Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico” (Lc 16,20)

O Evangelho deste 26º domingo do Tempo Comum nos traz, mais uma vez, uma parábola escandalosa e provocativa. O que Jesus quer nos comunicar através desta parábola que desperta tanto incômodo? A parábola do rico “epulón” e do pobre Lázaro nos inquieta e é inquietante, pois nos situa de novo diante da exigência do amor concreto e comprometido, como serviço ao próximo.

Na primeira parte do relato a ideia prevalente é que tudo o que fazemos repercute nos outros: a situação de Lázaro é consequência do mal proceder daqueles que apodrecem em suas riquezas. Os pobres não existem “porque sim”, mas por uma deficiente partilha dos bens e de uma insensibilidade diante de quem é vítima de uma estrutura social e econômica perversa.

A cena revela-se ainda mais dramática, quando se considera que o pobre se chama Lázaro, um nome muito promissor pois significa, literalmente, «Deus ajuda». Não se trata de uma pessoa anónima; antes, tem traços muito concretos e aparece como um indivíduo a quem podemos atribuir uma história pessoal. Enquanto Lázaro é como que invisível para o rico, a nossos olhos aparece como um ser conhecido e quase familiar, torna-se um rosto; e, como tal, é um dom, uma riqueza inestimável, um ser querido, amado, recordado por Deus, apesar da sua condição concreta ser a de um descarte humano.

A parábola põe em evidência, sem piedade, as contradições em que vive o rico. Este personagem, ao contrário do pobre Lázaro, não tem um nome, é qualificado apenas como «rico». A sua opulência manifesta-se nas roupas, de um luxo exagerado, que usa. De fato, a púrpura era muito apreciada, mais do que a prata e o ouro, e por isso se reservava para os deuses. Assim, a riqueza deste homem é ofensiva, inclusive porque exibida habitualmente: “Fazia todos os dias esplêndidos banquetes”

A sua personalidade vive de aparências, fazendo ver aos outros aquilo que se pode permitir. Mas a aparência serve de máscara para o seu vazio interior. A sua vida está prisioneira da exterioridade, da dimensão mais superficial e passageira da existência. Para o homem corrompido pelo amor das riquezas, nada mais existe além do próprio ego e, por isso, as pessoas que o rodeiam tornam-se invisíveis; seu olhar não as alcança. Assim, o fruto do apego ao dinheiro é uma espécie de cegueira: o rico não vê o pobre esfomeado, chagado e prostrado na sua humilhação. 

Ao ler ou escutar a parábola temos uma primeira impressão de que ela vai contra o evangelho, pois o rico é condenado por ser rico, por puro pecado de omissão. Pensamos que esta é uma parábola sem misericórdia: nem Deus escuta o lamento do condenado que pede somente umas gotas de água. Por que não se compadece do condenado?

Mas, lendo o texto com atenção e cuidado, como parábola-advertência, sentimos por dentro que é verdade o que diz: esta é uma parábola provocativa de Jesus, uma advertência profunda para aqueles que, petrificados pela riqueza, acabam correndo o risco de converter a terra em um inferno. Esta parábola nos fala mais do presente que do “mais além”; fala de tudo o que podemos mudar desde agora para ter um futuro melhor: um verdadeiro banquete, onde a única riqueza seja o amor compartilhado. 

A parábola denuncia o abismo vergonhoso entre os próprios seres humanos; o que essa imagem nos revela é a ruptura que nossa indiferença constantemente produz, à qual, no entanto, não costumamos prestar atenção. Contra ela, já advertia Martin Luther King: “Quando refletimos sobre nosso século XX, o mais grave não parece ser as ações dos maus, mas o escandaloso silêncio dos bons”.

Por que caímos tão facilmente na indiferença? Sem dúvida, frente aos outros e frente ao mundo, ela esconde uma maior ou menor insensibilidade que, bloqueada ou endurecida, isola a pessoa em um caracol egocêntrico e a instala numa atitude indiferente – oposta à compaixão -, que está na origem das injustiças e violências que diariamente vemos em nosso mundo.

