Começamos a Quaresma com o rito da “imposição das cinzas”. Há um risco de vivermos a travessia quaresmal contentando-nos com atos externos de penitência, renúncia, mortificações... sem referência à pessoa de Jesus Cristo e sem abertura aos outros. O silêncio do deserto nos ajuda a encontrar nosso centro, a partir de onde podemos acertar em nossas opões vitais, sem cair nas armadilhas do ego.

Esta Quaresma pode ser um marco no nosso caminho, um caminho de Paixão que já estamos vivendo nestes momentos de profundas crises, rupturas sociais e destruição da natureza; quer ser também um caminho de Ressurreição e que não poderá ser uma experiência solitária; ou nos renascemos todos para uma nova humanidade ou este mundo será uma experiência falida.

Há um drama radical que nos afeta a todos e que, cada vez mais, assume um rosto assustador. Trata-se da gravidade da destruição da Casa Comum, com profundas consequências: desmatamentos, secas, poluição ambiental, contaminação das águas...

Precisamos, neste tempo litúrgico especial, despertar nossa consciência ecológica para alimentar um novo modo de pensar e de conceber o universo enquanto “teia de relações”. Isto significa que há uma unidade fundamental que perpassa todas os seres do universo, na forma de uma “rede”. Nenhuma espécie é autossuficiente; todas são interdependentes.

Nós, seres humanos, também fazemos parte desta vasta rede de inter-relações, conectados a todos os elementos da natureza, desde a menor célula até a vastidão do cosmos. Somos quem somos somente na relação e por nossa relação com todas as criaturas e com o próprio planeta. 

Para tornar a nossa vida mais fraterna, aberta e comprometida com a causa da vida, a Campanha da Fraternidade da Igreja no Brasil nos situa diante desta dura realidade que nos escandaliza. Com o provocativo tema - “Fraternidade e Ecologia Integral” – e o lema – “Deus viu que tudo era muito bom” (Gen 1,31) - somos chamados a despertar nossa sensibilidade solidária frente a esta grave situação de destruição que nos envergonha.

A ecologia integral começa por uma mudança de mentalidade, por uma nova sensibilidade e deve nos conduzir a uma simplicidade de vida, não consumista, solidária, defensora dos pobres e da natureza, agradecida ao Deus criador do céu e da terra.

A conversão ecológica, à qual o papa Francisco nos convida, afeta todas as dimensões da condição humana: a relacional, a social, a afetiva, a econômica, a política, a espiritual... Assim, através da contemplação reverente, mergulhamos nesse “mar cósmico”, que deixa transparecer a presença divina. “Sentir Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio) nos conduz à iluminação, à profunda serenidade e à integração com o universo.

Pertencemos a uma comunidade cósmica de vida, tal como foi criada e sustentada por Deus. Há uma íntima relação entre nós, seres humanos, e a natureza. Humanidade e Terra, formamos uma única realidade esplêndida, reluzente, frágil e cheia de vigor. Viemos da Terra e voltaremos à Terra. Somos parte do universo, feitos do mesmo pó cósmico que se originou com a explosão das grandes estrelas vermelhas.

As mesmas energias, os mesmos elementos físico-químicos da Terra circulam por todo o nosso corpo, sangue e cérebro. Somos argila sobre a qual é soprado o Espírito divino que anima e inspira.

Neste início da Quaresma, o gesto de receber as cinzas sobre nossas cabeças tem o sentido de uma mobilização para começarmos a caminhar em direção ao “centro de nosso ser”, conscientes de que este caminho nos humaniza e nos diviniza ao mesmo tempo. Receber as cinzas nos faz entrar em comunhão com toda a natureza e vem reforçar a fraternidade universal: “somos pó, mas pó apaixonado”, habitados pelo Sopro do Espírito.

Para viver com mais intensidade o espírito quaresmal, a liturgia nos propõe três atitudes que nos descentram e nos fazem entrar no ritmo da radical gratuidade: a oração, o jejum e a esmola (caridade fraterna).

