Catequese sobre a Velhice 16. «Vou preparar-vos um lugar» (cf. Jo 14, 2). A velhice, um tempo projetado para o cumprimento
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Já estamos nas últimas catequeses dedicadas à velhice. Hoje entramos na comovedora intimidade da despedida de Jesus dos seus, amplamente narrada no Evangelho de João. O discurso de despedida começa com palavras de consolação e promessa: «Não se turbe o vosso coração» (14, 1); «Quando Eu tiver ido e vos tiver preparado um lugar, virei novamente e levar-vos-ei comigo, para que onde Eu estiver estejais vós também» (14, 3). Como são bonitas estas palavras do Senhor!
Pouco antes, Jesus disse a Pedro: «Seguir-me-ás mais tarde» (13, 36), recordando-lhe a passagem através da fragilidade da sua fé. O tempo de vida que resta para os discípulos será, inevitavelmente, uma passagem pela fragilidade do testemunho e pelos desafios da fraternidade. Mas será também uma passagem através das emocionantes bênçãos da fé: «Quem acreditar em mim fará também as obras que Eu faço e fará obras ainda maiores do que estas» (14, 12). Pensai na promessa que isto é! Não sei se pensamos até ao fundo, se acreditamos plenamente nisto! Não sei, às vezes penso que não...
A velhice é o tempo propício para o testemunho comovedor e jubiloso desta expetativa. O idoso e a idosa permanecem à espera, à espera de um encontro. Na velhice, as obras da fé que nos aproximam, a nós e aos outros, do reino de Deus, já estão para além do poder das energias, palavras e impulsos da juventude e da maturidade. Mas tornam ainda mais transparente a promessa do verdadeiro destino da vida. E qual é o verdadeiro destino da vida? Um lugar à mesa com Deus, no mundo de Deus. Seria interessante ver se nas Igrejas locais existe alguma referência específica, destinada a revitalizar este ministério especial da expetativa do Senhor – é um ministério, o ministério da expetativa do Senhor – encorajando os carismas individuais e as qualidades comunitárias da pessoa idosa.
Uma velhice consumida no desalento pelas oportunidades perdidas causa desânimo a si próprio e a todos. Ao contrário, a velhice vivida com docilidade, vivida com respeito pela vida real dissolve definitivamente o equívoco de um poder que deve ser suficiente para si mesmo e para o próprio sucesso. Dissolve até o equívoco de uma Igreja que se adapta à condição do mundo, pensando assim que governa definitivamente a sua perfeição e realização. Quando nos libertamos desta presunção, o tempo do envelhecimento que Deus nos concede já é em si mesmo uma daquelas obras “maiores” de que Jesus fala. Com efeito, trata-se de uma obra que a Jesus não foi concedido fazer: a sua morte, ressurreição e ascensão ao Céu tornaram-na possível para nós! Recordemos que “o tempo é superior ao espaço”. É a lei da iniciação. A nossa vida não se destina a fechar-se em si mesma, numa imaginária perfeição terrestre: está destinada a ir além, através da passagem da morte, visto que a morte é uma passagem. Na verdade, o nosso lugar estável, o nosso ponto de chegada não é aqui, é ao lado do Senhor, onde Ele habita para sempre.
Aqui na terra começa o processo do nosso “noviciado”: somos aprendizes da vida – no meio de mil dificuldades – aprendemos a apreciar o dom de Deus, honramos a responsabilidade de o partilhar e de o fazer frutificar para todos. O tempo da vida na terra é a graça desta passagem. A presunção de parar o tempo – desejar a juventude eterna, a riqueza ilimitada, o poder absoluto – não só é impossível, mas delirante.
A nossa existência na terra é o tempo da iniciação à vida: é vida, mas que te leva em frente para uma existência mais plena, a iniciação daquela mais plena; uma vida que somente em Deus encontra o cumprimento. Somos imperfeitos desde o início e continuamos imperfeitos até ao fim. No cumprimento da promessa de Deus, a relação inverte-se: o espaço de Deus, que Jesus nos prepara com todo o cuidado, é superior ao tempo da nossa vida mortal. Eis: a velhice aproxima a esperança deste cumprimento. A velhice conhece definitivamente o significado do tempo e as limitações do lugar em que vivemos a nossa iniciação. É por isso que a velhice é sábia: é por isso que os idosos são sábios. Portanto, ela é credível quando convida a rejubilar com o passar do tempo: não é uma ameaça, é uma promessa. A velhice é nobre, não tem necessidade de se pintar para mostrar a sua nobreza. Talvez haja pintura quando falta a nobreza. A velhice é credível quando convida a rejubilar com o passar do tempo: mas o tempo passa e isto não é uma ameaça, é uma promessa. A velhice que redescobre a profundidade do olhar da fé não é conservadora por sua natureza, como se costuma dizer! O mundo de Deus é um espaço infinito, sobre o qual a passagem do tempo já não tem influência alguma. E foi precisamente na última Ceia que Jesus se projetou para esta meta, quando disse aos discípulos: «De agora em diante já não bebereis deste fruto da vinha, até ao dia em que Eu o voltar a beber convosco no reino do meu Pai» (Mt 26, 29). Foi além! Na nossa pregação, o Paraíso é muitas vezes, com razão, repleto de bem-aventurança, luz e amor. Talvez lhe falte um pouco de vida. Nas parábolas, Jesus falava do reino de Deus, instilando-lhe mais vida. Será que já não somos capazes disto, quando falamos sobre a vida que continua?
Amados irmãos e irmãs, a velhice vivida na expetativa do Senhor pode tornar-se a “apologia” completa da fé, que a todos dá a razão da nossa esperança (cf. 1 Pd 3, 15). Pois a velhice torna transparente a promessa de Jesus, projetando-se para a Cidade santa, da qual fala o livro do Apocalipse (caps. 21-22). A velhice é a fase da vida mais adequada para propagar a boa notícia de que a vida é uma iniciação para um cumprimento definitivo. Os idosos constituem uma promessa, um testemunho de promessa. E o melhor ainda há de vir. O melhor ainda há de vir: é como a mensagem do idoso e da idosa crentes, o melhor ainda há de vir. Deus conceda a todos nós uma velhice capaz disto!
Papa Francisco
10.08.22
Catequese na audiência geral
imagem: site do Vaticano
Catequese sobre a Velhice 15. Pedro e João
Estimados irmãos e irmãs, bem-vindos e bom dia!
No nosso percurso de catequeses sobre a velhice, hoje meditemos sobre o diálogo entre Jesus ressuscitado e Pedro, na conclusão do Evangelho de João (21, 15-23). É um diálogo comovedor, do qual transparecem todo o amor de Jesus pelos seus discípulos e também a sublime humanidade da sua relação com eles, em particular com Pedro: uma relação terna, mas não insípida, direta, forte, livre, aberta. Uma relação de homens na verdade. Assim o Evangelho de João, tão espiritual, tão excelso, fecha-se com um pungente pedido e oferta de amor entre Jesus e Pedro, que se entrelaça de modo totalmente natural com um debate entre eles. O Evangelista adverte-nos: ele dá testemunho da verdade dos acontecimentos (cf. Jo 21, 24). E é neles que se deve procurar a verdade.
Podemos perguntar-nos: somos capazes de preservar o teor desta relação de Jesus com os discípulos, de acordo com aquele seu estilo tão aberto, tão franco, tão direto, tão humanamente real? Como é a nossa relação com Jesus? É como aquela dos apóstolos com Ele? Não somos, ao contrário, muitas vezes tentados a encerrar o testemunho do Evangelho no casulo de uma revelação “adocicada”, à qual acrescentar a nossa veneração de circunstância? Esta atitude, que parece respeito, afasta-nos realmente do verdadeiro Jesus e torna-se até ocasião para um caminho de fé muito abstrato, muito autorreferencial, muito mundano, que não é o caminho de Jesus. Jesus é o Verbo de Deus que se fez homem, e Ele comporta-se como homem, fala como homem, Deus-homem. Com ternura, amizade, proximidade. Jesus não é como aquela imagem adocicada dos santinhos, não: Jesus está à mão, está próximo de nós.
Durante o debate de Jesus com Pedro, encontramos duas passagens que tratam precisamente da velhice e da duração do tempo: o tempo do testemunho, o tempo da vida. A primeira passagem é a admoestação de Jesus a Pedro: quando eras jovem, eras autossuficiente, quando fores velho já não serás tão senhor de ti mesmo e da tua vida. Dizei-o a mim que devo estar na cadeira de rodas! Mas é assim, a vida é assim: com a velhice vêm-te todas estas doenças e devemos aceitá-las como são, não é verdade? Não temos a força dos jovens! E até o teu testemunho – diz Jesus – e será acompanhado por esta debilidade. Deves ser testemunha de Jesus até na debilidade, na doença e na morte. Há um texto bonito de Santo Inácio de Loyola que reza: “Assim como na vida, também na morte devemos dar testemunho como discípulos de Jesus”. O fim da vida deve ser um fim de vida como discípulos: discípulos de Jesus, pois o Senhor nos fala sempre segundo a idade que temos. O Evangelista acrescenta o seu comentário, explicando que Jesus aludia ao testemunho extremo, do martírio e da morte. Mas podemos compreender de modo mais genérico o sentido desta admoestação: o teu seguimento deverá aprender a deixar-se instruir e plasmar pela tua fragilidade, pela tua impotência, pela tua dependência de outros, até para te vestires, para caminhar. Mas tu, «segue-me» (v. 19). O seguimento de Jesus continua com boa saúde, sem boa saúde, com autossuficiência, sem autossuficiência física, mas o seguimento de Jesus é importante: seguir Jesus sempre, a pé, de corrida, lentamente, de cadeira de rodas, mas segui-lo sempre. A sabedoria do seguimento deve encontrar o caminho para permanecer na sua profissão de fé – assim responde Pedro: «Senhor, Tu sabes que te amo» (vv. 15.16.17) – até nas condições limitadas da fraqueza e da velhice. Gosto de falar com os idosos, fitando os seus olhos: têm olhos brilhantes, que te falam mais do que palavras, o testemunho de uma vida. E isto é bonito, devemos conservá-lo até ao fim. Seguir Jesus deste modo, cheios de vida!
Esta conversa entre Jesus e Pedro contém um ensinamento precioso para todos os discípulos, para todos nós, crentes. E também para todos os idosos. Aprender da nossa fragilidade a expressar a coerência do nosso testemunho de vida nas condições de uma existência amplamente confiada a outros, em grande parte dependente da iniciativa de outros. Com a doença, com a velhice, a dependência aumenta e já não somos autossuficientes como antes; aumenta a dependência dos outros e também ali amadurece a fé, também ali Jesus está connosco. Também ali brota aquela riqueza da fé bem vivida durante o percurso da vida.
Mas devemos interrogar-nos mais uma vez: será que dispomos de uma espiritualidade realmente capaz de interpretar a fase – já longa e generalizada - deste tempo da nossa fraqueza confiada a outros, mais do que ao poder da nossa autonomia? Como permanecer fiéis ao seguimento vivido, ao amor prometido, à justiça procurada no tempo da nossa capacidade de iniciativa, no tempo da fragilidade, no tempo da dependência, da despedida, no tempo de se afastar do protagonismo da nossa vida? Não é fácil afastar-se do ser protagonista, não é fácil!
Sem dúvida, esta nova época é também um tempo de provação. Começando pela tentação - muito humana, indubitavelmente, mas também muito insidiosa - de preservar o nosso protagonismo. E às vezes o protagonista deve diminuir, deve abaixar-se, aceitar que a velhice te abaixe como protagonista. Mas terás outro modo de te exprimires, outra maneira de participar na família, na sociedade, no grupo de amigos. E é a curiosidade que Pedro sente: “E ele?”, diz Pedro, vendo o discípulo amado que os seguia (cf. vv. 20-21). Meter o nariz na vida dos outros. E não: Jesus diz: “Cala-te”. Deve realmente estar no “meu” seguimento? Deve porventura ocupar o “meu” espaço? Será o “meu” sucessor? São perguntas que não são úteis, que não ajudam. Deverá durar mais do que eu e ocupar o meu lugar? E a resposta de Jesus é franca e até rude: «Que te importa? Segue-me!» (v. 22). Como se dissesse: ocupa-te da tua vida, da tua situação atual e não metas o nariz na vida dos outros. Tu, segue-me. Isto sim, é importante: o seguimento de Jesus, seguir Jesus na vida e na morte, na saúde e na doença, na vida quando é próspera com tantos sucessos e também na vida difícil, com muitos momentos negativos de queda. E quando queremos intrometer-nos na vida dos outros, Jesus responde: “Que te importa? Segue-me”. Muito bem! Nós, idosos, não deveríamos ter inveja dos jovens que percorrem o seu caminho, que ocupam o nosso lugar, que duram mais do que nós. A honra da nossa fidelidade ao amor jurado, a fidelidade ao seguimento da fé que acreditamos, até nas condições que nos aproximam mais da despedida da vida, são o nosso título de admiração pelas gerações vindouras e de reconhecimento grato da parte do Senhor. Aprender a despedir-se: esta é a sabedoria dos idosos. Mas despedir-se bem, com o sorriso; aprender a despedir-se na sociedade, a despedir-se com os outros. A vida do ancião é uma despedida lenta, lenta, mas uma despedida jubilosa: vivi a vida, conservei a minha fé. Isto é bonito, quando um idoso pode dizer assim: “Vivi a vida, esta é a minha família; vivi a vida, fui pecador, mas também pratiquei o bem”. E a paz que nasce é a despedida do idoso.
Até o seguimento forçosamente inativo, feito de contemplação emocionada e de escuta arrebatada da palavra do Senhor - como a de Maria, irmã de Lázaro – será a melhor parte da sua vida, da nossa vida de idosos. Que esta parte nunca nos seja tirada, nunca (cf. Lc 10, 42). Olhemos para os idosos, olhemos para eles e ajudemo-los a fim de que possam viver e exprimir a sua sabedoria de vida, que possam dar-nos o que têm de mais bonito e bom. Olhemos para eles, escutemo-los. E nós, idosos, olhemos para os jovens sempre com um sorriso: eles seguirão o caminho, levarão em diante o que semeamos, inclusive o que não semeamos, porque não tivemos a coragem nem a oportunidade: eles levá-lo-ão em frente. Mas sempre esta relação de reciprocidade: um idoso não pode ser feliz sem olhar para os jovens e os jovens não podem ir em frente na vida sem olhar para os idosos. Obrigado!
Papa Francisco
22.06.22
Catequese na audiência geral
Imagem: site do vaticano
Catequese sobre a Velhice 14. O alegre serviço de fé que se aprende na gratidão (cfr. Mc 1, 29-31)
Ouvimos o simples e comovedor relato da cura da sogra de Simão - que ainda não se chama Pedro - na versão do Evangelho de Marcos. O breve episódio é também relatado, com ligeiras, mas sugestivas variações, nos outros dois evangelhos sinópticos. «A sogra de Simão estava de cama com febre», escreve Marcos. Não sabemos se se tratava de uma leve indisposição, mas na velhice até uma simples febre pode ser perigosa. Na velhice já não se controla o próprio corpo. É preciso aprender a escolher o que fazer e o que não fazer. O vigor do físico falha e abandona-nos, embora o nosso coração não deixe de desejar. Deve-se então aprender a purificar o desejo: ter paciência, escolher o que pedir ao corpo, e à vida. Quando somos velhos, não podemos fazer o mesmo que fazíamos quando éramos jovens: o corpo tem outro ritmo, e devemos ouvir o corpo e aceitar alguns limites. Todos os temos. Também eu agora tenho de caminhar com a bengala.
A doença pesa sobre o idoso de um modo diverso e novo do que quando se é jovem ou adulto. É como um golpe duro que se abate num momento já difícil. A doença do idoso parece apressar a morte e, contudo, diminuir aquele tempo de vida que já consideramos curto. Insinuam-se dúvidas de que não nos recuperaremos, que “desta vez será a última que adoeço…”, e assim por diante: estas ideias vêm-me à mente... Não se pode sonhar com uma esperança num futuro que agora parece inexistente. Um famoso escritor italiano, Italo Calvino, notava a amargura dos anciãos que sofrem a perda das coisas do passado, em vez de gozar a vinda das novas. Mas a cena evangélica que acabamos de ouvir ajuda-nos a ter esperança e oferece-nos já um primeiro ensinamento: Jesus não visita sozinho aquela idosa doente, vai com os seus discípulos. E isto faz-nos pensar um pouco.