Em sua redoma protetora, o rico não vê os outros a não ser quando necessita deles, considerando-os como se fossem “objetos” a seu serviço; sua capacidade de amar fica bloqueada.

O abismo que causa a dor de Lázaro é também o abismo que provoca a dor do rico. Nos dois “quadros” da parábola – simbolizados no antes e no depois da morte -, destaca-se com intensidade a ruptura como o motivo do mal. Pois bem, esta ruptura não é casual, nem é provocada por Deus, que castigaria o rico por toda a eternidade. É causada pela indiferença do próprio rico que, em sua cegueira, não “vê” o pobre jogado ao chão, à sua porta.

Em seu processo de desumanização o rico “epulón” fez das riquezas seu “deus”. Este “deus” matou seu coração, sua sensibilidade e sua humanidade; ficou sem entranhas de compaixão, pois ao seu redor já não existiam outras pessoas a não ser o seu ego fechado, isolado...

Como poderia ver aquele pobre homem desprezado ou chegar a saber seu nome, caído à porta de seu palácio esperando algumas sobras para comer? Lázaro tornou-se “invisível” para aquele que ficara cego por causa de suas riquezas. 

O pobre está fora da porta, rodeado de cães da rua. O homem rico se encontra dentro de casa. Não acontece nenhuma forma de comunicação entre eles. Na primeira parte, ambos se encontravam próximos um do outro; o texto realça a distância espacial que os separa (“um grande abismo”), mas, apesar da distância eles podem se ver e escutar um ao outro. É só abrir a porta.

O destino do rico “epulón” é o melhor espelho para ver a realidade tal qual ela é, essa que o mundo nos impede reconhecer: que o autêntico mendigo e indigente era ele, e que a solidão lhe oprimia em meio ao esbanjamento mais agressivo.

Muitas vezes, as portas protegem do encontro com o diferente, blindam a individualidade e parecem ser itens indispensáveis à sobrevivência. Assim, o indivíduo se tornará um prisioneiro de sua visão de mundo e fará de sua casa uma couraça que protege.  A riqueza pode ser um grande portão que impede ver o que há do outro lado; a púrpura e o linho podem ser um impedimento para ver os desnudos da rua; os banquetes podem obscurecer a capacidade de ver aqueles de estômago vazio, atirados à entrada do portão de casa. 

No fundo, o que a parábola deste domingo denuncia é a falta de compaixão do rico para com o pobre; sua riqueza o torna frio, distante e petrificado.

Sabemos que a compaixão é o sinal mais claro de maturidade humana. A indiferença, pelo contrário, manifesta nossa imaturidade e atrofia nossa humanidade. A compaixão desperta o contato com a nossa própria vulnerabilidade ou fragilidade.

Quando acolhemos toda nossa realidade humana a partir de uma atitude humilde, é provável que emerja um sentimento amoroso para conosco mesmo; assim, nos tornamos mais sensíveis ao sofrimento dos outros.

A indiferença é, antes de mais nada, cegueira que alimenta uma insensibilidade diante da situação de penúria dos outros, petrificando-nos por dentro. Certamente, constitui um mecanismo de defesa, com o qual nos blindamos diante da necessidade e da dor dos outros – “olhos que não veem, coração que não sente” -; mas, em último termo, nasce de não “saber” que o outro é o nosso espelho: nele nos vemos e nele nos sentimos interpelados. Para isso é preciso abrir as portas do coração para viver a “cultura do encontro”. 

Texto bíblico:  Lc 16,19-31

Na oração: A parábola deste domingo nos fala também da necessidade de abrir a porta e acolher o que é rejeitado, ferido, desprezível... que descobrimos em nós, de receber amorosamente em nossos braços o pobre Lázaro interior, de contemplá-lo com olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo interior e cresceremos na sensibilidade frentes aos “lázaros” da vida.

- Diante do mundo da exclusão e da miséria, que sentimentos prevalecem em você: indiferença, compaixão, insensibilidade, espírito solidário...?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

22.09.22