“... após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo” (Lc 1,3)

Neste terceiro domingo do Tempo Comum, a liturgia nos convida a um passeio pelos primeiros capítulos do terceiro evangelista. O texto de hoje nos dá boas-vindas ao Evangelho de Lucas; em seguida, salta os relatos da infância e do batismo de Jesus. Depois de procurar dar solidez aos testemunhos da comunidade lucana e a tudo o que foi fixado por escrito a respeito de Jesus, nos situa diretamente em sua vida pública, já com o discernimento feito, durante o tempo do deserto, sobre o sentido de sua missão.

Antes de começar a narrar o ministério da vida pública, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsionou Jesus e qual foi o horizonte de sua atuação. Os cristãos devem saber em que direção o Espírito de Deus conduziu Jesus, pois segui-Lo é precisamente caminhar em sua mesma direção.

Lucas nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. O Evangelho de hoje marca o início da missão de Jesus: conduzido pela força do Espírito, Ele começa justamente lá onde “ninguém era capaz de dirigir o olhar e o coração”.

O relato deste domingo começa com um formato epistolar dirigido a Teófilo. Lucas o situa no princípio do Evangelho e no começo do livro dos Atos dos Apóstolos, para dar-lhe um caráter literário, como se fosse uma longa carta remetida a seu companheiro Teófilo. Mas não é só uma carta subjetiva relatando o que fora experimentado, mas alude a uma investigação diligente para dar consistência e solidez aos fatos que marcaram profundamente Aquele que passou por esta vida fazendo o bem.

Teófilo não é tanto um indivíduo, mas devemos entendê-lo no sentido etimológico da palavra: “Theos”: Deus/”philos”: amigo. Lucas dirige seu evangelho aos amigos de Deus. Deus é amigo, amigo nosso, amigo de todos. Nossa relação com Ele não se fundamenta no poder, na ameaça, na imposição e no domínio, mas na amizade que não alimenta medo, angústia, submissão.

Segundo o Evangelho, somos amigos(as) de Deus (Teófilo), não clientes de uma religião.

“Teófilo” somos todos: Deus é amigo de todos nós. No missal romano há uma oração eucarística na qual se diz: “quando pela desobediência perdemos vossa amizade, não nos abandonaste...). E quem disse que Deus deixou de ser amigo das pessoas? Deus não retirou nunca sua amizade para com o ser humano.

É uma consideração de grande transcendência saber que somos todos amigos e amigas de Deus e que Ele nos tem a todos por seus amigos e amigas. Infelizmente, na vida cristã, dá-se muito maior peso a expressões carregadas negativamente: pecadores, indignos, miseráveis... Fala-se tanto de pecado e de inferno e muito pouco do “Deus amigo” que nos quer bem, que nos ama a todos.

É um bálsamo escutar S. Lucas afirmar que Deus é nosso amigo. O Evangelho de Jesus, portanto, é boa-notícia dirigida aos amigos e amigas de Deus. O Deus de Jesus não é um justiceiro temível a quem devemos aplacá-lo com nossas míseras penitências e mortificações. Deus é amigo; quem é amigo não sufoca o outro com pesadas cargas de leis, culpas e condenações; quem é amigo não se impõe sobre os outros através da obediência cega. Quão distante estamos do “Deus amigo” revelado por Jesus!

Avançando no texto, o evangelista Lucas nos mostra Jesus no início de seu ministério, expondo seu “projeto com vida” na sinagoga de Nazaré. É a etapa do início de sua pregação, de sua vida itinerante e, posteriormente, já em Cafarnaum, o relato de suas primeiras curas e do chamado de seus primeiros discípulos.

Jesus dirige-se à sinagoga, como era costume entre os judeus, e ali lhe entregam o pergaminho onde estava escrito o texto do profeta Isaías (61,1-2). Não há dúvida que Lucas persegue um objetivo claro: fazer deste discurso em Nazaré o programa daquilo que vai ser toda a atuação de Jesus na Galiléia.