É precisamente a comunidade cristã que deve cuidar dos idosos: parentes e amigos, mas também a comunidade. A visita aos idosos deve ser feita por muitos, em conjunto e frequentemente. Nunca deveríamos esquecer estas três linhas do Evangelho. Hoje, sobretudo que o número de idosos cresceu consideravelmente, inclusive em proporção aos jovens, pois estamos neste inverno demográfico, nascem menos crianças e há muitos idosos e poucos jovens. Devemos sentir a responsabilidade de visitar os idosos que muitas vezes estão sozinhos e apresentá-los ao Senhor com a nossa oração. O próprio Jesus ensinar-nos-á como os amar. «Uma sociedade é deveras acolhedora em relação à vida quando reconhece que ela é preciosa também na terceira idade, na deficiência, na doença grave e até quando está a esmorecer» (Mensagem à Pontifícia Academia para a Vida, 19 de fevereiro de 2014). A vida é sempre preciosa. Jesus, quando vê a idosa doente, pega nela pela mão e cura-a: o mesmo gesto que faz para ressuscitar aquela jovem morta: pega na sua mão e fá-la levantar-se, cura-a pondo-a de novo de pé. Jesus, com este terno gesto de amor, dá a primeira lição aos discípulos: ou seja, a salvação anuncia-se ou, melhor, comunica-se através da atenção àquela pessoa doente; e a fé daquela mulher resplandece na gratidão pela ternura de Deus que se inclina sobre ela. Volto a um tema que tenho repetido nestas catequeses: a cultura do descarte parece aniquilar os idosos. Sim, não os mata, mas socialmente cancela-os, como se fossem um fardo a ser transportado: é melhor escondê-los. Isto é uma traição à própria humanidade, é horrível, significa selecionar a vida de acordo com a utilidade, segundo a juventude e não com a vida como ela é, com a sabedoria dos idosos, com os limites dos anciãos. Os velhinhos têm tanto para nos dar: há a sabedoria da vida. Tanto para nos ensinar: por isso devemos ensinar também as crianças a cuidar dos avós e a ir ter com os avós. O diálogo entre jovens e avós, crianças e avós é fundamental para a sociedade, é fundamental para a Igreja, é fundamental para a saúde da vida. Onde não há diálogo entre jovens e idosos, falta algo e cresce uma geração sem passado, isto é, sem raízes.
Se a primeira lição foi dada por Jesus, a segunda é-nos dada pela idosa, que “se levantou e começou a servi-los”. Com efeito, também como idosos pode-se servir a comunidade. É bom que os idosos cultivem a responsabilidade de servir, superando a tentação de ficar de lado. O Senhor não os descarta, pelo contrário, dá-lhes a força para servir. E gosto de notar que não há uma ênfase especial no relato por parte dos evangelistas: é a normalidade do seguimento, que os discípulos aprenderão, em toda a sua extensão, ao longo do caminho de formação do qual farão experiência na escola de Jesus. Os anciãos que conservam a disposição para a cura, a consolação, a intercessão pelos seus irmãos e irmãs – quer sejam discípulos, centuriões, pessoas perturbadas por espíritos malignos, ou pessoas descartadas... - são talvez o mais alto testemunho da pureza desta gratidão que acompanha a fé. Se os idosos, em vez de serem descartados e afastados da cena dos acontecimentos que marcam a vida da comunidade, fossem colocados no centro da atenção coletiva, seriam encorajados a exercer o precioso ministério da gratidão a Deus, que não se esquece de ninguém. A gratidão dos idosos pelos dons recebidos de Deus na sua vida, como nos ensina a sogra de Pedro, restitui à comunidade a alegria de viver juntos, e dá aos discípulos a fé no a característica principal do seu destino.
Mas devemos aprender bem que o espírito de intercessão e de serviço, que Jesus prescreve para todos os seus discípulos, não é simplesmente um assunto de mulheres: não há sombra desta limitação nas palavras e gestos de Jesus. O serviço evangélico da gratidão pela ternura de Deus não está de forma alguma escrito na gramática do senhor e da serva. Isto, no entanto, não diminui o facto de que as mulheres, sobre gratidão e ternura de fé, podem ensinar aos homens coisas que eles têm mais dificuldade de compreender. A sogra de Pedro, antes dos Apóstolos lá chegarem, ao longo do caminho do seguimento de Jesus, mostrou o caminho também a eles. E a doçura especial de Jesus, que lhe “tocou a mão” e “se inclinou suavemente” sobre ela, deixou clara, desde o início, a sua sensibilidade especial para com os débeis e os doentes, que o Filho de Deus certamente tinha aprendido com a sua Mãe. Por favor, asseguremo-nos de que os idosos, os avós, as avós estejam próximos das crianças, dos jovens para transmitir esta memória da vida, para transmitir esta experiência da vida, esta sabedoria da vida. Na medida em que fizermos com que os jovens e os idosos tenham uma ligação, nessa medida haverá mais esperança para o futuro da nossa sociedade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 15.06.22
Catequese sobre a Velhice 13. Nicodemos. "Como pode um homem nascer, sendo já velho?" (Jo 3,4)
Entre as figuras idosas mais relevantes dos Evangelhos está Nicodemos – um dos chefes dos judeus – o qual querendo conhecer Jesus, mas foi secretamente ter com ele de noite (cf. Jo 3, 1-21). Na conversa de Jesus com Nicodemos, emerge o coração da revelação de Jesus e da sua missão redentora, quando diz: «Porque Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna» (v. 16).
Jesus diz a Nicodemos que para “ver o reino de Deus” é preciso “nascer do alto” (cf. v. 3). Não se trata de nascer de novo, de repetir a nossa vinda ao mundo, esperando que uma nova reencarnação reabra a nossa possibilidade de uma vida melhor. Esta repetição não tem qualquer significado. Aliás, esvaziaria a vida que vivemos de todo o significado, apagando-a como se fosse uma experiência falhada, um valor caducado, um descarte. Não, não é isto, este nascer de novo do qual fala Jesus: é outra coisa. Esta vida é preciosa aos olhos de Deus: ela identifica-nos como criaturas ternamente amadas por Ele. O “nascimento do alto”, que nos permite “entrar” no reino de Deus, é uma geração no Espírito, uma passagem através das águas para a terra prometida de uma criação reconciliada com o amor de Deus. É um renascimento do alto, com a graça de Deus. Não é um renascer fisicamente outra vez.
Nicodemos interpreta mal este nascimento, e questiona a velhice como evidência da sua impossibilidade: o ser humano envelhece inevitavelmente, o sonho da eterna juventude afasta-se definitivamente, o desgaste é o ponde de chegada de qualquer nascimento no tempo. Como se pode imaginar um destino que tem a forma de nascimento? Nicodemos pensa assim e não encontra o modo de compreender as palavras de Jesus. O que é este renascimento?
A objeção de Nicodemos é muito instrutiva para nós. Com efeito, podemos inverter, à luz da palavra de Jesus, a descoberta de uma missão própria da velhice. De facto, ser idoso não só não é obstáculo ao nascimento do alto do qual Jesus fala, mas torna-se o momento oportuno para o iluminar, libertando-o do equívoco de uma esperança perdida. A nossa época e a nossa cultura, que mostram uma tendência preocupante para considerar o nascimento de um filho como uma simples questão de produção e reprodução biológica do ser humano, cultivam então o mito da juventude eterna como a obsessão - desesperada – de uma carne incorruptível. Por que é a velhice - de muitos modos - desprezada? Porque traz a prova irrefutável do abandono deste mito, que nos faria regressar ao ventre da mãe, para sermos eternamente jovens no corpo.
A técnica deixa-se atrair por este mito de todos os modos: à espera de derrotar a morte, podemos manter o corpo vivo com medicamentos e cosméticos, que abrandam, escondem, removem a velhice. É claro que o bem-estar é uma coisa, a alimentação do mito é outra. Não se pode negar, contudo, que a confusão entre os dois aspetos nos está a causar confusão mental. Confundir o bem-estar com a alimentação do mito da juventude eterna. Faz-se tanto para recuperar esta juventude: muitas maquiagens, tantas cirurgias para parecer jovem. Vêm-me à mente as palavras de uma sábia atriz italiana, Anna Magnani, quando lhe disseram que deveriam tirar-lhe as rugas, e ela respondeu: “Não, não as toqueis! Foram necessários tantos anos para as ter: não as toqueis”. É isto: as rugas são um símbolo da experiência, um símbolo da vida, um símbolo da maturidade, um símbolo de ter percorrido um caminho. Não as toqueis para vos tornardes jovens, mas jovens de rosto: o que importa é toda a personalidade, o que interessa é o coração, e o coração permanece com aquela juventude do vinho bom, que quanto mais envelhece, melhor é.
A vida em carne mortal é uma lindíssima obra “incompleta”: como certas obras de arte que precisamente na sua incompletude têm um encanto único. Porque a vida aqui em baixo é “iniciação”, não conclusão: viemos ao mundo assim mesmo, como pessoas reais, como pessoas que progridem na idade, mas são reais para sempre. Mas a vida na carne mortal é um espaço e um tempo demasiado pequeno para se manter intacta e levar à conclusão a parte mais preciosa da nossa existência no tempo do mundo. A fé, que acolhe o anúncio evangélico do Reino de Deus ao qual estamos destinados, tem um extraordinário primeiro efeito, diz Jesus. Permite-nos “ver” o reino de Deus. Tornamo-nos verdadeiramente capazes de ver os muitos sinais de aproximação da nossa esperança de cumprimento por aquilo que, na nossa vida, traz a marca do destino para a eternidade de Deus.
Os sinais são os do amor evangélico, em muitos aspetos iluminados por Jesus. E se pudermos “vê-los”, podemos também “entrar” no reino, com a passagem do Espírito através da água que regenera.
A velhice é a condição, concedida a muitos de nós, na qual o milagre deste nascimento do alto pode ser intimamente assimilado e tornado credível para a comunidade humana: não comunica nostalgia do nascimento no tempo, mas amor pelo destino final. Nesta perspectiva, a velhice tem uma beleza única: caminhamos rumo ao Eterno. Ninguém pode voltar a entrar no ventre da mãe, nem sequer no seu substituto tecnológico e consumista. Isto não dá sabedoria, não dá caminho percorrido, isto é artificial. Seria triste, mesmo que fosse possível. O velho caminha para a frente, o idoso caminha em direção ao destino, rumo ao céu de Deus, o idoso caminha com a sua sabedoria vivida durante a existência. A velhice, por conseguinte, é um tempo especial para dissolver o futuro da ilusão tecnocrática de uma sobrevivência biológica e robótica, mas sobretudo porque se abre à ternura do útero criador e gerador de Deus. Aqui, gostaria de sublinhar esta palavra: a ternura dos idosos. Observai como um avô ou avó olha para os netos, como acaricia os netos: aquela ternura, livre de todas as provas humanas, que superou as provações humanas e capaz de oferecer gratuitamente o amor, a proximidade amorosa de uns aos outros. Esta ternura abre a porta para compreender a ternura de Deus. Não nos esqueçamos que o Espírito de Deus é proximidade, compaixão e ternura. Deus é assim, sabe acariciar. E a velhice ajuda-nos a compreender esta dimensão de Deus que é ternura. A velhice é o tempo especial para dissolver o futuro da ilusão tecnocrática, é o tempo da ternura de Deus que cria, cria um caminho para todos nós. Que o Espírito nos conceda a reabertura desta missão espiritual - e cultural - da velhice, que nos reconcilia com o nascimento do alto. Quando pensamos na velhice desta maneira, dizemos depois: por que então a cultura do descarte decide pôr de lado os idosos, considerando-os não úteis? Os idosos são mensageiros do futuro, os velhinhos são mensageiros da ternura, são mensageiros da sabedoria de uma existência vivida. Vamos em frente e olhemos para os idosos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 08.06.22
Imagem: pexel.com/italomelo
Catequese sobre a Velhice 12. "Não me abandones quando meu vigor se extingue!" (Sal 71,9)
A bonita prece do idoso que encontramos no Salmo 71 (70), que acabamos de ouvir, encoraja-nos a meditar sobre a forte tensão que habita a condição da velhice, quando a memória das dificuldades superadas e das bênçãos recebidas é posta à prova da fé e da esperança.
A provação apresenta-se com a fraqueza que acompanha a passagem através da fragilidade e da vulnerabilidade da idade avançada. E o salmista – um idoso que se dirige ao Senhor – menciona explicitamente que este processo se torna ocasião de abandono, engano, prevaricação e arrogância, que às vezes recaem sobre os idosos. Uma forma de mesquinhez em que estamos a especializar-nos nesta nossa sociedade. É verdade! Nesta sociedade do descarte, nesta cultura do descarte, os idosos são postos de lado e sofrem estas situações. Com efeito, não faltam aqueles que se aproveitam da idade do idoso para o enganar, para o intimidar de mil maneiras. Lemos frequentemente nos jornais ou ouvimos notícias de pessoas idosas que são enganadas sem escrúpulos, a fim de se apoderar das suas poupanças; ou que são deixadas desprotegidas e abandonadas sem cuidados; ou que são ofendidas por formas de desprezo e intimidadas a renunciar aos seus direitos. Tais crueldades também acontecem nas famílias – e isto é grave, mas acontece inclusive nas famílias. Os idosos descartados, abandonados nas casas de repouso, sem que os filhos os visitem, ou quando vão, fazem-no poucas vezes por ano. O idoso posto precisamente num canto da existência. E isto acontece: acontece hoje, acontece nas famílias, acontece sempre. Devemos refletir sobre isto.
A sociedade como um todo deve apressar-se a cuidar dos seus idosos – são o tesouro! – cada vez mais numerosos, e com frequência também mais abandonados. Quando ouvimos dizer que os idosos são despojados da própria autonomia, da sua segurança, até das suas casas, compreendemos que a ambivalência da sociedade atual em relação aos idosos não é um problema de emergências ocasionais, mas um traço da cultura do descarte que envenena o mundo em que vivemos. O idoso do salmo confia o seu desânimo a Deus: «Os meus inimigos já dizem de mim, e os que espiam a minha vida conspiram dizendo: “Deus abandonou-o”. Persegui-o, prendei-o porque não há ninguém para o salvar» (vv. 10-11). As consequências são fatais. A velhice não só perde a sua dignidade, como até se duvida que mereça continuar. Assim, todos somos tentados a esconder a nossa vulnerabilidade, a esconder a nossa doença, a nossa idade, a nossa velhice, porque tememos que sejam a antecâmara da nossa perda de dignidade. Perguntemo-nos: é humano induzir a este sentimento? Como pode a civilização moderna, tão avançada e eficiente, sentir tanta dificuldade diante da doença e da velhice, esconder a doença, esconder a velhice? E como pode a política, que se mostra tão empenhada em definir os limites de uma sobrevivência digna, ser ao mesmo tempo insensível à dignidade de uma convivência amorosa com os velhos e os doentes?
O ancião do salmo que ouvimos, o idoso que vê a sua velhice como uma derrota, redescobre a confiança no Senhor. Sente a necessidade de ser ajudado. E dirige-se a Deus. Comentando este salmo, Santo Agostinho exorta o idoso: «Não temas ser abandonado na tua velhice. [...] Por que temes que [o Senhor] te abandone, que Ele te rejeite na velhice, quando faltarem as tuas forças? Aliás, só então a sua força estará em ti, quando faltar a tua» (PL 36, 881-882). E o salmista idoso invoca: «Pela vossa justiça, livrai-me, libertai-me; inclinai para mim os vossos ouvidos e salvai-me. Sede para mim rocha protetora, cidadela forte para me salvar, sim, vós sois o meu rochedo e a minha fortaleza!» (vv. 2-3). A invocação testemunha a fidelidade de Deus e põe em questão a sua capacidade de despertar a consciência desviada pela insensibilidade à parábola da vida mortal, que deve ser preservada na sua integridade. Reza ainda assim: «Ó Deus, não vos afasteis de mim. Meu Deus, apressai-vos em me socorrer. Sejam confundidos e pereçam os que atentam contra a minha vida, sejam cobertos de vergonha e confusão os que procuram a minha desgraça» (vv. 12-13).
Com efeito, a vergonha deve recair sobre aqueles que se aproveitam da fraqueza da doença e da velhice. A oração renova no coração da pessoa idosa a promessa da fidelidade e bênção de Deus. O idoso redescobre a oração e dá testemunho da sua força. Nos Evangelhos, Jesus nunca rejeita a oração das pessoas que necessitam de ajuda. Devido à sua fraqueza, os idosos podem ensinar àqueles que se encontram noutras idades da vida que todos nós devemos abandonar-nos ao Senhor, para invocar a sua ajuda. Neste sentido, todos devemos aprender com a velhice: sim, há um dom em ser idoso, entendido como abandonar-se aos cuidados dos outros, a começar pelo próprio Deus.
