presença na medida em que nos deixamos semear nela.
Texto bíblico: Mt 13,1-23
Na oração: Durante nossa vida somos convidados a nos deixar cultivar, a sermos arados e regados pela presença de Deus que é capaz de transformar e extrair o melhor fruto de cada um de nós. Por isso a vocação cristã é tão simples: deixar-nos fecundar por esta presença, deixar-nos fazer por ela e permitir que ela frutifique em nós.
- Sinta-se como a própria Terra que, na sua evolução, chegou ao estágio de sentimento, de compreensão, de vontade, de responsabilidade, de veneração, carregando em seu ventre a presença d’Aquele que é, ao mesmo tempo, Semeador e semente.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
12.07.23
“Dou-te graças, Pai, Senhor do céu e da terra!” (Mt 11,25)
Sabemos, através dos evangelhos, que Jesus foi sempre um homem de oração, de intimidade profunda com o Pai, nos silêncios da noite, nas montanhas, nos desertos... Nenhum evangelista nos relata o conteúdo da oração nestes momentos de solitude (solidão habitada).
No Evangelho deste domingo, Mateus “pega Jesus em flagra” e nos revela não só o modo como Jesus vivia sua relação com o Pai, mas o conteúdo desta intimidade, através de palavras carregadas de gratidão, de assombro, de admiração...; trata-se de um louvor, um canto à vida.
Estes versículos deixam transparecer um estado de exultação que não nasce de nenhum estímulo exterior concreto. Nada do que precede justifica o canto que segue. Brota, sem dúvida, de um estado permanente, cheio de agradecimento assombrado, que vai mais além de um sentimento momentâneo. É um estado de gratidão que emerge do seu coração comovido, que nem a traição e o fechamento de cidades como Corazim e Betsaida são capazes de fazer sombras.
Mateus reúne aqui vários ditos, que parecem expressar atitudes e sentimentos característicos do Mestre de Nazaré. E, nesses sentimentos, deixa transparecer sua verdade mais profunda: a gratidão, a intimidade com o Pai, a proximidade bondosa para com aqueles que estão suportando fardos desumanos, o convite a permanecer na mansidão e na humildade, o oferecimento de uma mensagem que é descanso...
A gratidão parece brotar aos borbotões das entranhas mesmas de Jesus. Isso não é estranho se temos em conta que, junto com a compaixão, a gratuidade constitui a coluna vertebral de toda sua mensagem. E é impossível experimentar gratuidade sem que surja a gratidão.
Quando tomamos consciência de que tudo é Graça, para além de todas as expressões superficiais, brota um agradecimento espontâneo, permanente e profundo.
Mas isso requer uma condição: experimentar-nos em sintonia com a corrente da Vida que procede do Pai, na qual reconhecemos nossa verdadeira identidade. De fato, ao reconhecer-nos no fluxo da Vida, em meio a tudo o que acontece, descobrimos que a gratidão é outro dos nomes de nossa identidade profunda. Na medida em que cresce a compreensão de nós mesmos, reconhecemos que, vista a partir do plano espiritual, a gratidão não é simplesmente uma ação ou qualidade – algo que podemos viver com maior ou menor intensidade -, mas outro nome de nosso ser original: “somos gratidão”, é da nossa essência mais nobre. Por isso, ao vivê-la conscientemente, experimentamos comunhão, unificação e plenitude: estamos vivendo o que somos.
A gratidão é, ao mesmo tempo, um sentimento e uma atitude admiravelmente terapêuticos, capaz de sustentar o nosso “tônus vital”. Por um lado, nos afasta do funcionamento da queixa; por outro, constitui o melhor antídoto frente ao desalento ou o desânimo.
Na medida em que a exercitamos, ela vai nos transformando interiormente e enriquecendo nosso modo de viver a relação com os outros. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que ela expande o nosso próprio coração, favorece a alegria de viver e facilita poderosamente a convivência.
Por pouco que a observemos, poderemos advertir que a gratidão genuína não depende tanto daquilo que nos acontece, quanto do modo como recebemos aquilo que acontece. Se damos graças unicamente quando nos ocorre algo que consideramos “agradável”, não temos saído ainda de nosso egocentrismo.
A gratidão autêntica é profundamente unida com a vida, flui com ela. Nasce e se apoia na compreensão de que, para além dos juízos que nossa mente possa fazer, no fundo, tudo é graça. A gratidão está intimamente relacionada com a capacidade de “ver”. Por isso, quando sabemos ver, a gratidão aflora sem obstáculos.