Uma vez no deserto com Jesus, devemos ativar a atitude de escuta daquela voz interior que se desperta diante da força da Palavra. A isso chamamos oração. Oramos quando dirigimos nosso olhar a Deus, ao mundo e a nós mesmos. Oramos com a Bíblia, com a natureza, com as notícias, com os desejos, com os medos... Oramos de mil formas diferentes... Na oração expressamos o melhor de nossa vida, e entramos em sintonia com toda a Criação: na intimidade com Deus somos porta-vozes dos clamores da humanidade e de todas as criaturas.

E, se escutarmos profundamente com os sentidos ativos, brotarão gestos de atenção e sensibilidade diante de homens e mulheres que mais precisam de paz, pão e palavra. Chamamos isso de “esmola” (ou “caridade fraterna”), que significa porta aberta para viver a partilha e o encontro com todos, movidos pelo nosso olhar contemplativo e pelas nossas entranhas compassivas.

Depois da esmola e da oração, culminando a trilogia da “justiça” do evangelho de Mateus, vem o gesto da renúncia positiva, não por sadismo ou vitimismo, mas por elevação da interioridade pessoal e pela solidariedade humana. Este é o sentido do jejum da quaresma cristã: ao lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê e para quem vivemos? Só para acumular e encher nossos “celeiros” ...?

Fazer jejum sem despertar uma atitude de solidariedade e de partilha é cair no “farisaísmo egóico”. Falamos de um jejum humano, espiritual e corporal no sentido mais profundo; jejum pessoal, mas que quebra nosso farisaísmo e nos conduz a uma autêntica solidariedade e comunhão com os outros, sobretudo com as vítimas da fome e da miséria.

Jesus, ao recuperar o sentido verdadeiro destas três práticas quaresmais, nos “revela” aquilo que os hipócritas esquecem: a esmola, a oração e o jejum precisam ser vividos no “escondimento”. O essencial da vida, que é o amor, sempre é discreto. O que não é essencial faz barulho, como a vaidade, o prestígio social, o querer despertar uma boa impressão nos outros...; tudo isso é pura hipocrisia.

Quaresma pede humildade e sinceridade de coração. Durante o percurso quaresmal deste ano, também não podemos esquecer o apelo do Papa Francisco para que todas as comunidades cristãs vivam, com sentido e inspiração, o tema do Ano Jubilar: “Peregrinos de esperança”. “Agora chegou o momento de um novo Jubileu, em que se abre novamente, de par em par, a Porta Santa para oferecer a experiência viva do amor de Deus, que desperta no coração a esperança segura da salvação em Cristo” (Bula Papa Francisco, n. 6)

Somos todos peregrinos, mas os viajantes são diferentes. A estrada não é igual para todos. Vivemos uma caminhada que começa dentro de nós mesmos, nas estradas e trilhas do nosso eu profundo.

Mas, ao mesmo tempo, é um caminhar solidário: na peregrinação de cada pessoa estão presentes milhões e milhões de experiências de caminhos vividos e percorridos por incontáveis gerações. A missão de cada um é prolongar este caminho e vivê-lo tão intensamente que aprofunde o caminho recebido, endireite o caminho retorcido e ofereça aos futuros caminhantes um caminho enriquecido com suas pisadas.

Caminhamos juntos, acompanhados por Aquele que é o Caminho, o Peregrino por excelência.Quem caminha quer ser mais. Seu horizonte é o seu sonho, o seu ideal. Aceita o desafio de caminhar com os pés no chão e o coração na eternidade. “Temos fome e sede de estrada, e ela está ardendo por dentro”.

Texto bíblico:  Mt 6,1-6.16-18

Na oração: Senhor, mostra-nos teus caminhos! Este é o apelo que se faz mais forte durante o tempo quaresmal. O deserto é, ao longo de toda a Bíblia, um lugar privilegiado para novas experiências do Deus que caminha em meio a seu povo.

Para fazer uma “travessia quaresmal” é preciso uma inspirada preparação e uma mobilização de todo o seu ser.

- Como você se propõe a viver as “três práticas quaresmais”: oração, jejum e esmola?

- O tema da CF deste ano (fraternidade e Ecologia Integral) tem ressonância em seu interior?

- Que gestos concretos você poderia assumir para viver a Ecologia integral?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

05.03.2025