Então, existe um “magistério da fragilidade”, não escondamos as fragilidades, não! São verdadeiras, há uma realidade e um magistério da fragilidade, que a velhice é capaz de nos lembrar de forma credível durante todo o período da vida humana. Não escondamos a velhice, não escondamos as fragilidades da velhice. Este é um ensinamento para todos nós. Este magistério abre um horizonte decisivo para a reforma da nossa civilização. Uma reforma indispensável para o benefício da convivência de todos. A marginalização dos idosos, quer conceitual quer prática, corrompe todas as fases da vida, e não apenas a da velhice. Cada um de nós pode pensar hoje nos idosos da família: como me relaciono com eles, recordo-me deles, visito-os? Procuro fazer com que nada lhes falte? Respeito-os? Os anciãos que fazem parte da minha família, mãe, pai, avô, avó, tios, amigos, cancelei-os da minha vida? Ou vou ter com eles para aprender a sabedoria, a sabedoria da vida? Lembra-te que também tu serás idoso ou idosa. A velhice chega para todos. E assim como gostarias de ser tratado ou tratada no momento da velhice, trata tu os idosos hoje. Eles são a memória da família, a memória da humanidade, a memória do país. Preservai os idosos, que são sabedoria. O Senhor conceda aos idosos que fazem parte da Igreja a generosidade desta invocação e desta provocação. Que esta confiança no Senhor nos contagie. E isto, para o bem de todos, deles, de nós e dos nossos filhos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 01.06.22
Catequese sobre a Velhice 11. Qohélet: a noite incerta do sentido e das coisas da vida
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Na nossa reflexão sobre a velhice – continuamos a refletir sobre a velhice – hoje confrontamo-nos com o Livro do Eclesiastes, outra joia encastoada na Bíblia. Numa primeira leitura, este pequeno livro surpreende e desorienta pelo seu célebre refrão: «Tudo é vaidade», tudo é vaidade: o refrão que vai e vem; tudo é vaidade, tudo é “neblina”, tudo é “fumaça”, tudo é “vazio”. É surpreendente encontrar estas expressões, que questionam o significado da existência, dentro da Sagrada Escritura. Na realidade, a oscilação contínua do Eclesiastes entre o sentido e o não-sentido é a representação irónica de um conhecimento da vida que se desprende da paixão pela justiça, da qual é garante o juízo de Deus. E a conclusão do Livro indica a saída da provação: «Teme a Deus e observa os seus preceitos, porque este é o dever de todo o homem» (12, 13). Este é o conselho para resolver este problema.
Face a uma realidade que, em certos momentos, parece que acomoda todos os opostos, reservando para eles o mesmo destino, que é acabar no nada, o caminho da indiferença pode parecer-nos também o único remédio para uma desilusão dolorosa. Surgem em nós perguntas como estas: Porventura os nossos esforços mudaram o mundo? Porventura alguém será capaz de impor a diferença entre o justo e o injusto? Parece que tudo isto é inútil: por que fazer tantos esforços?
É uma espécie de intuição negativa que pode surgir em qualquer época da vida, mas não há dúvida de que a velhice torna este encontro com o desencanto quase inevitável. Na velhice o desencanto vem. E assim a resistência da velhice aos efeitos desmoralizantes deste desencanto é decisiva: se os idosos, que já viram tudo, conservam intacta a sua paixão pela justiça, então há esperança para o amor, e também para a fé. E para o mundo contemporâneo, tornou-se crucial a passagem através desta crise, crise saudável, porquê? Porque uma cultura que presume medir tudo e manipular tudo também acaba por produzir uma desmoralização coletiva do sentido, uma desmoralização do amor, uma desmoralização até do bem.
Esta desmoralização tira-nos a vontade de fazer. Uma suposta “verdade”, que se limita a registar o mundo, também regista a sua indiferença para com os opostos e remete-os, sem redenção, para o fluxo do tempo e para o destino do nada. Nesta sua forma – camuflada em cientificidade, mas também muito insensível e muito amoral – a moderna busca da verdade tem sido tentada a abandonar por completo a sua paixão pela justiça. Já não acredita no seu destino, na sua promessa, na sua redenção.
Para a nossa cultura moderna, que gostaria de entregar praticamente tudo ao conhecimento exato das coisas, o aparecimento desta nova razão cínica – que soma conhecimento e irresponsabilidade – é uma reação duríssima. De facto, o conhecimento que nos isenta da moralidade parece, no início, uma fonte de liberdade, de energia, mas depressa se transforma numa paralisia da alma.
Eclesiastes, com a sua ironia, já desmascara esta tentação fatal de uma omnipotência de conhecimento – um “delírio de omnisciência” – que gera uma impotência da vontade. Os monges da mais antiga tradição cristã identificaram com exatidão esta doença da alma, que improvisamente descobre a vaidade do conhecimento sem fé e sem moral, a ilusão da verdade sem justiça. Chamavam-na “acedia”. E esta é uma das tentações de todos, também dos idosos, de todos. Não é simplesmente preguiça: não, é mais do que isso. Não se trata apenas de depressão: não. Pelo contrário, a acedia é a rendição ao conhecimento do mundo, sem mais paixão pela justiça e pela consequente ação.
O vazio de sentido e força aberto por este saber, que rejeita toda a responsabilidade ética e todo o afeto pelo bem real, não é inócuo. Não se limita a retirar as forças da vontade do bem: por reação, abre a porta à agressividade das forças do mal. São as forças de uma razão enlouquecida, tornada cínica por um excesso de ideologia. Na verdade, com todo o nosso progresso, e com todo o nosso bem-estar, tornámo-nos deveras uma “sociedade do cansaço”. Pensai nisto: somos a sociedade do cansaço! Devíamos produzir uma prosperidade generalizada e toleramos um mercado cientificamente seletivo da saúde. Devíamos colocar um limite intransponível à paz, e vemos uma série de guerras cada vez mais impiedosas contra pessoas indefesas. A ciência avança, naturalmente, e é um bem. Mas a sabedoria da vida é outra coisa completamente diferente, e parece estar num impasse.
Por fim, esta razão inafetiva e irresponsável tira sentido e energias também ao conhecimento da verdade. Não é por acaso que a nossa é a época das fake news, das superstições coletivas e das verdades pseudocientíficas. É curioso: nesta cultura do saber, do conhecimento de todas as coisas, inclusive da exatidão do saber, difundiram-se muitas feitiçarias, mas feitiçarias cultas. É bruxaria com uma certa cultura, que nos leva a uma vida de superstição: por um lado, para ir em frente com inteligência no conhecimento das coisas até às raízes; por outro lado, a alma que precisa de algo mais e empreende o caminho das superstições e acaba em bruxarias. A velhice pode aprender com a sabedoria irónica do Eclesiastes a arte de trazer à luz o engano escondido no delírio de uma verdade da mente desprovida de afeto pela justiça. Os idosos ricos de sabedoria e de humorismo fazem tanto bem aos jovens! Salvam-nos da tentação de um conhecimento do mundo triste e sem sabedoria da vida. E também, estes anciãos trazem os jovens de volta à promessa de Jesus: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados» (Mt 5, 6). Serão eles que semeiam fome e sede de justiça nos jovens. Coragem, todos nós, idosos: coragem e avante! Temos uma missão muito grande no mundo. Mas, por favor, não devemos procurar refúgio neste idealismo um pouco não concreto, não real, sem raízes – digamo-lo claramente: nas bruxarias da vida.
Papa Francisco
25.05.22
Catequese na audiência geral
Catequese sobre a Velhice 10. Jó. A prova da fé, a bênção da espera
O trecho bíblico que ouvimos encerra o Livro de Jó, um ápice da literatura universal. Encontramo-nos com Jó no nosso caminho de catequeses sobre a velhice: encontramo-lo como uma testemunha de fé que não aceita uma “caricatura” de Deus, mas grita o seu protesto perante o mal, até que Deus responda e revele o seu rosto. E Deus por fim responde, como sempre de um modo surpreendente: mostra a Jó a sua glória, mas sem o esmagar, pelo contrário, com soberana ternura, como faz Deus, sempre, com ternura. Devemos ler bem as páginas deste livro, sem preconceitos, sem lugares-comuns, para compreender a força do grito de Jó. Far-nos-á bem colocarmo-nos na sua escola, para superar a tentação do moralismo perante a exasperação e o desânimo pela dor de ter perdido tudo.
Neste excerto conclusivo do livro – recordamos a história, Jó que perde tudo na vida, perde as riquezas, perde a família, perde o filho e também a saúde e permanece lá, ferido, em diálogo com três amigos, depois chega o quarto, que vêm cumprimenta-lo: esta é a história – e neste trecho de hoje, é a conclusão do livro, quando Deus finalmente toma a palavra (e este diálogo de Jó com os seus amigos é como uma estrada para chegar ao momento que Deus dá a sua palavra) Jó é elogiado porque compreendeu o mistério da ternura de Deus escondida por detrás do seu silêncio. Deus repreende os amigos de Job que presumiam saber tudo, saber de Deus e da dor, e, vindos consolar Job, tinham acabado por o julgar com os seus esquemas preconcebidos. Deus nos preserve deste hipócrita e presunçoso pietismo! Deus nos proteja daquela religiosidade moralista e daquela religiosidade de preceitos que nos dá uma certa presunção e leva ao farisaísmo e à hipocrisia.
Eis como o Senhor se expressa em relação a eles. Assim diz o Senhor: «Estou irado contra [vós] […] porque não falastes corretamente de mim, como Jó, meu servo. […]»: isto é o que o Senhor diz aos amigos de Job. «O meu servo Job intercederá por vós. É em consideração a ele que não vos infligirei ignomínias por não terdes falado bem de mim, como Jó, o meu servo» (42, 7-8). A declaração de Deus surpreende-nos, pois lemos as páginas ardentes do protesto de Jó, que nos deixou consternados. No entanto – diz o Senhor – Jó falou bem, inclusive quando estava irado e também raivoso contra Deus, mas falou bem, porque se recusou a aceitar que Deus seja um “Perseguidor”. Deus é outra coisa. E como recompensa, Deus restitui a Jó o dobro de todos os seus bens, depois de lhe ter pedido para rezar pelos seus maus amigos.
O ponto de viragem da conversão da fé ocorre precisamente no ápice do desabafo de Job, onde ele diz: «Porque eu seu que o meu Redentor vive e aparecerá, finalmente, sobre a terral; e depois que a minha pele se desprenda da minha carne, na minha própria carne verei a Deus. Eu mesmo o contemplarei, os meus olhos vê-lo-ão e não os olhos de outrem» (19, 25-27). Este excerto é belíssimo. Vem-me à mente o final daquele oratório genial de Haendel, o Messias, depois daquela festa do Aleluia lentamente a soprano canta este trecho: “Eu sei que o meu Redentor vive”, com paz. E assim, depois de toda a dor e a alegria de Jó, a voz do Senhor é outra coisa. “Eu sei que o meu Redentor vive”: é algo belíssimo. Podemos interpretá-lo assim: “Meu Deus, sei que Tu não és o Perseguidor. O meu Deus virá e far-me-á justiça”. É a fé simples na ressurreição de Deus, a fé simples em Jesus Cristo, a fé simples que o Senhor sempre nos espera e virá.
A parábola no livro de Jó representa dramática e exemplarmente o que na realidade acontece na vida. Ou seja, que sobre uma pessoa, uma família ou um povo recaem provações demasiado pesadas, provações desproporcionadas em relação à pequenez e à fragilidade humanas. Na vida frequentemente, como se costuma dizer, “chove no molhado”. E algumas pessoas são esmagadas por uma soma de males que parece verdadeiramente excessiva e injusta. E muitas pessoas são assim.
Todos nós conhecemos pessoas assim. Ficámos impressionados com o seu grito, mas também muitas vezes nos admiramos com a firmeza da sua fé e do seu amor no seu silêncio. Penso nos pais de crianças com deficiências graves, ou naqueles que vivem com uma enfermidade permanente ou no familiar que está ao lado... Situações muitas vezes agravadas pela escassez de recursos económicos. Em certos momentos da história, estes acúmulos de fardos parece que chegam todos juntos. Isto foi o que aconteceu nos últimos anos com a pandemia da Covid-19 e o que está a acontecer agora com a guerra na Ucrânia.
Podemos justificar estes “excessos” como uma racionalidade superior da natureza e da história? Podemos abençoá-los religiosamente como uma resposta justificada à culpa das vítimas, que os mereceram? Não, não podemos. Existe uma espécie de direito da vítima ao protesto, face ao mistério do mal, um direito que Deus concede a todos, afinal é Ele próprio que inspira. Às vezes, encontro-me com pessoas que se aproximam e dizem: “Mas, padre, protestei contra Deus porque tenho este problema, aqueloutro…”. Mas, sabes, caro, que o protesto é um modo de oração, quando se faz assim. Quando as crianças, os jovens protestam contra os pais, é uma forma para chamar a atenção e pedir que se ocupem deles. Se tens alguma chaga no coração, alguma dor e te vem vontade de protestar, protesta também contra Deus, Deus ouve-te, Deus é Pai, Deus não se assusta com a nossa oração de protesto, não! Deus compreende. Mas sê livre, sê livre na tua prece, não aprisiones a tua oração nos esquemas preconcebidos! A Oração deve ser assim, espontânea, como aquela de um filho com o pai, que lhe diz tudo o que lhe vem à mente porque sabe que o pai o entende. O “silêncio” de Deus no primeiro momento do drama significa isto. Deus não se afasta do confronto, mas no início deixa a Jó o desabafo do seu protesto, e Deus escuta. Talvez, por vezes, devêssemos aprender de Deus este respeito e ternura. E Deus não gosta daquela enciclopédia – chamamo-la assim – de explicações, de reflexões que fazem os amigos de Jó. Aquilo é sumo de língua, que não é justo: é aquela religiosidade que explica tudo, mas o coração permanece frio. Deus não gosta disto. Gosta mais do protesto de Jó ou do silêncio de Jó.
A profissão de fé de Jó – que emerge precisamente do seu incessante apelo a Deus, a uma justiça suprema – no final completa-se com a experiência quase mística, diria, que o faz dizer: «Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos» (42, 5). Quantas pessoas, quantos de nós depois de uma experiência um pouco negativa, um pouco obscura, dá o passo e conhece melhor Deus do que antes! E podemos dizer, como Job: “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos”. Este testemunho é particularmente credível se a velhice o assumir, na sua progressiva fragilidade e perda. Os idosos viram muitas coisas na vida! E também viram a inconsistência das promessas dos homens. Homens de leis, homens de ciência, também homens de religião, que confundem o perseguidor com a vítima, imputando a esta toda a responsabilidade pela sua dor. Erram!
Os idosos que encontram o caminho deste testemunho, que converte o ressentimento pela perda na tenacidade pela expetativa da promessa de Deus – há uma mudança, do ressentimento pela perda para uma tenacidade em seguir a promessa de Deus – estes idosos são uma defesa insubstituível para que a comunidade enfrente o excesso do mal. O olhar dos crentes que se dirige para o Crucificado aprende precisamente isto. Que o aprendamos também, de tantos avôs e avós, de tantos idosos que, como Maria, unem as suas orações, por vezes comovedoras, à do Filho de Deus que na cruz se entrega ao Pai. Olhemos para os idosos, olhemos para as pessoas mais velhas, os idosos, as avozinhas; olhemos para eles com amor, olhemos para a sua experiência pessoal. Eles sofreram muito na vida, aprenderam tanto na vida, passaram por muitas coisas, mas no final alcançaram esta paz, uma paz – diria – quase mística, isto é, a paz do encontro com Deus, a ponto de poder dizer “Os meus ouvidos tinham ouvido falar de Ti, mas, agora, viram-Te os meus próprios olhos”. Estes idosos assemelham-se àquela paz do filho de Deus que se entrega ao Pai na cruz.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 18.05.22
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Catequese sobre a Velhice 9. Judite. Uma juventude admirável, uma velhice generosa
Hoje falaremos de Judite, uma heroína bíblica. A conclusão do livro que tem o seu nome - ouvimos um trecho do mesmo - resume a última parte da vida desta mulher, que defendeu Israel contra os seus inimigos. Judite é uma jovem e virtuosa viúva judia que, graças à sua fé, à sua beleza e à sua astúcia, salva a cidade de Betúlia e o povo de Judá, contra o cerco de Holofernes, general de Nabucodonosor, rei da Assíria, inimigo prepotente e insolente de Deus. E assim, com o seu modo astuto de agir, é capaz de degolar o ditador que estava contra o país. Aquela mulher era corajosa, mas tinha fé.