Pelo contrário, se permanecemos aferrados às nossas expectativas – “a vida deve responder ao meu próprio querer, interesse e desejo” -, a frustração inevitável trará consigo a resistência e o sofrimento, o enfado, a queixa e o vitimismo.
A gratidão, como força que nos “des-egocentra”, nos faz tomar distância de nossos pequenos interesses e nos abre à compreensão profunda de que, em último termo, tudo é dom, tudo é dado, tudo é graça... Somos seres agraciados, “cheios de graça”.
Como o amor, como a alegria, a gratidão é uma arte. E, enquanto tal, precisa ser exercitada em um treinamento cotidiano, no qual, conscientemente, damos graças por tudo.
Assim compreendido, poderíamos dizer que a existência inteira de uma pessoa sábia é vivida entre duas palavras: “agradecido” e “sim”. Por tudo o que aconteceu, agradecido(a)!; diante de tudo o que virá, sim!
Ao entrarmos em sintonia com o coração “manso e humilde” de Jesus temos a oportunidade de recuperar algo que a cultura pós-moderna apagou de nossa consciência: a capacidade de admiração, a possibilidade do assombro diante de tantas realidades, simples, mas divinizadas, que nos passam desapercebidas. Custa-nos muito maravilhar-nos porque não despertamos a capacidade de assombro e de valorizar tudo o que desfru-tamos, desde o cosmos até pequenos prazeres diários como tomar um café em boa companhia.
Nosso contexto social não facilita um contínuo louvor, um “canto à vida”. Basta repassar o olhar sobre diferentes realidades – político-econômico-religioso-cultural-ecológico – para nos dar conta da dificuldade objetiva de sairmos dos trilhos das lamentações e queixas. Esquecemos muitas coisas porque não as valorizamos até que nos faltem: saúde, convivência, trabalho, possibilidade de ajudar os outros, a capacidade de superação das adversidades, a própria vida em si mesma como um campo maravilhoso no qual podemos nos esforçar para deixar transparecer as melhores potencialidades de nosso ser...
“Dar graças”, “agradecer”, “louvar” ... é também uma questão de memória. Por isso o Papa Francisco fala com frequência de “memória agradecida”. Só a “memória agradecida” está em condições de nos ajudar a entender o sentido, a profundidade e a verdade dos acontecimentos, das pessoas, da realidade que nos envolve..., pois temos de adotar determinada perspectiva e certo grau de isenção no julgamento, a fim de decifrar seu significado. Ela nos distancia estrategicamente dos acontecimentos para poder captar outro sentido, escondido neles. Eles passam a serem vistos sob nova luz para serem ressignificados.
Só a “memória redentora” mobiliza nossos melhores recursos, ativa os sentimentos oblativos e é fonte de vida espiritual pois continua alimentando ressonâncias no cotidiano. Re-cordar (visitar de novo com o coração) os benefícios concedidos por Deus nutrem nosso presente com Sua Santidade e nos desperta para um futuro novo. Por isso, a “memória agradecida” é o húmus natural de onde brota a gratidão.
Ao “fazer memória” dos dons e bens recebidos, brota naturalmente em nosso interior, o desejo de dar uma resposta generosa e radical ao Deus que é Fonte de tudo. E é Ele mesmo quem, ao criar-nos gratuitamente no amor, nos ensina a “sermos gratuitos e gratos”; só a generosidade gratuita do coração de Deus é capaz de reconfigurar mentes e corações, encorajando atitudes oblativas em nós.
É a gratidão que ativa em nós o ânimo e a generosidade diante do futuro de nossa missão. Com isso, a esperança e o entusiasmo por viver vem habitar nosso interior. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que vivemos e diante do que virá.
Este é o processo vital que se torna um “estilo de vida”, pois, motiva a busca, desperta o interesse, faz olhar para frente, cria disposição para a construção de respostas novas, desperta o desejo de crescer, amplia os horizontes...
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: Em sintonia com o coração de Jesus, cheio(a) de gratidão, sinta-se convidado(a) a uma leitura orante de todos os sinais do Amor de Deus manifestados ao longo da história da sua vida, bem como trazer à sua memória todos os bens recebidos ao longo deste tempo. Ponderar com muito afeto tudo o que o Senhor fez por você, por meio de muitas pessoas, da sua história passada e presente; como Ele o(a) cumulou de seus próprios dons e, além disso, continua cumulando-o(a).
