Na edição da última semana vimos que o Senhor se apropria de algumas de nossas realidades carnais (água, pão, vinho, azeite, homem e mulher, coração contrito), as associa a seu Corpo em crescimento e a faz participar de sua irradiação vivificante. Assim, o que chamamos de sacramentos, são, na verdade, as ações deificantes do Corpo de Cristo em nossa própria humanidade.” (2009, p.97).
Por essa razão, tanto Tra le solecitudini quanto Sacrosanctum Concilium (SC) afirmam que a fonte da identidade dos cristãos é a participação na Liturgia. Mas por que? O Concílio estipula no proêmio a relação entre Liturgia e vida cristã: “A Liturgia […] contribui sumamente para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o Mistério de Cristo[…]”. Para lermos adequadamente este excerto da Constituição, é preciso precisar o significado da palavra latina confert. Ela não significa apenas contribuir, mas também e sobretudo conferir, levar, conduzir. Numa tradução mais livre, porém não menos exata, podemos dizer que a Liturgia conduz ou conecta a vida dos fiéis também em sua relação com os outros, com o Mistério de Cristo de uma forma tal, que nenhuma outra atividade eclesial pode fazê-lo. As celebrações do Mistério de Cristo, em sua dinâmica ritual, conferem aos fiéis a vida divina. Dito de outro modo, santificam-nos.
Para Tomás de Aquino os sacramentos significam aquilo que aconteceu em Cristo e realizam nos fiéis que os celebram aquilo que se deu no Filho . Eles explicitam a presença atuante de Jesus: “os [sacramentos] da nova Lei são aptos para mostrá-la [a graça] presente. Entrelaçam-se sinal e causa. O sinal dá a conhecer, a causa refere-se à operacionalidade do que é conhecido. Dito de outra forma, a sacramentalidade consta – na ótica tomásica – de dois aspectos: um cognitivo, da acessibilidade da inteligência ao conhecimento daquilo que se deu em Jesus mediante o sinal sensível e, simultaneamente, da comunicação do que é conhecido ao fiel que celebra. Daniélou aborda esta questão em seu Bíblia e Liturgia. Na introdução, resgata a compreensão escolástica de que os sacramentos causam à medida que significam (significando causant). A eficiência sacramental não tem a ver com um raciocínio sobre a vida de Jesus, com a qual o fiel toma contato ao celebrar. Como dirá Chauvet, trata-se de reconduzir a humanidade do fiel à sua fonte, que é humanidade do Filho tal e qual se nos é apresentada no Evangelho (2010, p.107). E isso se faz não pela “palavra”, enquanto uma explicação ou explanação teórica, mas pela ação, pelo atuar de Cristo em nós, e é disso que se trata a Liturgia (2010, p. 110). Deste modo, falar da santidade à qual todos somos vocacionados em chave litúrgico-sacramental tem a ver com tomar contato com o Evangelho à maneira própria dos sinais litúrgicos, segundo a maneira que têm de mediar a transformação do discípulo e discípula conforme a imagem de seu Mestre.
Voltando à perspectiva de Tomás, ao se celebrarem os sacramentos, é comunicada uma “semelhança com o ser divino” (Summa Liv. IX,Q 62, Art. 2 ). Para ele, o sacramento é instrumento. Esta “instrumentalidade” da celebração (é importante aqui não considerar o sacramento como uma ‘coisa’) está relacionada com a mediação do sinal sensível, próprio de nossa humanidade, pelo qual se entra em contato com a humanidade de Jesus, que por sua vez está unida à sua condição divina. Dito de outra forma, a teologia escolástica entende que a santificação é dom de Deus (origem divina) que chega até nós pela humanidade de Cristo em sua conexão com os sinais sensíveis, que são os sacramentos (Et ideo oportet ut virtus salutífera derivetur a divinitate Christi per eius humanitatem in ipsa sacramenta).
Marcio Pimental
In: Opinião e notícias 31.08.2018