Depois da grande aventura que a vê protagonista, Judite volta a viver na sua cidade, Betúlia, onde vive uma boa velhice, até 105 anos. Tinha chegado para ela o tempo da velhice como chega para muitas pessoas: às vezes, depois de uma intensa vida de trabalho, por vezes após uma existência aventurosa, ou de grande dedicação. O heroísmo não é apenas o dos grandes acontecimentos sob as luzes da ribalta, por exemplo aquele de Judite de ter matado o ditador: mas com frequência o heroísmo encontra-se na tenacidade do amor derramado numa família difícil e a favor de uma comunidade ameaçada.
Judite viveu até mais de cem anos, uma bênção particular. Mas hoje não é raro viver ainda tantos anos depois da reforma. Como interpretar este tempo, como fazer frutificar este tempo que temos à disposição? Vou para a reforma hoje, e serão muitos anos, e o que posso fazer, nesses anos, como posso crescer – a idade cresce sozinha – mas como posso crescer em autoridade, em santidade, em sabedoria?
Para muitos, a perspectiva da reforma coincide com um merecido e desejado descanso de atividades exigentes e cansativas. Mas também acontece que o fim do trabalho represente uma fonte de preocupação e seja esperado com uma certa inquietação: “O que farei agora, que a minha vida se esvaziará daquilo que a preencheu durante tanto tempo?”: esta é a pergunta. O trabalho diário significa também um conjunto de relações, a satisfação de ganhar a vida, a experiência de desempenhar um papel, uma merecida consideração, um tempo repleto, que vai além do simples horário de trabalho.
Claro que há o compromisso, alegre e cansativo, de cuidar dos netos, e hoje os avós desempenham um papel muito importante na família para ajudar a criar os netos; mas sabemos que hoje em dia nascem cada vez menos filhos, e os pais estão frequentemente mais distantes, mais sujeitos a deslocações, com situações de trabalho e de habitação não favoráveis. Às vezes também mais relutantes em confiar aos avós espaços de educação, e só lhes concedem aqueles estritamente ligados à necessidade de assistência. Mas alguém me dizia, quase sorrindo com ironia: “Hoje, os avós, nesta situação socioeconómica, tornaram-se mais importantes, porque possuem a pensão”. Há novas exigências, até no âmbito das relações educativas e parentais, que requerem a reformulação da aliança tradicional entre as gerações.
Mas, perguntemo-nos, será que fazemos este esforço de “reformulação”? Ou será que simplesmente sofremos a inércia das condições materiais e económicas? Com efeito, a coexistência das gerações prolonga-se. Procuramos, todos juntos, torná-las mais humanas, mais carinhosas, mais justas, nas novas condições das sociedades modernas? Para os avós, uma parte importante da sua vocação é ajudar os filhos na educação das crianças. Os pequeninos aprendem a força da ternura e o respeito pela fragilidade: lições insubstituíveis que, com os avós, são mais fáceis de transmitir e de receber. Os avós, por sua vez, aprendem que a ternura e a fragilidade não são apenas sinais de declínio: para os jovens, constituem passagens que humanizam o futuro.
Judite fica viúva cedo e não teve filhos, mas na velhice pode viver um tempo de plenitude e serenidade, consciente de ter vivido até ao fundo a missão que o Senhor lhe confiara. Para ela é o tempo de deixara boa herança da sabedoria, da ternura, dos dons à família e à comunidade: uma herança de bem e não só de bens. Quando se pensa em herança, às vezes pensamos nos bens, e não no bem que se pratica na velhice e que foi semeado, aquele bem que é a maior herança que podemos deixar.
Precisamente na sua velhice, Judite “concedeu a liberdade à sua serva preferida”. Isto é sinal de um olhar atento e humano em relação a quem lhe esteve próximo. Esta serva acompanhou-a no momento daquela aventura para derrotar o ditador e degolá-lo. Na velhice, perde-se um pouco da vista, mas o olhar interior torna-se mais penetrante: vê-se com o coração. Torna-se capaz de ver coisas que antes passavam despercebidas. Os idosos sabem olhar e sabem ver… É assim: o Senhor não confia os seus talentos apenas aos jovens e aos fortes: tem talentos para todos, à medida de cada um, também para os idosos. A vida das nossas comunidades deve saber desfrutar dos talentos e carismas de tantos idosos que no registo civil já estão reformados, mas que são uma riqueza a valorizar. Isto requer, da parte dos próprios idosos, uma atenção criativa, uma atenção nova, uma disponibilidade generosa. As antigas habilidades da vida ativa perdem a sua parte de constrangimento, tornando-se recursos de doação: ensinar, aconselhar, construir, cuidar, ouvir... De preferência, em benefício dos mais desfavorecidos, que não podem dar-se ao luxo de alguma aprendizagem ou que são abandonados à sua solidão.
Judite libertou a sua serva, enchendo todos de atenções. Como jovem, conquistou a estima da comunidade com a sua coragem. Na velhice, mereceu-a pela ternura com que enriqueceu a sua liberdade e afetos. Judite não é uma reformada que vive melancolicamente o seu vazio: é uma idosa apaixonada que preenche com dons o tempo que Deus lhe concede. Recomendo-vos: pegai, um destes dias, a Bíblia e abri o Livro de Judite: é pequenino, lê-se facilmente, são 10 páginas, não mais. Lede esta história de uma mulher corajosa que acaba assim, com ternura, com generosidade, uma mulher à altura. Assim gostaria que fossem as nossas avós. Todas assim: corajosas, sábias e que nos deixem a herança não de dinheiro, mas a herança da sabedoria, semeada nos seus netos.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 11.05.22
Catequese sobre a Velhice 8. Eleazar, a coerência da fé, herança da honra
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
No caminho destas catequeses sobre a velhice, encontramos hoje um personagem bíblico – um idoso – chamado Eleazar, que viveu na época da perseguição de Antíoco Epifânio. É uma bonita figura. A sua figura oferece-nos um testemunho da relação especial que existe entre a fidelidade da velhice e a honra da fé. Ele é orgulhoso! Gostaria de falar precisamente da honra da fé, não apenas da coerência, do anúncio e da resistência da fé. A honra da fé encontra-se periodicamente sob pressão, até violenta, da cultura dos dominadores, que procura degradá-la, tratando-a como um achado arqueológico, ou uma velha superstição, um capricho anacrónico e assim por diante.
A narração bíblica – ouvimos um pequeno excerto dela, mas é bom lê-lo todo – conta o episódio dos judeus forçados por decreto de um rei a comer carne sacrificada a ídolos. Quando chega a vez de Eleazar, que era um idoso, 90 anos, muito estimado por todos e influente, os oficiais do rei aconselharam-no a fazer uma simulação, ou seja, fingir que comia carne sem realmente o fazer. Hipocrisia religiosa, há tanta hipocrisia religiosa, hipocrisia clerical. Dizem-lhe: “Mas sê um pouco hipócrita, ninguém se aperceberá”. Desta forma Eleazar seria salvo, e – disseram – em nome da amizade aceitaria o seu gesto de compaixão e afeto. Afinal – insistiam – tratava-se de um gesto mínimo, fingir que se come, mas não comer, um gesto insignificante.
É pouco, mas a resposta calma e firme de Eleazar baseia-se num argumento que nos impressiona. O ponto central é este: desonrar a fé na velhice, para ganhar um punhado de dias, não pode ser comparado com a herança que deve deixar aos jovens, a inteiras gerações vindouras. Que boa pessoa Eleazar! Um idoso que viveu na coerência da própria fé durante toda a vida, e agora se adapta a fingir que a repudia, condena a nova geração a pensar que toda a fé tenha sido uma farsa, uma cobertura exterior que pode ser abandonada, pensando que pode ser preservada no próprio íntimo. Não é bem assim, diz Eleazar. Tal comportamento não honra a fé, nem sequer perante Deus. E o efeito desta banalização externa será devastador para a interioridade dos jovens. A coerência deste homem que pensa nos jovens, pensa na herança futura, pensa no seu povo!
Precisamente a velhice – e isto é bom para os idosos – aparece aqui como o lugar decisivo, o lugar insubstituível para este testemunho. Um idoso que, devido à sua vulnerabilidade, aceitasse considerar irrelevante a prática da fé, faria com que os jovens acreditassem que a fé não tenha alguma relação real com a vida. Parecer-lhes-ia, desde o seu início, como um conjunto de comportamentos que, se necessário, podem ser simulados ou dissimulados, porque nenhum deles é muito importante para a vida.
A antiga gnose heterodoxa, que foi uma armadilha muito poderosa e muito sedutora para o cristianismo dos primeiros séculos, teorizava precisamente sobre isto, esta é uma coisa antiga: que a fé é uma espiritualidade, não uma prática; uma força da mente, não uma forma de vida. Fidelidade e honra de fé, segundo esta heresia, nada têm a ver com os comportamentos da vida, as instituições da comunidade, os símbolos do corpo. A sedução desta perspetiva é forte, porque interpreta, à sua maneira, uma verdade indiscutível: que a fé nunca pode ser reduzida a um conjunto de regras alimentares ou de práticas sociais. A fé é outra coisa. O problema é que a radicalização gnóstica desta verdade anula o realismo da fé cristã, pois a fé cristã é realista, a fé cristã não é só recitar o Credo, mas é pensar no Credo, é sentir o Credo, é fazer o Credo. Agir com as mãos. Ao contrário, esta proposta gnóstica é um “fazer de contas”, o importante é que tu dentro tenhas a espiritualidade e depois podes fazer o que queres. Isto não é cristão. É a primeira heresia dos gnósticos, que está muito na moda aqui, neste momento, em tantos centros de espiritualidade e assim por diante. E esvazia o testemunho destas pessoas, que mostra os sinais concretos de Deus na vida da comunidade e resiste às perversões da mente através dos gestos do corpo.
A tentação gnóstica, que é uma das – digamos a palavra – heresias, um dos desvios religiosos deste tempo, a tentação gnóstica permanece sempre atual. Em muitas tendências da nossa sociedade e cultura, a prática da fé sofre uma representação negativa, por vezes sob forma de ironia cultural, por vezes com uma oculta marginalização. A prática da fé para estes gnósticos que já existiam no tempo de Jesus, é considerada como uma exterioridade inútil e até prejudicial, como um resíduo antiquado, como uma superstição disfarçada. Em suma, algo para idosos. A pressão que esta crítica indiscriminada exerce sobre as gerações mais jovens é forte. Certamente, sabemos que a prática da fé pode tornar-se uma exterioridade sem alma – este é outro perigo, o contrário – mas em si mesma não o é absolutamente. Talvez caiba precisamente a nós, idosos, uma missão muito importante: restituir à fé a sua honra, fazê-la coerente como o testemunho de Eleazar, a coerência até ao fim. A prática da fé não é o símbolo da nossa fraqueza, mas sim o sinal da sua força. Já não somos jovens. Não estávamos a brincar quando nos pusemos no caminho do Senhor!
A fé merece respeito e honra até ao fim: mudou a nossa vida, purificou a nossa mente, ensinou-nos a adoração a Deus e o amor ao próximo. É uma bênção para todos! Mas toda a fé, não uma parte. Não negociaremos a fé por um punhado de dias tranquilos, mas faremos como Eleazar, coerente até ao fim, até ao martírio. Demonstraremos, com toda a humildade e firmeza, precisamente na nossa velhice, que acreditar não é algo “para idosos”, mas é questão de vida. Crer no Espírito Santo, que renova todas as coisas, e Ele ajudar-nos-á de bom grado.
Queridos irmãos e irmãs idosos, para não dizer velhos – estamos no mesmo grupo – por favor, olhemos para os jovens. Eles olham para nós, não nos esqueçamos disto. Vem-me à mente aquele filme do pós-guerra tão bonito: “I bambini ci guardano” [A culpa dos pais]. Podemos dizer o mesmo com os jovens: eles olham para nós e a nossa coerência pode abrir-lhes um caminho de vida belíssimo. Ao contrário, uma eventual hipocrisia fará muito mal. Rezemos uns pelos outros. Que Deus abençoe todos nós idosos!
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 04.05.22
imagem: site do Vaticano
Catequese sobre a Velhice 7. Noemi, a aliança entre as gerações que abre o futuro
Hoje continuamos a refletir sobre os idosos, sobre os avós, sobre a velhice, palavra que parece feia, mas não, os velhos são grandes, são belos! E hoje deixar-nos-emos inspirar pelo maravilhoso livro de Rute, uma preciosidade da Bíblia. A parábola de Rute ilumina a beleza dos laços familiares: gerados pela relação de um casal, mas que vão além do vínculo do casal. Laços de amor capazes de serem igualmente fortes, nos quais irradia a perfeição daquele poliedro dos afetos fundamentais que formam a gramática familiar do amor. Esta gramática traz linfa vital e sabedoria generativa ao conjunto das relações que edificam a comunidade. Em comparação com o Cântico dos Cânticos, o livro de Rute é como o outro painel do díptico do amor nupcial. Tão importante como essencial, celebra o poder e a poesia que devem habitar os laços de geração, parentesco, dedicação e fidelidade que envolvem toda a constelação familiar. E que se tornam até capazes, nas conjunturas dramáticas da vida de um casal, de conferir uma força de amor inimaginável, capaz de relançar a esperança e o futuro.
Sabemos que os clichés sobre os laços de parentesco criados pelo casamento, sobretudo o da sogra, aquele vínculo entre sogra e nora, falam contra esta perspetiva. Mas, precisamente por esta razão, a palavra de Deus torna-se preciosa. A inspiração da fé pode abrir um horizonte de testemunho que vai contra os preconceitos mais comuns, um horizonte que é precioso para toda a comunidade humana. Convido-vos a redescobrir o livro de Rute! Especialmente na meditação sobre o amor e na catequese sobre a família.
Este pequeno livro contém também um valioso ensinamento sobre a aliança das gerações: onde a juventude se mostra capaz de dar novo entusiasmo à idade madura – isto é essencial: quando a juventude restitui entusiasmo aos idosos – onde a velhice se mostra capaz de reabrir o futuro para a juventude ferida. No início, a idosa Noemi, embora movida pelo afeto das noras, viúvas dos seus dois filhos, é pessimista quanto ao seu destino num povo que não é o seu. Por conseguinte, ela encoraja afetuosamente as jovens viúvas a regressarem às suas famílias para reconstruírem a vida – aquelas viúvas eram jovens –. Diz: “Não posso fazer nada por vós”. Isto já parece ser um ato de amor: a idosa, sem marido nem filhos, insiste para que as suas noras a abandonem. No entanto, é também uma espécie de resignação: não há futuro possível para as viúvas estrangeiras, privadas da proteção dos seus maridos. Rute sabe disto e resiste a esta generosa oferta, não quer voltar para a sua casa. O vínculo que se estabeleceu entre sogra e nora foi abençoado por Deus: Noemi não pode pedir para ser abandonada. Inicialmente, Noemi parece mais resignada do que feliz com esta oferta: talvez ela pense que este estranho vínculo aumentará o risco para ambas. Em certos casos, a tendência do idoso ao pessimismo precisa de ser contrastada pela pressão afetuosa dos jovens.
De facto, Noemi, comovida pela dedicação de Rute, sairá do seu pessimismo e até tomará a iniciativa, abrindo um novo futuro para Rute. Ela instrui e encoraja Rute, a viúva do seu filho, a conquistar um novo marido em Israel. Booz, o candidato, mostra a sua nobreza, defendendo Rute dos homens seus empregados. Infelizmente, este é um risco que também se verifica hoje.
O novo matrimónio de Rute é celebrado e os mundos são de novo pacificados. As mulheres de Israel dizem a Noemi que Rute, a estrangeira, vale “mais de sete filhos” e que o matrimónio será uma “bênção do Senhor”. Noemi, que estava cheia de amargura e dizia até que o seu nome era amargura, na sua velhice conhecerá a alegria de desempenhar um papel na geração de um novo nascimento. Vede quantos “milagres” acompanham a conversão desta idosa! Ela converte-se ao compromisso de se tornar disponível, com amor, para o futuro de uma geração ferida pela perda e em risco de abandono. As frentes de recomposição são as mesmas que, de acordo com as probabilidades desenhadas pelos preconceitos do senso comum, deveriam gerar fraturas insuperáveis. Em vez disso, a fé e o amor permitem que sejam superados: a sogra supera o ciúme do próprio filho amando o novo vínculo de Rute; as mulheres de Israel superam a desconfiança em relação ao estrangeiro (e se as mulheres o fizerem, todos o farão); a vulnerabilidade da jovem sozinha, perante o poder do homem, reconcilia-se com uma relação cheia de amor e respeito.