- Marcado(a) pela experiência da oração, deixe emergir a fina percepção de que tudo é dom de Deus, tudo é Graça, tudo é dado “de graça”. Crie um clima de contínua ação de graças.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
06.07.2023
“E vós, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16,15)
Neste domingo (13º do Tempo Comum), a liturgia nos convida a “fazer memória” de S. Pedro e S. Paulo, dois personagens instigantes, inspiradores e motivadores para todos nós cristãos, seguidores(as) d’Aquele que continuamente nos desafia com sua pergunta: “E vós, quem dizeis eu sou?”
Não se trata de dar uma resposta teológica, mas de reforçar nossa adesão e identificação à pessoa de Jesus Cristo. Por isso, cada um responde de maneira diferente, porque não há um seguimento igual para todos.
Foi assim que, Pedro e Paulo, com suas personalidades tão distintas, deixaram-se impactar pela pergunta de Jesus e souberam responder com a vida; por isso, eles são referências para nós.
Há perguntas inofensivas, fáceis de responder e que não nos comprometem. O problema está quando nos fazem perguntas nas quais nos sentimos implicados.
Há perguntas que parecem ser de pesquisas; e há perguntas que nos des-velam por dentro. Há perguntas secundárias sobre as quais podemos dizer qualquer coisa. E há perguntas essenciais que nos movem a falar de nós mesmos. E essas perguntas doem porque são perguntas que desnudam o fundo de nosso coração. São perguntas que nos implicam naquilo que somos realmente.
O perguntar é ousado, instigante; perguntar contém desafio, provocação; leva dose de irreverência.
“Perguntar é mergulhar no abismo” (Exupèry). As perguntas têm uma força que não encontramos nas respostas. Enquanto perguntamos por alguém, palpita em nós um impulso, um interesse que não se apaga enquanto não sacia nossa curiosidade.
A pergunta é movimento; é a pergunta que faz emergir a novidade, pois ela ativa a busca por uma resposta criativa. Mais ainda, perguntar põe em crise certas convicções, ideias fechadas, modos arcaicos de viver...e nos mantém em busca permanente.
É neste nível que surge a pergunta de Jesus aos discípulos, na região de Cesaréia de Filipe.
Ele não pergunta aos seus discípulos sobre o que pensam a respeito do Sermão da Montanha ou sobre sua atuação curativa juntos aos doentes da Galiléia. Para seguir Jesus, o decisivo é a adesão à sua Pessoa. Por isso quer saber o que eles pensam e sentem, depois de um tempo de convivência com Ele.
Jesus propõe a pergunta fundamental, “e vós, quem dizeis que eu sou?”; uma pergunta exigindo que eles se examinem a sério, que tomem consciência do que pretendem, que explicitem as reais motivações que os levam a segui-lo. Responder à pergunta “Quem sou eu para vocês?” é fazê-los comprometer com um novo estilo de vida, é assumir o novo caminho com Ele, é arriscar-se numa aventura.
A pergunta é desafiadora, e não simples curiosidade e inquietação, e se dirige a todos. Cada um tem de dar sua resposta. Ela exige uma tomada de posição, um ato de fé.
Pedro e Paulo responderam com suas vidas a pergunta feita por Jesus; por isso, eles não são somente duas colunas que sustentam a grande comunidade cristã; eles representam as duas dimensões essenciais para o dinamismo da Igreja. A liturgia intuiu que é preciso integrar as identidades destes dois personagens. Não se pode privilegiar um em detrimento do outro.
Nos Evangelhos, Pedro é o pescador que, impactado pela presença e pelo convite de Jesus, vai entrando, aos poucos, em sintonia com Ele. Um encontro que vai crescendo em adesão à proposta do Reino; um caminho de seguimento que tem seus momentos de obscuridade e de crise, sobretudo ao ver o fracasso do Mestre condenado pelas autoridades religiosas e políticas.
Pedro é o protótipo do cristão que vai se convertendo, abrindo-se à presença desconcertante de Deus na conduta histórica de Jesus. Em Pentecostes, Pedro fala em nome dos primeiros discípulos, cuja fé vem a ser normativa para todas as gerações que se sucedem na história da igreja. Ele confessa o artigo central e original da fé cristã: “Jesus Cristo é o Filho de Deus vivo”. E se a Igreja se mantém firme nessa confissão, nada nem ninguém a destruirá.
