A desforra dos “falhados”. Poderia ser este o subtítulo do mais recente filme de animação realizado pela Disney-Pixar, “Luca”, a narrativa de um verão memorável vivido por três pré-adolescentes que descobrem o valor da amizade no caminho formativo, e da ternura e cumplicidade que se guardam depois na idade adulta. “Luca” é um hino poético à solidariedade, à inclusão, que propõe com jocosidade temas complexos como violência na infância e adolescência (“bullying”) e medo do “outro”.
O filme é também uma maravilhosa homenagem a Itália, sobretudo à sua memória cultural, com referências cinematográficas e musicais de grandes criadores transalpinos, para não se falar da Vespa, admiradíssima “duas rodas” que marcou a retoma do sonho italiano a partir do pós-segunda guerra mundial. A realização foi confiada ao italiano Enrico Casarosa, que aqui assina a primeira longa-metragem após a conseguida curta, também de animação, “La luna”, candidata aos Óscares em 2012.
Luca Paguro, de 13 anos, é muito curioso e desejoso de aprender tudo da vida. Sobretudo fora de água. Sim, porque Luca é na verdade um monstro marinho de aspecto humano que vive no mar que banha as Cinco Terras. Os pais de Lucas não querem que ele se abeire, de maneira alguma, fora de água, porque não se pode confiar nos “humanos”, são perigosos. O encontro com o coetâneo Alberto Scrofano impeli-lo-á a entrar em terra firme, dando-se conta de que pode assumir fisionomias humanas.
Os dois lançar-se-ão à descoberta dos usos e hábitos dos “temidos inimigos”. Ao percorrer a cidade de Portorosso, depressa são surpreendidos pela beleza: as bicicletas, a Vespa, a massa, o gelado, e sobretudo a sua nova amiga Giulia Marcovaldo, brilhante jovem de cabelos vermelhos que quer vencer a todo o custo uma competição desportiva local para provar as suas capacidades, e também para demonstrar que não é inferior aos rapazes. Juntos, formam uma equipa de improváveis, mas com a alegria na alma que os compele a realizar pequenos grandes feitos.
Entre os muitos temas desta animação encontramos a violência entre adolescentes e os preconceitos, tratados com uma poderosa mensagem sobre o valor do conhecimento e da escolarização, dirigindo aos jovens um convite a serem eles próprios, a aceitarem-se a acreditarem nas suas capacidades. Uma consolidação da autoestima graças ao cimento da amizade: são os amigos, com efeito, que fazem com que a pessoa nunca se sinta só e que dão impulso para mergulhar corajosamente nas páginas aventurosas da existência. Em “Luca” há também uma preciosa mensagem sobre a inclusão, um convite a escutar e a acolher o “outro”.
O curto-circuito na narrativa ocorre no momento em que se levanta o véu da separação entre humanos e monstros marinhos, duas comunidades que desconfiam uma da outra, barricadas nos seus preconceitos, que graças à coragem destes jovens compreendem que não estão assim tão distantes nem são radicalmente diferentes. Descobrem-se próximas e aprendem a apreciar o valor da partilha, do abrir-se ao encontro.
O verdadeiro coração narrativa do filme é o dom da amizade, laço que se descobre na estação mais bela da vida, a infância, e que nos acompanha com doçura enquanto adultos. Casarola oferece-nos o sonho de um verão inesquecível, fazendo aflorar emoções como que mordendo a pequena “madalena de Proust”.
Através do entendimento inicial entre Luca e Alberto, e depois com a chegada de Giulia, é possível reviver as recordações que cada um de nós guarda na memória do coração, a imagem daquele amigo ou amiga que tornou precioso o nosso mundo e talvez o tenha mudado. Como declarou o próprio realizador: «Esta é uma história profundamente pessoal, não só porque tem como cenário a “riviera” italiana onde cresci, mas porque no centro deste filme está a celebração da amizade. As amizades infantis estabelecem muitas vezes a rota de quem nos queremos tornar».
Graças a uma realização (e argumento) sólida, brilhante e marcada pela poesia, “Luca” combina o sonho e a memória com o presente, acendendo de cores o horizonte de quem vê. Regista-se, com efeito, uma chuva de belas emoções visivas e auditivas, que oferecem divertimento e arrebatamento. “Luca” cria encanto e, ao mesmo tempo, recorda-nos o valor de muitos elementos-chave na vida: em primeiro lugar, a necessidade de ter amigos, bons amigos, como também nunca renunciar ao diálogo em família, ainda que ideias e projetos pessoais possam gerar mais faíscas que consensos; e, ainda, a importância da escola, local do bom crescimento, porto seguro de onde partir para traça o mapa dos próprios sonhos.
“Luca” é um filme que aquece a alma e amplifica o mágico perfume do verão, em que tudo parece possível, inclusive reencontrar o sonho e a esperança.
Sergio Perugini
In Comissione Nazionale Valutazione Film (Conferência Episcopal Italiana)
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 23.06.2021 no SNPC