Na edição anterior, encerramos nossa reflexão recordando um importante parágrafo da Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (GE 20) pleno de clareza e profundidade. Nesse documento, o Papa Francisco afirma que a santidade é, em suma, viver em união com Jesus os mistérios de sua vida. Podemos dizer que se trata de “assemelhar-se” a Cristo.
Sobre as formas de chegar a essa proeza, o Papa é muito ‘econômico’ em suas referências explícitas à Liturgia. Aliás, já no início da exortação esclarece que não é seu objetivo deter-se detalhadamente sobre os meios de aceder à santidade. Francisco usa o termo ‘liturgia’ apenas uma vez, quando fala em tom de censura, ao citar o neopelagianismo denunciado no cuidado exagerado, meticuloso até (versão inglesa) de alguns (cf. GE 57). Positiva mas laconicamente, cita as celebrações dos sacramentos, particularmente a partilha da Palavra de Deus e a Eucaristia, como ocasiões que nos fazem “mais irmãos e vai nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária” (GE 142).
Cabe, no entanto, tanto aos fiéis, quanto aos seus pastores e – especialmente – aos estudiosos da área, um estudo sério da exortação a partir do enfoque litúrgico-sacramental. Quer dizer, em termos práticos, o que significam estas afirmações todas, particularmente em se tratando das celebrações cristãs?
Para começar a conversa, tudo quanto fala o Pontífice acerca da santidade deve ser também analisado a partir da dimensão ‘fontal’ da Liturgia. E esta não pode ser compreendida de maneira reduzida, considerando-a como espécie de evento motivacional que desemboque no campo ético e moral. Em seu famoso “Liturgia de Fonte”, Jean Corbon, ao tratar da Transfiguração, afirma que a Economia Salvífica tem como horizonte conduzir-nos à unidade entre nossa humanidade e a humanidade de Jesus. Por isso, textualmente, esclarece: “a deificação do homem será participação no Corpo de Cristo”. Isto é, a Liturgia é fonte à medida que bebemos dela; à medida que nos saciamos daquilo que ela nos pode oferecer que é a humanidade do Verbo. Com precisão, continua Corbon, tecendo as tramas mais fundamentais de uma autêntica sacramentologia:
“A humanidade de Jesus é ‘filial’ pode desposar os mínimos movimentos e as mais íntimas feridas de nossa humanidade para derramar aí a vida do Pai. As energias deificantes do Corpo de Cristo nos alcançam a partir daí em todo o nosso ser, em nosso corpo. O Senhor se apropria, então, de algumas de nossas realidades carnais (água, pão, vinho, azeite, homem e mulher, coração contrito), as associa a seu Corpo em crescimento e a faz participar de sua irradiação vivificante. O que chamamos de sacramentos, são, na verdade, as ações deificantes do Corpo de Cristo em nossa própria humanidade.” (2009, p.97).
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
In: Opinião e notícias 24.08.208