Tudo porque a jovem Rute se obstinou a ser fiel a um vínculo exposto a preconceitos étnicos e religiosos. E retomo o que disse no início, hoje a sogra é um personagem mítico, a sogra, não digo que pensamos nela como o diabo, mas pensamos sempre nela como uma figura má. Mas a sogra é a mãe do teu marido, é a mãe da tua esposa. Pensemos hoje neste sentimento um pouco generalizado de que a sogra, quanto mais longe estiver, melhor é. Não! Ela é mãe, é idosa. Uma das coisas mais belas das avós é ver os netinhos, quando os filhos têm filhos, revivem. Prestai atenção à relação que tendes com as vossas sogras: por vezes são um pouco especiais, mas deram-vos a maternidade do cônjuge, deram-vos tudo. Pelo menos é preciso fazê-las felizes, a fim de que levem em frente a sua velhice com felicidade. E se tiverem algum defeito, devemos ajudá-las a corrigir-se. Também a vós, sogras, digo-vos: cuidado com a língua, porque a língua é um dos pecados mais terríveis das sogras, cuidado.
E Rute neste livro aceita a sogra, fazendo-a reviver, e a idosa Noemi toma a iniciativa de reabrir o futuro para Rute, em vez de apenas desfrutar do seu apoio. Se os jovens se abrirem à gratidão pelo que receberam, e os idosos tomarem a iniciativa de relançar o seu futuro, nada pode impedir o florescimento das bênçãos de Deus entre os povos! Por favor, que os jovens falem com os avós, que os jovens falem com os idosos, que os idosos falem com os jovens. Devemos restabelecer esta ponte com vigor, nela há uma corrente de salvação, de felicidade. Que o Senhor nos ajude, fazendo isto, a crescer em harmonia nas famílias, aquela harmonia construtiva que vai dos idosos aos mais jovens, aquela ponte positiva que devemos preservar e conservar.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 27.04.22
A paz de Páscoa
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Estamos a meio da Semana Santa, que vai desde o Domingo de Ramos até ao Domingo de Páscoa. Ambos os domingos são caraterizados pela festa que tem lugar em torno de Jesus. Mas são duas festas diferentes.
No domingo passado vimos Cristo entrar solenemente em Jerusalém, como uma festa, acolhido como Messias: e para Ele mantos foram estendidos pelo caminho (cf. Lc 19, 36) e ramos cortados das árvores (cf. Mt 21, 8). A multidão exultante bendiz «aquele que vem, o Rei», e aclama: «Paz no céu e glória no mais alto dos céus» (Lc 19, 38). Estas pessoas celebram, pois veem na entrada de Jesus a chegada de um novo rei, que traria paz e glória. Esta era a paz que aquele povo esperava: uma paz gloriosa, fruto de uma intervenção real, a de um poderoso messias que libertaria Jerusalém da ocupação romana. Outros provavelmente sonharam com a restauração de uma paz social e viram em Jesus o rei ideal, que iria alimentar as multidões com pães, como ele já tinha feito, e realizar grandes milagres, trazendo assim mais justiça ao mundo.
Mas Jesus nunca fala sobre isto. Ele tem uma Páscoa diferente à sua frente, não uma Páscoa triunfal. A única coisa que lhe interessa na preparação da sua entrada em Jerusalém é montar «um jumentinho atado em que nunca montou pessoa alguma» (v. 30). É assim que Cristo traz a paz ao mundo: através da mansidão e da doçura, simbolizada por aquele jumento preso sobre o qual ninguém jamais montou. Ninguém, porque a maneira de Deus de fazer as coisas é diferente da do mundo. Com efeito, pouco antes da Páscoa, Jesus explica aos discípulos: «Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá» (Jo 14, 27). São duas modalidades diversas: um modo como o mundo nos dá a paz e um modo como Deus nos dá a paz. São diferentes.
A paz que Jesus nos dá na Páscoa não é a paz que segue as estratégias do mundo, que acredita poder obtê-la através da força, da conquista e de várias formas de imposição. Esta paz, na realidade, é apenas um intervalo entre guerras: sabemo-lo bem. A paz do Senhor segue o caminho da mansidão e da cruz: é ocupar-se do próximo. Com feito, Cristo assumiu sobre si o nosso mal, o nosso pecado e a nossa morte. Assumiu sobre si tudo isto. Desta forma, ele libertou-nos. Ele pagou por nós. A sua paz não é o fruto de algum compromisso, mas nasce do dom de si mesmo. Esta paz mansa e corajosa, no entanto, é difícil de aceitar. De facto, a multidão que aclamava Jesus é a mesma que alguns dias depois grita “Crucifica-o” e, com medo e desilusão, não levanta um dedo por Ele.
A este propósito, uma grande história de Dostoievski, a chamada Lenda do Grande Inquisidor, é sempre relevante. Fala de Jesus que, após vários séculos, regressa à Terra. É imediatamente recebido pela multidão festiva, que o reconhece e o aclama. “Ah, voltaste! Vem, vem conosco!”. Mas, depois é preso pelo Inquisidor, que representa a lógica do mundo. O Inquisidor interroga-o e critica-o ferozmente. A última razão para a reprimenda é que Cristo, embora pudesse, nunca quis tornar-se César, o maior rei deste mundo, preferindo deixar o homem livre em vez de o subjugar e resolver os seus problemas com a força. Ele poderia ter estabelecido a paz no mundo, submetendo o coração livre, mas precário, do homem pela força de um poder superior, mas ele não queria fazê-lo: respeitou a nossa liberdade. «Tu – diz o Inquisidor a Jesus – aceitando o mundo e a púrpura dos Césares, terias fundado o reino universal e dado a paz universal» (Os irmãos Karamazov, Milão 2012, 345); e com uma sentença incisiva conclui: «Se há alguém que tenha merecido mais do que ninguém a nossa fogueira, esse alguém és tu» (348). Eis o engano que se repete na história, a tentação de uma falsa paz, baseada no poder, que depois leva ao ódio e à traição de Deus e a tanta amargura na alma.
No final, segundo esta narração, o Inquisidor gostaria que Jesus «lhe dissesse algo, talvez até algo amargo, algo terrível». Mas Cristo reage com um gesto dócil e concreto: «aproxima-se dele em silêncio, e beija-o suavemente nos seus lábios velhos e exangues» (352). A paz de Jesus não domina os outros, nunca é uma paz armada: nunca! As armas do Evangelho são a oração, a ternura, o perdão e o amor gratuito ao próximo, o amor a todos. Esta é a forma de trazer a paz de Deus ao mundo. É por isso que a agressão armada destes dias, como qualquer guerra, representa um ultraje contra Deus, uma traição blasfema ao Senhor da Páscoa, preferindo ao seu rosto manso o do falso deus deste mundo. A guerra é sempre uma ação humana para levar à idolatria do poder.
Antes da sua última Páscoa, Jesus disse aos seus discípulos: «Não vos perturbeis, nem temais» (Jo 14, 27). Sim, porque enquanto o poder mundano só deixa destruição e morte – vimos isto nesses dias – a sua paz constrói a história, a começar pelo coração de cada homem que a acolhe. A Páscoa é então a verdadeira festa de Deus e do homem, porque a paz que Cristo conquistou na cruz no dom de si mesmo é-nos distribuída. É por isso que o Ressuscitado aparece aos discípulos no dia de Páscoa; e como os saúda? «A paz esteja convosco!» (Jo 20, 19.21). Esta é a saudação de Cristo vencedor, de Cristo ressuscitado.
Irmãos, irmãs, Páscoa significa “passagem”. Especialmente este ano, é a ocasião abençoada para passar do Deus mundano para o Deus cristão, da avidez que levamos dentro de nós para a caridade que nos liberta, da expectativa de uma paz trazida pela força para o compromisso de testemunhar concretamente a paz de Jesus. Irmãos e irmãs, coloquemo-nos perante o Crucificado, fonte da nossa paz, e peçamos-lhe paz do coração e paz no mundo.
Papa Francisco
Catequese na audiência Geral 13.04.22
Catequese sobre a Velhice 5. A fidelidade à visita de Deus para as próximas gerações
No nosso itinerário de catequeses sobre o tema da velhice, hoje olhamos para o terno quadro pintado pelo evangelista São Lucas, que mostra a cena de duas figuras de idosos, Simeão e Ana. A sua razão de vida, antes de se despedir deste mundo, é aguardar a visita de Deus. Esperavam que os visitasse Deus, ou seja, Jesus. Simeão sabe, através de uma premonição do Espírito Santo, que não morrerá antes de ter visto o Messias. Ana vai ao templo todos os dias, dedicando-se ao seu serviço. Ambos reconhecem a presença do Senhor no Menino Jesus, que enche de consolação a sua longa espera e tranquiliza a sua despedida da vida. Esta é uma cena de encontro com Jesus, e de despedida.
O que podemos aprender com estas duas figuras de anciãos cheios de vitalidade espiritual?
Entretanto, aprendemos que a fidelidade da espera aguça os sentidos. De resto, como sabemos, o Espírito Santo faz exatamente isto: ilumina os sentidos. No antigo hino Veni Creator Spiritus, com que ainda hoje invocamos o Espírito Santo, dizemos: «Accende lumen sensibus», acende uma luz para os sentidos, ilumina os nossos sentidos. O Espírito é capaz de o fazer: aguça os sentidos da alma, apesar dos limites e das feridas dos sentidos do corpo. A velhice debilita, de uma forma ou de outra, a sensibilidade do corpo: um é mais cego, outro é mais surdo... No entanto, uma velhice que se exerceu na expetativa da visita de Deus não perderá a sua passagem: aliás, estará ainda mais pronta para a colher, terá mais sensibilidade para receber o Senhor quando Ele passar. Recordemos que a atitude do cristão consiste em estar atento às visitas do Senhor, porque o Senhor entra na nossa vida com inspirações, com o convite a sermos melhores. E Santo Agostinho dizia: “Tenho medo de Deus quando Ele passa” - “Mas por que tens medo?” - “Tenho medo de não o ver e deixá-lo passar”. É o Espírito Santo que prepara os sentidos para compreender quando o Senhor nos visita, como fez com Simeão e Ana.
Hoje, mais do que nunca, precisamos disto: temos necessidade de uma velhice dotada de sentidos espirituais vivos e capaz de reconhecer os sinais de Deus, ou seja, o Sinal de Deus, que é Jesus. Um sinal que sempre nos põe em crise: Jesus põe-nos em crise porque é «sinal de contradição» (Lc 2, 34) - mas que nos enche de alegria. Porque a crise não nos traz necessariamente tristeza, não: estar em crise, prestando serviço ao Senhor, muitas vezes dá-nos paz e alegria. A anestesia dos sentidos espirituais - e isto é terrível - a anestesia dos sentidos espirituais, na excitação e atordoamento dos sentidos do corpo, é uma síndrome generalizada numa sociedade que cultiva a ilusão da juventude eterna, e a sua caraterística mais perigosa consiste em ser quase inconsciente. Não se tem a consciência de estar anestesiado. E isto acontece: sempre ocorreu e continua a acontecer nos nossos tempos. Os sentidos anestesiados, sem compreender o que acontece; os sentidos interiores, os sentidos do espírito para compreender a presença de Deus ou a presença do mal, anestesiados, não distinguem.
Quando perdemos a sensibilidade do tato ou do paladar, damo-nos imediatamente conta. A da alma, a sensibilidade da alma, ao contrário, podemos ignorá-la por muito tempo, viver sem nos darmos conta de que perdemos a sensibilidade da alma. Ela não se refere simplesmente ao pensamento de Deus ou da religião. A insensibilidade dos sentidos espirituais diz respeito à compaixão e à piedade, à vergonha e ao remorso, à fidelidade e à dedicação, à ternura e à honra, à responsabilidade própria e à dor pelo próximo. É curioso: a insensibilidade não te faz compreender a compaixão, não te faz entender a piedade, não te faz sentir vergonha ou remorso por teres feito algo mau. É assim: os sentidos espirituais anestesiados confundem tudo e, espiritualmente, já não sentimos tais coisas. E a velhice torna-se, por assim dizer, a primeira perda, a primeira vítima desta perda de sensibilidade. Numa sociedade que exerce a sensibilidade sobretudo por prazer, só pode haver a perda de atenção pelos mais frágeis e prevalecer a competição dos vencedores. É assim que se perde a sensibilidade. Certamente, a retórica da inclusão é a fórmula ritual de cada discurso politicamente correto. Mas ainda não confere uma verdadeira correção às práticas da normal convivência: uma cultura da ternura social tem dificuldade de crescer. Não: o espírito da fraternidade humana - que julguei necessário relançar com força - é como uma peça de vestiário descartada, para admirar, sim, mas... num museu. Perde-se a sensibilidade humana, perdem-se estes movimentos do espírito que nos tornam humanos.
É verdade, na vida real podemos observar, com comovente gratidão, muitos jovens capazes de honrar até ao fundo esta fraternidade. Mas o problema é exatamente este: existe um descarte, um descarte culpado, entre o testemunho desta linfa vital da ternura social e o conformismo que obriga a juventude a contar a sua história de modo completamente diferente. O que podemos fazer para preencher esta lacuna?
Da narração de Simeão e Ana, mas também de outras histórias bíblicas da velhice sensível ao Espírito, vem uma indicação oculta que merece ser trazida à tona. Em que consiste concretamente a revelação que estimula a sensibilidade de Simeão e Ana? Consiste em reconhecer numa criança, que eles não geraram e que veem pela primeira vez, o sinal certo da visita de Deus. Eles aceitam que não são protagonistas, mas apenas testemunhas. E quando um indivíduo aceita não ser protagonista, mas se compromete como testemunha, tudo bem: aquele homem, aquela mulher, amadurece bem. Mas se tiver sempre vontade de ser protagonista, nunca amadurecerá neste caminho rumo à plenitude da velhice. A visita de Deus não se encarna na sua vida, daquele que quer ser protagonista e nunca testemunha, não os põe em cena como salvadores: Deus não se encarna na sua geração, mas na geração vindoura. Perdem o seu espírito, perdem a vontade de viver com maturidade e, como se costuma dizer, vivem superficialmente. É a grande geração dos superficiais, que não se dão ao luxo de sentir as coisas com a sensibilidade do espírito. Mas porque não se dão o luxo? Em parte, por preguiça, e em parte porque já não podem: perderam-na. É mau quando uma civilização perde a sua sensibilidade de espírito. Por outro lado, é bom quando encontramos anciãos como Simeão e Ana que mantêm esta sensibilidade do espírito e são capazes de compreender situações diferentes, pois estes dois compreenderam esta situação que os precedeu, que era a manifestação do Messias. Nenhum ressentimento ou recriminação por isto, quando se encontram nesta condição estática. Ao contrário, grande emoção e grande consolação, quando os sentidos espirituais ainda estão vivos. A emoção e a consolação de poder ver e anunciar que a história da sua geração não se perde nem se desperdiça, precisamente graças a um acontecimento que se encarna e se manifesta na geração seguinte. E é isto que uma pessoa idosa sente quando os seus netos vão falar com ela: sentem-se reavivados. “Ah, a minha vida ainda é aqui”. É tão importante ir ter com os idosos, é tão importante ouvi-los. É tão importante falar com eles, porque existe esta troca de civilização, esta troca de maturidade entre jovens e idosos. E assim, a nossa civilização prossegue de uma forma madura.
Só a velhice espiritual pode dar este testemunho, humilde e deslumbrante, tornando-o influente e exemplar para todos. A velhice que cultivou a sensibilidade da alma extingue toda a inveja entre as gerações, todo o ressentimento, toda a recriminação pelo advento de Deus na geração seguinte, que chega com a despedida da própria. E isto é o que acontece a um idoso aberto, a um jovem aberto: despede-se da vida, mas entrega - entre aspas - a sua vida à nova geração. E esta é aquela despedida de Simeão e Ana: “Agora posso ir em paz”. A sensibilidade espiritual da velhice é capaz de interromper a competição e o conflito entre as gerações de modo credível e definitivo. Ultrapassa esta sensibilidade: os idosos, com esta sensibilidade, ultrapassam o conflito, vão além, caminham para a unidade, não para o conflito. Isto é certamente impossível aos homens, mas é possível a Deus. E hoje precisamos tanto dela, a sensibilidade do espírito, a maturidade do espírito, precisamos de anciãos sábios, maduros em espírito, que nos deem esperança para a vida!