Entre os discípulos de Jesus, Pedro foi sem dúvida o mais atirado, o mais impulsivo, com o perigo que isso implica. Era o líder do grupo, o primeiro a falar em qualquer circunstância, sem medo de repreender Jesus quando este anuncia sua paixão, sem medo de levar uma reprimenda quando Jesus quer lavar os pés ou quando anuncia que todos o trairão. O fato de ser tão lançado o situa também no lugar mais perigoso, o da negação de Jesus. Mas, ele mesmo termina confessando depois da ressurreição: “Tu sabes tudo, tu sabes que te amo”. Não é novidade que Jesus o visse como o líder natural do grupo depois de sua morte e ressurreição.
Paulo, por sua vez, é o homem universal. Alcançado e convertido pela presença do Ressuscitado, ele abriu a Igreja ao mundo grego e romano, superando os moldes da religião judaica. Com sua itinerância, rompeu as fronteiras geográficas, culturais e religiosas, pois, para ele, o Evangelho de Jesus é anúncio de salvação para todos os povos. O que muitos não conhecem é a revelação que Deus lhe fez e que ele tanto insiste em suas cartas: que a boa notícia de Jesus não era só para os judeus, mas também para toda a humanidade.
A expansão da Igreja primitiva é humanamente inconcebível sem a figura de Paulo. Percorreu milhares de quilômetros e se expôs a todo tipo de perigos para levar o anúncio de Jesus “até os confins da terra”.
Em chave de interioridade podemos afirmar que Pedro e Paulo são também dimensões de nosso ser. “Pedro” representa a solidez interior, a certeza, a convicção, os valores... Viver a “dimensão Pedro” é cuidar dos fundamentos de nossa vida, a rocha sobre a qual construímos a maneira de viver o seguimento de Jesus.
Nossa própria interioridade é a rocha consistente e firme, bem talhada e preciosa que temos, para encontrar segurança e caminhar no seguimento superando as dificuldades e os inevitáveis golpes na luta pela vida. É no “eu mais profundo” que as forças vitais se acham disponíveis para nos ajudar a crescer dia-a-dia, tornando-nos aquilo para o qual fomos chamados a ser. Trata-se da dimensão mais verdadeira de nós mesmos, a sede das decisões vitais, o lugar das riquezas pessoais, do melhor que há em nós, onde se encontram os dinamismos do nosso crescimento, de onde partem as nossas aspirações e desejos fundamentais, onde percebemos as dimensões do Absoluto e do Infinito da sua vida.
“Paulo”, por sua vez, nos fala da força expansiva, da saída de nós mesmos, de abertura às realidades diferentes. Das raízes profundas brotam as respostas mais criativas e duradouras; a interioridade desvelada ativa a solidariedade e o compromisso como acesso à realidade para transformá-la, desencadeando um movimento de profundas mudanças.
Fundamentados sobre a rocha interior, nossa vida se expande, nos tornamos mais abertos e sensíveis, capazes de escutar os acontecimentos, alimentar uma atenção contemplativa frente à realidade que nos cerca, respondendo a seus apelos e tomando decisões maduras e evangélicas.
Viver a “dimensão Paulo” é abrir-nos à desafiante realidade, entrando no fluxo da “Encarnação do Verbo no mundo” e sendo presenças portadoras da Boa-Notícia do Evangelho.
Como harmonizar “Pedro e Paulo” em nossa vida, para que nosso seguimento de Jesus tenha a marca da criatividade?
Inspirados por eles, nossa vida cristã se centra na identificação com Jesus; afinal, não somos seguidores de uma religião, doutrina, rito..., mas de uma pessoa. E essa identificação se expressa como resposta que damos à pergunta feita na região de Cesaréia de Felipe: “e vós, quem dizeis que eu sou?”.
Texto bíblico: Mt 16,13-20
Na oração: Busque, na oração, cavar mais profundamente, até atingir a rocha de seu ser, o fundamento original e consistente de sua personalidade.
- Quais são os valores perenes, as visões ousadas, as experiências fundantes, as opções duradouras... que constituem a rocha inabalável, sobre a qual construir sua vida? Como ser “presença paulina” no seu contexto social, religioso, cultural...?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
29.06.2023
Imagem: El Grecco
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