A cena na Sinagoga em Nazaré é impactante. Não é casual que Lucas a eleja como ponto de partida de todo o ministério de Jesus. Chama a atenção, antes de tudo, a “ousadia” de Jesus: ele, o carpinteiro do povo, sem título algum, se levanta na sinagoga de seu próprio povo e se reveste da função do escriba, se apresenta como mestre, diante da admiração e espanto de todos.

Lucas descreve com todo detalhe o que Jesus faz na sinagoga: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, ele mesmo busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e senta-se. Todos escutam com atenção as palavras escolhidas por Ele, pois revelam a missão à qual se sente chamado por Deus.

É sintomático que, na leitura do texto de Isaías, Jesus tenha omitido o último versículo: “anunciar um dia de vingança do nosso Deus”. Isso é de muita importância porque desmonta uma falsa imagem de Deus. Jesus se sente com autoridade suficiente para começar a reinterpretar a lei judaica a partir da coerência com sua nova consciência: sentir-se habitado pelo Espírito, que lhe tinha fortalecido no deserto, e pelo amor filial, experimentado no batismo.

De fato, a imagem de um Deus vingativo choca frontalmente com a imagem de um Deus Mãe-Pai que cuida, protege, dignifica e lança ao crescimento, à liberdade e à autonomia a partir de um vínculo profundo.

Trata-se de uma passagem para a consciência adulta centrada na concepção da religiosidade que não se encaixa com a dinâmica infantil do prêmio-castigo diante do bem ou do mal praticado. Jesus nos situa diante de um Deus que habita nosso ser mais profundo e que se manifesta como “graça”, como luz, força, cura e autoridade, a partir da dignidade que nos confere. Uma consciência de liberdade que favorece a eleição daquilo que vai dar um sentido profundo à nossa vida. E esta visão vital tem claríssimas consequências como Jesus expõe nessa recuperação do texto de Isaías.

Poderíamos dizer que Lucas apresenta Jesus pronunciando seu “discurso programático”, fruto do discernimento durante sua estadia no deserto, logo após seu batismo. A “força” de seu programa não procede de uma ideologia poderosa, nem de uma determinada religião, nem de um patriotismo doentio; Jesus vive e começa a atuar impulsionado pela “força do Espírito de Deus”. Ele se deixa conduzir, no mais profundo de si mesmo, pelo Espírito; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele.

O modo de ser e viver de Jesus é o do Espírito de Deus. O mesmo Espírito criador e criativo do Gênesis, agora “paira” sobre Jesus: Espírito de vida. O mesmo Espírito que atuou durante o êxodo do povo de Israel: Espírito de Liberdade. O Espírito é brisa suave, descanso, é consolo e ânimo. É o mesmo Espírito de fecundidade e vida (Maria-Jesus). Espírito que move a comunidade cristã, arrancando-a de seus medos. E esse Espírito é paz, alegria, impulso e esperança para viver.

A vida e a missão de Jesus são presididas não por esquemas religiosos, mas pela criatividade, pela liberdade, pela vida, pelo ânimo, consolo... despertados pelo Espírito.

Sob a ação do Espírito, Jesus deixa claro que sua missão é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver...

Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem e da mulher. Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”.

E, ao “fixar os olhos n’Ele”, os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo. As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração.

Texto bíblico:  Lc 1,1-4;4,14-21

Na oração: Se o que fazemos e proclamamos, como cristãos, não é captado como algo bom e libertador pelos que mais sofrem, que Evangelho estamos anunciando? A que Jesus estamos seguindo? Quê espiritualidade estamos promovendo? Estamos caminhando na mesma direção que Jesus caminhou?

- Inspirado(a) na missão de Jesus, qual é sua missão no ambiente em que você vive? Família, trabalho, comunidade cristã, compromisso social...?

- Sua missão o(a) situa no horizonte do empobrecido, do excluído...?

- Na sinagoga de sua vida, o que prevalece? a preocupação com o rito, com a doutrina, com as leis... ou é lugar de abertura ao mundo do outro?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

22.01.2025