Papa Francisco
30.03.22
Catequese na audiência geral
Catequese sobre a Velhice 4. A despedida e a herança: memória e testemunho
Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Na Bíblia, a narração da morte do velho Moisés é precedida pelo seu testamento espiritual, chamado “Cântico de Moisés”. Este Cântico é, em primeiro lugar, uma bonita profissão de fé, que reza assim: «Proclamarei o nome do Senhor: / darei glória ao nosso Deus! / Ele é a Rocha: perfeitas são as suas obras / justos, todos os seus caminhos; / Ele é um Deus de lealdade, não de iniquidade; é justo e reto» (Dt 32, 3-4). Mas é também a memória da história vivida com Deus, das aventuras do povo formado a partir da fé no Deus de Abraão, Isaac e Jacob. E, portanto, Moisés também se recorda das amarguras e desilusões do próprio Deus: a sua fidelidade continuamente posta à prova pela infidelidade do seu povo. O Deus fiel e a resposta do povo infiel: como se o povo quisesse pôr à prova a fidelidade de Deus. E Ele permanece sempre fiel, próximo do seu povo. Este é precisamente o cerne do Cântico de Moisés: a fidelidade de Deus que nos acompanha ao longo de toda a vida.
Quando Moisés pronuncia esta profissão de fé, está no limiar da terra prometida, e também da sua despedida da vida. Tinha cento e vinte anos, lê-se na narração, «mas a sua vista nunca enfraqueceu» (Dt 34, 7). A capacidade de ver, de ver realmente, de ver até simbolicamente, como os idosos, que sabem ver as coisas, o significado mais profundo das coisas. A vitalidade do seu olhar é um dom precioso: permite-lhe transmitir a herança da sua longa experiência de vida e de fé, com a necessária lucidez. Moisés vê a história e transmite-a; os idosos veem a história e transmitem-na.
Uma velhice à qual é concedida esta lucidez é um dom precioso para a geração que há de vir. A escuta pessoal e direta da narração da história de fé vivida, com todos os seus altos e baixos, é insubstituível. Lê-la nos livros, vê-la nos filmes, consultá-la na internet, por muito útil que seja, nunca será a mesma coisa. Esta transmissão - que é a verdadeira tradição, a transmissão concreta do idoso ao jovem! - esta transmissão falta muito hoje, e cada vez mais, às novas gerações. Porquê? Porque segundo esta nova civilização os idosos são material descartável, os velhos devem ser descartados. É uma brutalidade! Não, não deve ser assim! A narração direta, de pessoa a pessoa, tem tons e modos de comunicação que nenhum outro meio pode substituir. Um idoso que viveu muito tempo, e recebe o dom de um testemunho lúcido e apaixonado da sua história, é uma bênção insubstituível. Seremos nós capazes de reconhecer e honrar este dom dos idosos? A transmissão da fé - e do sentido da vida - segue hoje este caminho de escuta dos idosos? Posso dar um testemunho pessoal. Aprendi o ódio e a raiva pela guerra com o meu avô, que combateu no Piave em 1914: ele transmitiu-me esta raiva pela guerra. Porque me falou sobre os sofrimentos da guerra. E isto não se aprende nos livros, nem de outra forma; aprende-se assim, transmitindo-o dos avós aos netos. E isto é insubstituível. A transmissão da experiência de vida dos avós aos netos. Hoje, infelizmente, não é assim, e pensa-se que os avós são material descartável: não! São a memória viva de um povo, e os jovens e as crianças devem ouvir os avós.
Na nossa cultura, tão “politicamente correta”, este caminho parece ser impedido de muitas maneiras: na família, na sociedade, na própria comunidade cristã. Alguns até propõem a abolição do ensino da história, como informação supérflua sobre mundos que já não são atuais, que tira recursos ao conhecimento do presente. Como se tivéssemos nascido ontem!
Por outro lado, a transmissão da fé carece frequentemente da paixão própria de uma “história vivida”. Transmitir a fé não é dizer coisas, “blá-blá-blá”. É narrar a experiência de fé. Então, dificilmente pode levar a escolher o amor para sempre, a fidelidade à palavra dada, a perseverança na dedicação, a compaixão pelos rostos feridos e desanimados? Claro, as histórias da vida devem ser transformadas em testemunho, e o testemunho deve ser leal. Não é certamente leal a ideologia que limita a história aos próprios esquemas; não é leal a propaganda que adapta a história à promoção do próprio grupo; não é leal fazer da história um tribunal no qual se condena todo o passado, desencorajando-se qualquer futuro. Ser leal significa contar a história tal como ela é, e só quem a viveu a pode narrar bem. Por isso, é muito importante ouvir os idosos, ouvir os avós, é importante que as crianças conversem com eles.
Os próprios Evangelhos narram honestamente a história abençoada de Jesus, sem esconder os erros, os desentendimentos e até as traições dos discípulos. Esta é a história, a verdade, o testemunho. Este é o dom da memória que os “anciãos” da Igreja transmitem, desde o início, passando-o “de mão em mão” à geração seguinte. Far-nos-á bem perguntar-nos: como valorizamos este modo de transmitir a fé, na passagem do testemunho entre os idosos da comunidade e os jovens que se abrem ao futuro? E aqui vem-me à mente algo que já disse muitas vezes, mas que gostaria de repetir. Como se transmite a fé? “Ah, eis um livro, estuda-o”: não! Assim não se pode transmitir a fé. A fé transmite-se em dialeto, ou seja, na conversa familiar, entre avós e netos, entre pais e netos. A fé transmite-se sempre em dialeto, no dialeto familiar e experiencial que se aprende ao longo dos anos. Por isso é tão importante o diálogo na família, o diálogo das crianças com os avós, que têm a sabedoria da fé.
Às vezes reflito sobre esta estranha anomalia. Hoje, o catecismo da iniciação cristã inspira-se generosamente na Palavra de Deus e transmite informações exatas sobre os dogmas, a moral da fé e os sacramentos. No entanto, muitas vezes falta um conhecimento da Igreja que derive da escuta e do testemunho da história real da fé e da vida da comunidade eclesial, desde o princípio até aos dias de hoje. Na infância, aprendemos a Palavra de Deus nas aulas de catecismo; mas quando se é jovem “aprende-se” a Igreja nas salas de aula e nos meios de comunicação da informação global.
A narração da história da fé deveria ser como o Cântico de Moisés, como o testemunho dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. Ou seja, uma história capaz de evocar com emoção as bênçãos de Deus e com lealdade as nossas falhas. Seria bom se, desde o início, nos itinerários de catequese houvesse também o hábito de ouvir, da experiência vivida pelos idosos, a lúcida confissão das bênçãos recebidas de Deus, que devemos preservar, e o testemunho leal das nossas faltas de fidelidade, que devemos reparar e corrigir. Os idosos entram na terra prometida, que Deus deseja para cada geração, quando oferecem aos jovens a bonita iniciação do seu testemunho e transmitem a história da fé, a fé em dialeto, em dialeto familiar, naquele dialeto que passa dos idosos para os jovens. Assim, guiados pelo Senhor Jesus, idosos e jovens entram juntos no seu Reino de vida e de amor. Mas todos juntos. Todos em família, com este grande tesouro que é a fé transmitida em dialeto.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23/03/22
Catequese sobre a Velhice 3. A ancianidade, recurso para a juventude despreocupada
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
A narração bíblica – com a linguagem simbólica da época em que foi escrita – diz-nos algo surpreendente: Deus estava tão amargurado por causa da maldade generalizada dos homens, a qual se tinha tornado um estilo normal de vida, que pensou que tivesse cometido um erro ao criá-los e decidiu eliminá-los. Uma solução radical. Poderia até ter uma paradoxal aparência de misericórdia. Mais nenhum humano, mais nenhuma história, nem julgamento, nem condenação. E muitas vítimas predestinadas da corrupção, da violência e da injustiça seriam poupadas para sempre.
Não acontece por vezes também a nós – esmagados por um sentimento de impotência contra o mal ou desmoralizados pelos “profetas de desventura” – pensar que era melhor não ter nascido? Devemos dar crédito a certas teorias recentes que denunciam a espécie humana como um dano evolutivo para a vida no nosso planeta? Tudo negativo? Não.
De fato, estamos sob pressão, expostos a tensões opostas que nos deixam confusos. Por um lado, temos o otimismo de uma juventude eterna, aceso pelo extraordinário progresso da tecnologia, que pinta um futuro cheio de máquinas mais eficientes e inteligentes do que nós, que curarão os nossos males e pensarão nas melhores soluções para não morrermos: o mundo do robô. Por outro, a nossa imaginação parece cada vez mais centrada na representação de uma catástrofe final que nos extinguirá. O que acontece com uma eventual guerra atómica. No “dia seguinte” disto – se ainda existirmos, se houver dias e seres humanos – teremos de começar de zero. Destruir tudo para recomeçar de zero. Naturalmente, não quero banalizar o tema do progresso. Mas parece que o símbolo do dilúvio está a ganhar terreno no nosso inconsciente. De resto, a atual pandemia coloca uma não insignificante hipoteca sobre a nossa representação despreocupada das coisas que importam, para a vida e o seu destino.
Na narração bíblica, quando se trata de salvar a vida na terra da corrupção e do dilúvio, Deus confia a tarefa à fidelidade do mais velho de todos, o “justo” Noé. Irá a velhice salvar o mundo?, pergunto-me. Em que sentido? E como salvará a velhice o mundo? E qual é o horizonte? Vida para além da morte ou apenas sobrevivência até ao dilúvio?
Uma palavra de Jesus, evocando “os dias de Noé”, ajuda-nos a aprofundar o significado da página bíblica que acabámos de ouvir. Jesus, falando dos últimos tempos, diz: «Como ocorreu nos dias de Noé, acontecerá do mesmo modo nos dias do Filho do Homem. Comiam e bebiam, os homens casavam-se e as mulheres davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca. Veio o dilúvio e matou todos» (Lc 17, 26-27). De facto, comer e beber, casar, são coisas muito normais e não parecem ser exemplos de corrupção. Onde está a corrupção? Onde havia corrupção lá? Com efeito, Jesus sublinha o facto de que os seres humanos, quando se limitam a desfrutar da vida, perdem até a percepção da corrupção, que mata a sua dignidade e envenena o seu significado. Quando se perde a percepção da corrupção, e a corrupção torna-se algo normal: tudo tem o seu preço, tudo! Compra-se, vende-se, opiniões, gestos de justiça… Isto, no mundo dos negócios, no mundo de tantos ofícios, é comum. E também vivem a corrupção despreocupadamente, como se fizesse parte da normalidade do bem-estar humano. Quando deves fazer alguma coisa e é lento, aquele processo de fazer um pouco lento, quantas vezes ouvimos dizer: “Mas, se me ofereces uma gorjeta eu acelero isto”. Muitas vezes. “Dá-me alguma coisa e vou em frente”. Sabemo-lo bem, todos nós. O mundo da corrupção parece parte da normalidade do ser humano; e isto é negativo. Esta manhã falei com um senhor que me contava sobre este problema na sua terra. Os bens da vida são consumidos e apreciados sem preocupação pela qualidade espiritual da vida, sem cuidados com o habitat da casa comum. Explora-se tudo, sem preocupação com a mortificação e o desânimo de que muitos sofrem, nem com o mal que envenena a comunidade. Desde que a vida normal possa ser preenchida com “bem-estar”, não queremos pensar no que a torna vazia de justiça e amor. “Mas, eu estou bem! Por que devo pensar nos problemas, nas guerras, na miséria humana, na pobreza e na malvadez? Não, eu estou bem. Não me importo com os outros”. Este é o pensamento inconsciente que nos leva em frente a viver um estado de corrupção.
Pode a corrupção tornar-se normalidade?, pergunto-me. Irmãos e irmãs, infelizmente, sim. Pode-se respirar o ar da corrupção como se respira o oxigénio. “Mas é normal; se quiser que eu faça isto depressa, quanto me dá?”. É normal! É normal, mas é negativo, não é bom! O que lhe abre a estrada? Uma coisa: a despreocupação que considera só a si mesmo: este é o corredor que abre a porta para a corrupção que envolve a vida de todos. A corrupção tira grande vantagem desta despreocupação ímpia. Quando a uma pessoa tudo corre bem e não lhe importa dos outros: esta despreocupação suaviza as nossas defesas, entorpece a nossa consciência e torna-nos – até involuntariamente – cúmplices. Pois a corrupção não caminha sozinha: uma pessoa sempre tem cúmplices. E a corrupção alarga-se, alarga-se sempre.
A velhice está na posição adequada para compreender o engano desta normalização de uma vida obcecada pelo prazer e vazia de interioridade: vida sem pensamento, sem sacrifício, sem interioridade, sem beleza, sem verdade, sem justiça, sem amor: isto tudo é corrupção. A sensibilidade especial de nós idosos, da idade anciã às atenções, pensamentos e afetos que nos tornam humanos deve voltar a ser uma vocação para muitos. E será uma escolha de amor dos idosos para com as novas gerações. Seremos nós a dar o alarme, o alerta: “Está atento, que esta é a corrupção, não te traz nada”. Hoje é tão necessária a sabedoria dos idosos, para ir contra a corrupção. As novas gerações esperam de nós, idosos, de nós anciãos uma palavra que seja profecia, que abra as portas a novas perspectivas fora deste mundo despreocupado da corrupção, do hábito às coisas corruptas. A bênção de Deus escolhe a velhice para este carisma tão humano e humanizador. Que sentido tem a minha velhice? Cada um de nós idosos podemos perguntar. O sentido é este: ser profeta da corrupção e dizer aos outros: “Parai, eu percorri aquela estrada e não vos leva a nada! Agora digo-vos a minha experiência”. Nós idosos devemos ser profetas contra a corrupção, como Noé foi o profeta contra a corrupção do seu tempo, pois foi o único em quem Deus confiou. Pergunto a todos vós – e também a mim: o meu coração está aberto a ser profeta contra a corrupção de hoje? Há um aspecto negativo, quando os idosos não amadurecem e ficam velhos com os mesmos hábitos corruptos dos jovens. Pensemos na narração bíblica dos juízes de Susana: são o exemplo de uma velhice corrupta. E nós, com uma velhice assim não seremos capazes de ser profetas para as jovens gerações.
E Noé é o exemplo desta velhice generativa: não é corrupta, é generativa. Noé não prega, não se queixa, não recrimina, mas cuida do futuro da geração que está em perigo. Nós idosos devemos cuidar dos jovens, das crianças que estão em perigo. Ele constrói a arca de acolhimento e faz entrar homens e animais. Ao cuidar da vida, em todas as suas formas, Noé cumpre a ordem de Deus ao repetir o gesto terno e generoso da criação, que na realidade é o próprio pensamento que inspira a ordem de Deus: uma nova bênção, uma nova criação (cf. Gn 8, 15-9, 17). A vocação de Noé permanece sempre atual. O santo patriarca ainda deve interceder por nós. E nós, mulheres e homens de uma certa idade – para não dizer velhos, pois alguns se ofendem – não esqueçamos que temos a possibilidade da sabedoria, de dizer aos outros: “Olha, esta estrada de corrupção não leva a nada”. Nós devemos ser como o bom vinho que no final quando fica velho pode oferecer uma mensagem positiva e não negativa.
Lanço um apelo, hoje, a todas as pessoas que têm uma certa idade, para não dizer velhos. Estai atentos: tendes a responsabilidade de denunciar a corrupção humana na qual se vive e na qual vai em frente este modo de viver de relativismo, totalmente relativo, como se tudo fosse lícito. Vamos em frente. O mundo precisa, tem necessidade de jovens fortes, que vão em frente, e de idosos sábios. Peçamos ao Senhor a graça da sabedoria.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 16.03.2022
Catequese sobre a Velhice 2. A longevidade: símbolo e oportunidade
Na narração bíblica das genealogias dos progenitores, impressiona-nos imediatamente a sua enorme longevidade: fala-se de séculos! Quando começa nela a velhice? Perguntamo-nos. E o que significa o fato que estes pais antigos vivem tanto tempo depois de terem gerado os filhos? Pais e filhos vivem juntos, durante séculos! Esta cadência secular do tempo, narrada em estilo ritual, confere à relação entre longevidade e genealogia um profundo significado simbólico forte, muito forte.
É como se a transmissão da vida humana, tão nova no universo criado, exigisse uma iniciação lenta e prolongada. Tudo é novo, no início da história de uma criatura que é espírito e vida, consciência e liberdade, sensibilidade e responsabilidade. A nova vida – a vida humana – imersa na tensão entre a sua origem “à imagem e semelhança” de Deus e a fragilidade da sua condição mortal, representa uma novidade a ser descoberta. Requer um longo período de iniciação, no qual o apoio recíproco entre gerações é indispensável, para decifrar experiências e enfrentar os enigmas da vida. Durante este longo período de tempo, a qualidade espiritual do homem é também lentamente cultivada.
Num certo sentido, cada passagem de época na história humana reapresenta-nos esta sensação: é como se tivéssemos de retomar calmamente as nossas perguntas sobre o sentido da vida, quando o cenário da condição humana aparece repleto de experiências novas e questões inéditas. Certamente, a acumulação de memória cultural aumenta a familiaridade necessária para lidar com novas passagens. Os tempos de transmissão são mais curtos, mas os tempos de assimilação requerem sempre paciência. O excesso de velocidade, que agora obceca todas as fases da nossa vida, torna cada experiência mais superficial e menos “nutriente”. Os jovens são vítimas inconscientes desta divisão entre o tempo do relógio, que quer ser queimado, e os tempos da vida, que requer um “fermento” adequado. Uma vida longa permite experimentar estes longos tempos, e os danos da pressa.
A velhice certamente impõe ritmos mais lentos: mas não são apenas tempos de inércia. De fato, a medida destes ritmos abre, para todos, espaços de significado na vida desconhecidos a obsessão da velocidade. A perda de contato com os ritmos lentos da velhice fecha estes espaços a todos. Foi neste contexto que quis instituir a festa dos avós no último domingo de julho. A aliança entre as duas gerações extremas da vida – crianças e idosos – também ajuda as outras duas – jovens e adultos – a criar laços entre si para tornar a existência de todos mais rica em humanidade.
Precisamos de diálogo entre as gerações: se não houver diálogo entre jovens e idosos, entre adultos, se não houver diálogo, cada geração permanece isolada e não pode transmitir a mensagem. Um jovem que não está ligado às suas raízes, que são os seus avós, não recebe força – como a árvore vai buscar a força às suas raízes – e cresce mal, fica doente, cresce sem referências. Por isso é necessário procurar o diálogo entre gerações, como uma necessidade humana. E este diálogo é importante precisamente entre avós e netos, que são os dois extremos.
Imaginemos uma cidade em que a convivência de idades diferentes seja parte integrante do projeto global do seu habitat. Pensemos na formação de relações afetuosas entre a velhice e a juventude que irradiam sobre o estilo geral das relações. A sobreposição de gerações tornar-se-ia uma fonte de energia para um humanismo verdadeiramente visível e vivível. A cidade moderna tende a ser hostil com os idosos (e não por acaso também com as crianças). Esta sociedade, que tem o espírito do descarte e descarta muitas crianças não desejadas, descarta os idosos: descarta-os, não servem, pondo-os em casas para idosos, internados… O excesso de velocidade coloca-nos numa centrifugadora que nos varre como confetes. Perdemos completamente de vista o panorama geral. Todos se agarram ao seu pedacinho, flutuando sobre os fluxos da cidade-mercado, para a qual ritmos lentos são perdas e velocidade é dinheiro. A velocidade excessiva pulveriza a vida, não a torna mais intensa. E a sabedoria requer “perda de tempo”. Quando voltas para casa e entreténs com o teu filho, com a tua filha e “perdes tempo”, este diálogo é fundamental para a sociedade. E quando voltas para casa e está lá o avô ou a avó que talvez já não raciocine bem ou, não sei, tenha perdido um pouco a capacidade de falar, e tu ficas com ele ou com ela, “perdes tempo”, mas este “perder tempo” fortalece a família humana. É necessário dedicar tempo – um tempo que não é rentável – com as crianças e com os idosos, pois eles dão-nos outra capacidade de ver a vida.
A pandemia em que ainda somos forçados a viver impôs – com bastante sofrimento, infelizmente – um bloqueio ao culto obtuso da velocidade. E neste período, os avós funcionaram como uma barreira à “desidratação” afetiva dos mais jovens. A aliança visível de gerações, que harmoniza os tempos e ritmos, restitui-nos a esperança de não vivermos a vida em vão. E restitui a cada um de nós o amor pela nossa vida vulnerável, impedindo o caminho para a obsessão da velocidade, que simplesmente a consome. A palavra-chave aqui é “perder tempo”. A cada um de vós pergunto: sabeis perder tempo, ou estais sempre pressionados pela velocidade? “Não, estou com pressa, não posso...”? Sabeis perder tempo com os avós, com os idosos? Sabeis perder tempo a brincar com os vossos filhos, com as crianças? Este é o termo de comparação. Pensai nisto. E isto restitui a cada um o amor pela nossa vida vulnerável – como disse - impedindo o caminho para a obsessão da velocidade, que simplesmente a consome. Os ritmos da velhice são um recurso indispensável para apreender o significado da vida marcada pelo tempo. Os idosos têm os seus ritmos, mas são ritmos que nos ajudam. Graças a esta mediação, o destino da vida ao encontro com Deus torna-se mais credível: um desígnio que se esconde na criação do ser humano “à sua imagem e semelhança” e que é selado no Filho de Deus que se fez homem.
Hoje verifica-se uma maior longevidade da vida humana. Isto dá-nos a oportunidade de incrementar a aliança entre todos os tempos da vida. Tanta longevidade, mas devemos fazer mais aliança. E também nos ajuda a crescer a aliança com o sentido da vida na sua totalidade. O sentido da vida não está apenas na idade adulta, dos 25 aos 60 anos. O sentido da vida é tudo, desde o nascimento até à morte, e deverás ser capaz de interagir com todos, inclusive ter relações afetivas com todos, para que a tua maturidade seja mais rica, mais forte. E também nos oferece este significado da vida, que é total. Que o Espírito nos conceda inteligência e força para esta reforma: é preciso uma reforma. A prepotência do tempo do relógio deve ser convertida à beleza dos ritmos da vida. Esta é a reforma que precisamos fazer nos nossos corações, na família e na sociedade. Repito: reformar, o quê? Que a prepotência do tempo do relógio se converta à beleza dos ritmos da vida. Converter a prepotência do tempo, que nos apressa sempre, aos ritmos próprios da vida. A aliança das gerações é indispensável. Numa sociedade onde os idosos não falam com os jovens, os jovens não falam com os idosos, os adultos não falam com os idosos nem com os jovens, é uma sociedade estéril, sem futuro, uma sociedade que não olha para o horizonte, mas para si mesma. E torna-se sozinha. Deus nos ajude a encontrar a música adequada para esta harmonização das diversas idades: os pequeninos, os idosos, os adultos, todos juntos: uma linda sinfonia de diálogo.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 02.03.22
Catequese sobre a Velhice 1. A graça do tempo e a aliança das idades da vida
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Concluímos as catequeses sobre São José. Hoje iniciamos um percurso de catequeses que procura inspiração na Palavra de Deus sobre o sentido e o valor da velhice. Reflitamos sobre a velhice. Há já algumas décadas que esta idade da vida diz respeito a um verdadeiro “novo povo” que são os idosos. Nunca antes fomos tão numerosos na história da humanidade. O risco de ser descartados é ainda mais frequente: nunca fomos tão numerosos como agora, nunca houve um risco tão grande como agora de sermos descartados. Os idosos são frequentemente vistos como “um peso”. Na dramática primeira fase da pandemia, foram eles que pagaram o preço mais elevado. Já eram a parte mais débil e negligenciada: não olhávamos muito para eles quando eram vivos, nem sequer os vimos morrer. Encontrei também esta Carta para os direitos dos idosos e os deveres da comunidade: foi editada pelos governos, não foi editada pela Igreja, é uma coisa laica: é boa, é interessante, para saber que os idosos têm direitos. Fará bem lê-la.
Juntamente com a migração, a velhice é uma das questões mais urgentes que a família humana é chamada a enfrentar atualmente. Não se trata apenas de uma mudança quantitativa; o que está em jogo é a unidade das idades da vida: ou seja, o verdadeiro ponto de referência para a compreensão e a apreciação da vida humana na sua totalidade. Perguntemo-nos: existe amizade, existe aliança entre as diferentes idades da vida, ou prevalece a separação e o descarte?
Todos vivemos num presente em que coexistem crianças, jovens, adultos e idosos. Mas a proporção mudou: a longevidade tornou-se massa e, em grandes partes do mundo, a infância é distribuída em pequenas doses. Falámos também sobre o inverno demográfico. Um desequilíbrio que tem muitas consequências. A cultura dominante tem como único modelo o jovem-adulto, isto é, um indivíduo que se faz por si mesmo e que permanece sempre jovem. Mas será verdade que a juventude contém o sentido pleno da vida, enquanto a velhice representa simplesmente o seu esvaziamento e perda? Será verdade? Será que só a juventude contém o sentido pleno da vida, e a velhice é o esvaziamento da vida, a perda da vida? A exaltação da juventude como única idade digna de encarnar o ideal humano, unida ao desprezo pela velhice vista como fragilidade, degradação ou deficiência, foi o ícone dominante dos totalitarismos do século XX. Já nos esquecemos disto?
O prolongamento da vida incide de maneira estrutural sobre a história dos indivíduos, das famílias e das sociedades. Mas devemos perguntar-nos: a sua qualidade espiritual e o seu sentido comunitário são objeto de pensamento e de amor coerentes com este facto? Talvez os idosos devam pedir desculpa pela sua obstinação em sobreviver à custa dos outros? Ou podem ser honrados pelos dons que trazem ao sentido da vida de todos? De facto, na representação do sentido da vida – e precisamente nas chamadas culturas “desenvolvidas” – a velhice tem pouca incidência. Porquê? Porque é considerada uma idade que não tem qualquer conteúdo específico para oferecer, nem significado próprio para viver. Além disso, há uma falta de incentivo para que as pessoas os procurem, e uma falta de educação para que a comunidade os reconheça. Em suma, para uma idade que é agora uma parte determinante do espaço comunitário e se estende a um terço de toda a vida, existem – por vezes – planos de assistência, mas não projetos de existência. Planos de assistência, sim, mas não projetos para os fazer viver em plenitude. E isto é um vazio de pensamento, de imaginação, de criatividade. Por detrás deste pensamento, o que faz o vazio é que o idoso, a idosa, são material de descarte: nesta cultura do descarte, os idosos entram como material de descarte.
A juventude é bela, mas a eterna juventude é uma alucinação muito perigosa. Ser ancião é tão importante – e belo – exatamente importante como ser jovem. Lembremo-nos disto. A aliança entre as gerações, que restitui ao humano todas as idades da vida, é a nossa dádiva perdida e devemos recuperá-la. Deve ser encontrada novamente, nesta cultura do descarte e nesta cultura da produtividade.
A Palavra de Deus tem muito a dizer sobre esta aliança. Há pouco ouvimos a profecia de Joel: «Os vossos anciãos terão sonhos, os vossos jovens terão visões» (3, 1). Pode ser interpretado da seguinte forma: quando os idosos resistem ao Espírito, enterrando os seus sonhos no passado, os jovens já não conseguem ver as coisas que devem ser feitas para abrir o futuro. Quando, pelo contrário, os idosos comunicam os seus sonhos, os jovens veem claramente o que devem fazer. Os jovens que já não questionam os sonhos dos idosos, focalizando de cabeça baixa visões que não vão além dos seus narizes, terão dificuldade em carregar o seu presente e suportar o seu futuro. Se os avós voltarem a cair nas suas melancolias, os jovens fechar-se-ão ainda mais com os seus smartphones. O ecrã pode permanecer ligado, mas a vida apagar-se-á antes do tempo. Não consiste precisamente a mais grave repercussão da pandemia no desorientamento dos jovens? Os idosos têm recursos de vida já vivida aos quais podem recorrer a qualquer momento. Ficarão parados a ver os jovens perderem a visão, ou acompanhá-los-ão aquecendo os seus sonhos? Perante os sonhos dos idosos, o que farão os jovens?
A sabedoria do longo caminho que acompanha a velhice à sua despedida deve ser vivida como uma oferta de sentido para a vida, não consumida como a inércia da sua sobrevivência. Se a velhice não for restituída à dignidade de uma vida humanamente digna, está destinada a fechar-se num desânimo que rouba a todos o amor. Este desafio de humanidade e de civilização requer o nosso empenho e a ajuda de Deus. Peçamo-lo ao Espírito Santo. Com estas catequeses sobre a velhice, gostaria de encorajar todos a investirem os seus pensamentos e afetos nos dons que ela tem em si e proporciona às outras idades da vida. A velhice é um presente para todas as idades da vida. É um dom de maturidade, de sabedoria. A Palavra de Deus ajudar-nos-á a discernir o sentido e o valor da velhice; que o Espírito Santo nos conceda também os sonhos e as visões de que necessitamos. E gostaria de salientar, como ouvimos na profecia de Joel no início, que o importante não é apenas que o idoso ocupe o lugar da sabedoria que tem, de história vivida na sociedade, mas também que haja um diálogo, que fale com os jovens. Os jovens devem dialogar com os idosos, e os idosos com os jovens. E esta ponte será a transmissão de sabedoria à humanidade. Espero que estas reflexões sejam úteis para todos nós, para levar por diante esta realidade que o profeta Joel dizia, que no diálogo entre jovens e idosos, os anciãos possam oferecer sonhos e os jovens possam recebê-los e levá-los por diante. Não esqueçamos que tanto na cultura familiar como na social os idosos são as raízes da árvore: têm toda a história ali, e os jovens são como as flores e os frutos. Se o sumo não vier, se não tiver este “soro” – digamos – das raízes, nunca poderão florescer. Não esqueçamos aquele poeta que já citei muitas vezes: “Tudo o que a árvore tem de florescido vem do que está enterrado” (Francisco Luis Bernárdez). Tudo o que uma sociedade tem de bom está relacionado com as raízes dos idosos. Por esta razão, nestas catequeses, gostaria que a figura do idoso fosse posta em evidência, que se compreendesse bem que o ancião não é um material de descarte: é uma bênção para a sociedade.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 23.02.22
Catequese sobre São José 11. São José, padroeiro da boa morte
Na última catequese, estimulados ainda pela figura de São José, refletimos sobre o significado da comunhão dos santos. E precisamente a partir disto, hoje gostaria de aprofundar a devoção especial que o povo cristão sempre teve por São José como padroeiro da boa morte. Uma devoção nascida do pensamento de que José morreu com a ajuda da Virgem Maria e de Jesus, antes que ele deixasse a casa de Nazaré. Não há dados históricos, mas visto que já não se vê José na vida pública, pensa-se que tenha morrido ali em Nazaré, com a família. E a acompanharam-no à morte Jesus e Maria.
O Papa Bento XV, há um século, escreveu que «através de José vamos diretamente a Maria, e através de Maria à origem de toda a santidade, que é Jesus». Quer José quer Maria ajudam-nos a ir a Jesus. E encorajando práticas piedosas em honra de São José, recomendou uma em particular, que dizia assim: «Dado que Ele é merecidamente considerado como o mais eficaz protetor dos moribundos, tendo expirado com a ajuda de Jesus e Maria, será preocupação dos Pastores sagrados inculcar e encorajar [...] aquelas piedosas confrarias que foram instituídas para implorar José em nome dos moribundos, como as “da Boa Morte”, do “Trânsito de São José” e “pelos Agonizantes”» (Motu proprio Bonum sane, 25 de julho de 1920): eram as associações da época.
Amados irmãos e irmãs, talvez algumas pessoas pensem que esta linguagem e este tema sejam apenas uma herança do passado, mas na realidade a nossa relação com a morte nunca diz respeito ao passado, é sempre presente. O Papa Bento dizia, há alguns dias, falando sobre si mesmo que “está diante da porta obscura da morte”. É bom agradecer ao Papa Bento que com 95 anos tem a lucidez de nos dizer isto: “Estou diante da obscuridade da morte, à porta obscura da morte”. Um bom conselho que nos deu! A chamada cultura do “bem-estar” procura remover a realidade da morte, mas de uma forma dramática a pandemia do coronavírus voltou a colocá-la em evidência. Foi terrível: a morte estava em toda a parte, e muitos irmãos e irmãs perderam entes queridos sem poderem estar ao lado deles, e isto tornou a morte ainda mais difícil de aceitar e de elaborar. Uma enfermeira contou-me que uma avó com Covid estava a morrer e disse-lhe: “gostaria de me despedir dos meus entes queridos antes de ir embora”. E a enfermeira, corajosa, pegou no telemóvel e fez a ligação. A ternura daquela despedida...
Não obstante isto, procuramos de todas as maneiras banir o pensamento da nossa finitude, iludindo-nos assim a pensar que podemos retirar o poder da morte e afastar o temor. Mas a fé cristã não é uma forma de exorcizar o medo da morte, pelo contrário, ajuda-nos a enfrentá-la. Mais cedo ou mais tarde, todos nós iremos àquela porta.
A verdadeira luz que ilumina o mistério da morte provém da ressurreição de Cristo. Eis a luz. E São Paulo escreve: «Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos? Se não há ressurreição de mortos, nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé (1 Cor 15, 12-14). Há uma certeza: Cristo ressuscitou, Cristo ressurgiu, Cristo está vivo no meio de nós. E esta é a luz que nos espera por detrás da porta obscura da morte.
Prezados irmãos e irmãs, é apenas através da fé na ressurreição que podemos olhar para o abismo da morte sem nos deixarmos dominar pelo medo. Não só: mas também podemos atribuir à morte um papel positivo. De facto, pensar na morte, iluminada pelo mistério de Cristo, ajuda-nos a olhar para toda a vida com olhos novos. Nunca vi atrás de um carro fúnebre uma carrinha de mudanças! Atrás de um carro fúnebre: nunca vi. Iremos sozinhos, sem nada nos bolsos da mortalha: nada. Pois a mortalha não tem bolsos. Esta solidão da morte: é verdade, nunca vi atrás de um carro fúnebre uma carrinha de mudanças. Não tem sentido acumular se um dia morreremos. O que precisamos de acumular é caridade, a capacidade de partilhar, a capacidade de não ficar indiferentes às necessidades dos demais. Ou, de que serve discutir com um irmão, uma irmã, um amigo, um membro da família, ou um irmão ou irmã na fé, se um dia morreremos? De que serve enraivecer-se, zangar-se com os outros? Perante a morte, tantas questões são redimensionadas. É bom morrer reconciliado, sem deixar ressentimentos e sem arrependimentos! Gostaria de dizer uma verdade: todos nós estamos a caminho rumo àquela porta, todos.
O Evangelho diz-nos que a morte vem como um ladrão, assim diz Jesus: chega como um ladrão, e por muito que procuremos manter a sua chegada sob controlo, talvez mesmo planeando a própria morte, ela continua a ser um acontecimento com o qual temos de nos confrontar e perante o qual também temos de fazer escolhas.
Para nós cristãos permanecem firmes duas considerações. A primeira é que não podemos evitar a morte, e é precisamente por esta razão que, depois de ter feito tudo o que era humanamente possível para curar a pessoa doente, é imoral envolver-se numa obstinação terapêutica (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2278). Aquela frase do povo fiel de Deus, das pessoas simples: “Deixai-o morrer em paz”, “ajudai-o a morrer em paz”: quanta sabedoria! A segunda consideração diz respeito à qualidade da própria morte, a qualidade da dor, do sofrimento. De facto, devemos estar gratos por toda a ajuda que a medicina procura dar, para que através das chamadas “curas paliativas”, cada pessoa que se está a preparar para viver a última parte da sua vida o possa fazer da forma mais humana possível. Contudo, devemos ter o cuidado de não confundir esta ajuda com desvios inaceitáveis que levam a matar. Devemos acompanhar as pessoas até à morte, mas não provocar a morte nem ajudar qualquer forma de suicídio. Saliento que o direito a cuidados e tratamentos para todos deve ser sempre uma prioridade, de modo a que os mais débeis, particularmente os idosos e os doentes, nunca sejam descartados. A vida é um direito, não a morte, que deve ser acolhida, não administrada. E este princípio ético diz respeito a todos, e não apenas aos cristãos ou crentes. Mas eu gostaria de sublinhar aqui um problema social, mas real. Aquele “planificar” – não sei se esta é a palavra certa – mas acelerar a morte dos idosos. Muitas vezes vemos numa certa classe social que os idosos, por não terem os meios, recebem menos medicamentos do que necessitariam, e isto é desumano: isto não os está a ajudar, está a empurrá-los mais depressa para a morte. Isto não é humano nem cristão. Os idosos devem ser tratados como um tesouro da humanidade: eles são a nossa sabedoria. Mesmo que não falem, e se não tem um sentido, todavia são o símbolo da sabedoria humana. São aqueles que nos precederam e nos deixaram tantas coisas boas, tantas recordações, tanta sabedoria. Por favor, não isoleis os idosos, não apresseis a morte dos idosos. Acariciar um idoso tem a mesma esperança que acariciar uma criança, pois o início e o fim da vida é sempre um mistério, um mistério que deve ser respeitado, acompanhado, cuidado, amado.
Que São José nos ajude a viver o mistério da morte da melhor maneira possível. Para um cristão, a boa morte é uma experiência da misericórdia de Deus, que se aproxima de nós, até naquele último momento da nossa vida. Também na oração da Ave-Maria, pedimos a Nossa Senhora para estar perto de nós “na hora da nossa morte”. Precisamente por esta razão, gostaria de concluir esta catequese rezando juntos a Nossa Senhora pelos moribundos, por quantos estão a viver este momento de passagem por aquela porta obscura, e pelos familiares que estão a viver o luto. Rezemos juntos:
Ave Maria...
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 09.02.22
Catequese sobre São José 9. São José, homem que "sonha"
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje gostaria de me concentrar na figura de São José como homem que sonha. Na Bíblia, como nas culturas dos povos antigos, os sonhos eram considerados um meio pelo qual Deus se revelava (Cf. Gn 20, 3; 28, 12; 31, 11.24; 40, 8; 41, 1-32; Nm 12, 6; 1 Sm 3, 3-10; Dn 2; 4; Job 33, 15.). O sonho simboliza a vida espiritual de cada um de nós, o espaço interior, que cada um é chamado a cultivar e preservar, onde Deus se manifesta e muitas vezes nos fala. Mas devemos também dizer que dentro de cada um não existe apenas a voz de Deus: existem muitas outras vozes. Por exemplo, as vozes dos nossos receios, as vozes das experiências passadas, as vozes das esperanças; e há também a voz do maligno que nos quer enganar e confundir. Por conseguinte, é importante ser capaz de reconhecer a voz de Deus no meio de outras vozes. José demonstra que sabe cultivar o silêncio necessário e, sobretudo, tomar as decisões corretas perante a Palavra que o Senhor lhe dirige interiormente. Hoje, será bom para nós retomarmos os quatro sonhos do Evangelho que o têm como protagonista, para compreender como nos colocarmos perante a revelação de Deus. O Evangelho narra-nos quatro sonhos de José.
No primeiro sonho (cf. Mt 1, 18-25), o anjo ajuda José a resolver o drama que o assola quando soube da gravidez de Maria: «Não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados» (vv. 20-21). E a sua resposta foi imediata: «Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado» (v. 24). Muitas vezes a vida coloca-nos diante de situações que não compreendemos e que parecem não ter solução. Rezar nesses momentos significa deixar que o Senhor nos indique o que é justo fazer. Na verdade, muitas vezes é a oração que nos dá a intuição da saída, como resolver aquela situação. Caros irmãos e irmãs, o Senhor nunca permite que um problema surja sem nos conceder também a ajuda necessária para o enfrentar. Não nos lança sozinhos na fornalha. Não nos lança no meio das feras. Não. O Senhor quando nos mostra um problema ou revela um problema, dá-nos sempre a intuição, a ajuda, a sua presença, para sairmos dele, para o resolver.
O segundo sonho revelador de José chega quando a vida do menino Jesus está em perigo. A mensagem é clara: «Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar» (Mt 2, 13). José obedeceu sem hesitação: «Levantou-se durante a noite, tomou o menino e a sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte de Herodes» (vv. 14-15). Na vida, todos nós experimentamos perigos que ameaçam a nossa existência ou a daqueles que amamos. Nestas situações, rezar significa ouvir a voz que nos pode dar a mesma coragem de José, para enfrentar as dificuldades sem sucumbir.
No Egito, José espera um sinal de Deus para poder regressar a casa, e este é o conteúdo do terceiro sonho. O anjo revela-lhe que aqueles que queriam matar o menino morreram e ordena-lhe que parta com Maria e Jesus e regresse à pátria (cf. Mt 2, 19-20). José «levantou-se, tomou o menino e a sua mãe e foi para a terra de Israel» (v. 21). Mas precisamente na viagem de regresso, «ao ouvir que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, não ousou ir para lá» (v. 22). Eis então a quarta revelação: «Advertido em sonhos, retirou-se para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré» (vv. 22-23). O medo também faz parte da vida e precisa da nossa oração. Deus não nos promete que nunca teremos medo, mas que, com a sua ajuda, este não será o critério para as nossas decisões. José experimenta o medo, mas Deus guia-o através dele. O poder da oração ilumina as situações de escuridão.
Penso neste momento em tantas pessoas que estão esmagadas pelo peso da vida e já não conseguem ter esperança nem rezar. Que São José as ajude a abrir-se ao diálogo com Deus, para encontrar luz, força e paz. E penso também nos pais diante dos problemas dos filhos. Filhos com muitas doenças, filhos doentes, inclusive com enfermidades permanentes: quanto sofrimento nisto. Pais que veem orientações sexuais diferentes nos filhos; como gerir isto e acompanhar os filhos e não se esconder numa atitude condenatória. Pais que veem os filhos que vão embora, morrem, por causa de uma doença e também – é mais triste, lemos todos os dias nos jornais – jovens que fazem leviandades e acabam num acidente de carro. Os pais que veem os filhos que não rendem na escola e não sabem o que fazer… Muitos problemas dos pais. Pensemos em como os ajudar. E a estes pais, digo: não vos assusteis. Sim, há o sofrimento. Muito. Mas pensai como José resolveu os problemas e pedi a José que vos ajude. Nunca condeneis um filho. Sinto tanta ternura – também em Buenos Aires – quando ia de autocarro e passava diante da prisão: havia uma fila de pessoas que esperavam para entrar e visitar os encarcerados. E estavam ali as mães, faziam-me sentir tanta ternura: face ao problema de um filho que errou, foi preso, não o deixavam sozinho, encaravam o problema e acompanhavam-no. Esta coragem; coragem de pai e de mãe que acompanham os filhos sempre, sempre. Peçamos ao Senhor que conceda a todos os pais e a todas as mães esta coragem que deu a José. E depois rezar a fim de que o Senhor nos ajude nestes momentos.
A oração, no entanto, nunca é um gesto abstrato nem intimista, como querem fazer aqueles movimentos espirituais mais gnósticos do que cristãos. Não, não é isto. A oração está sempre indissociavelmente ligada à caridade. Só quando unimos a oração com o amor, o amor pelos filhos, como o caso que acabei de mencionar, ou o amor ao próximo, somos capazes de compreender as mensagens do Senhor. José rezava, trabalhava e amava – três ações boas para os pais: rezar, trabalhar e amar – e por isso recebeu sempre o necessário para enfrentar as provações da vida. Confiemo-nos a ele e à sua intercessão.
São José, vós sois o homem que sonha,
ensinai-nos a recuperar a vida espiritual
como o lugar interior onde Deus se manifesta e nos salva.
Retirai de nós o pensamento de que rezar é inútil;
ajudai cada um de nós a corresponder ao que o Senhor nos indica.
Que o nosso raciocínio seja irradiado pela luz do Espírito,
o nosso coração encorajado pela Sua força
e os nossos receios salvos pela Sua misericórdia. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 26.01.22
Catequese sobre São José 8. São José pai na ternura
Hoje gostaria de aprofundar a figura de São José como pai na ternura.
Na Carta Apostólica Patris corde (8 de dezembro de 2020) tive a oportunidade de refletir sobre este aspecto da ternura, um aspecto da personalidade de São José. De fato, embora os Evangelhos não nos deem quaisquer detalhes sobre como ele exerceu a sua paternidade, podemos estar certos de que o seu ser um homem “justo” também se verificou na educação que deu a Jesus. «José via Jesus crescer “em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens” (Lc 2, 52): assim diz o Evangelho. Como o Senhor fez com Israel, assim ele ensinou Jesus a andar segurando-O pela mão: era para Ele como o pai que levanta o filho contra o seu rosto, inclinava-se para Ele a fim de Lhe dar de comer (cf. Os 11, 3-4)» (Patris corde, 2). É bonita esta definição da Bíblia que mostra a relação de Deus com o povo de Israel. E pensamos que tenha sido a mesma relação de São José com Jesus.
Os Evangelhos atestam que Jesus sempre usou a palavra “pai” para falar de Deus e do seu amor. Muitas parábolas têm como protagonista a figura de um pai (cf. Mt 15, 13; 21, 28-30; 22, 2; Lc 15, 11-32; Jo 5, 19-23; 6, 32-40; 14, 2; 15, 1.8). Uma das mais famosas é certamente a do Pai misericordioso, narrada pelo evangelista Lucas (cf. 15, 11-32). Esta parábola sublinha não só a experiência do pecado e do perdão, mas também a forma como o perdão chega à pessoa que errou. O texto diz: «Estava ainda longe, quando o seu pai o viu e, movido de compaixão, foi ao encontro dele, abraçou-o e beijou-o» (v. 20). O filho esperava um castigo, uma justiça que no máximo lhe poderia ter dado o lugar de um dos servos, mas encontra-se envolto no abraço do seu pai. A ternura é algo maior do que a lógica do mundo. É uma forma inesperada de fazer justiça. É por isso que nunca devemos esquecer que Deus não se assusta com os nossos pecados: convençamo-nos bem disto. Deus não se assusta com os nossos pecados, é maior do que os nossos pecados: é pai, é amor, é terno. Não se assusta com os nossos pecados, com os nossos erros, as nossas quedas, mas assusta-se com o fechamento do nosso coração – isto sim, fá-lo sofrer – assusta-se com a nossa falta de fé no seu amor. Há uma grande ternura na experiência do amor de Deus. E é bom pensar que a primeira pessoa que transmitiu esta realidade a Jesus foi precisamente José. Pois as coisas de Deus vêm sempre até nós através da mediação de experiências humanas. Há algum tempo – não sei se já contei isto – um grupo de jovens que fazem teatro, um grupo de jovens pop, “modernos”, ficaram impressionados com esta parábola do pai misericordioso e decidiram fazer uma peça de teatro pop com este tema, com esta história. E fizeram-na bem. E, no final, o tema principal é que um amigo ouve o filho que se afastou do pai, que queria voltar para casa, mas tinha medo que o pai o expulsasse e castigasse. E o amigo diz-lhe, naquela ópera pop: “Manda um mensageiro e diz que queres voltar para casa, e se o pai aceitar receber-te que ponha um lenço na janela, naquela que verás quando chegares à reta final”. Assim foi feito. E a ópera, com cantos e danças, continua até ao momento em que o filho inicia o caminho final e vê a casa. E quando olha para cima, vê a casa cheia de lenços brancos: cheia. Não um, mas três ou quatro para cada janela. Esta é a misericórdia de Deus. Ele não se assusta com o nosso passado, com os nossos aspetos negativos: assusta-se apenas com o fechamento. Todos temos contas a acertar; mas acertar as contas com Deus é belíssimo, porque começamos a falar e Ele abraça-nos. A ternura!
Assim, podemos perguntar-nos se experimentámos esta ternura, e se, por nossa vez, nos tornámos suas testemunhas. Pois a ternura não é sobretudo uma questão emocional ou sentimental: é a experiência de nos sentirmos amados e acolhidos precisamente na nossa pobreza e miséria, e, por conseguinte, transformados pelo amor de Deus.
Deus não conta apenas com os nossos talentos, mas também com a nossa fraqueza redimida. Isto, por exemplo, faz São Paulo dizer que há um desígnio sobre a sua fragilidade. De facto, escreveu à comunidade de Corinto: «Para que não me enchesse de orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, para me ferir, a fim de que não me orgulhasse. A esse respeito, três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Mas Ele respondeu-me: “Basta-te a minha graça, porque a força manifesta-se na fraqueza”» (2 Cor 12, 7-9). O Senhor não nos tira todas as fragilidades, mas ajuda-nos a caminhar com as fragilidades, pegando-nos pela mão. Pega pela mão as nossas fragilidades e põe-se perto de nós. Isto é ternura. A experiência da ternura consiste em ver o poder de Deus passar precisamente por aquilo que nos torna mais frágeis; mas sob condição de nos convertermos do olhar do Maligno que nos faz «olhar para a nossa fragilidade com um juízo negativo, ao passo que o Espírito trá-la à luz com ternura» (Patris corde, 2). «A ternura é a melhor forma para tocar o que há de frágil em nós. [...] Observai como as enfermeiras, os enfermeiros, tocam as feridas dos doentes: com ternura, para não os ferir mais. E assim o Senhor toca as nossas feridas, com a mesma ternura. Por isso, é importante encontrar a Misericórdia de Deus, especialmente no sacramento da Reconciliação, - na oração pessoal com Deus, fazendo uma experiência de verdade e ternura. Paradoxalmente, também o Maligno pode dizer-nos a verdade: ele é mentiroso, mas arranja-se para nos dizer a verdade a fim de nos levar à mentira; mas, se o faz, é para nos condenar. Ao contrário, o Senhor diz-nos a verdade e estende-nos a mão para nos salvar. Entretanto nós sabemos que a Verdade vinda de Deus não nos condena, mas acolhe-nos, abraça-nos, ampara-nos, perdoa-nos» (cf. Patris corde, 2). Deus perdoa sempre: ponde isto na cabeça e no coração. Deus perdoa sempre. Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Mas ele perdoa sempre, inclusive as coisas mais terríveis.
Faz-nos bem, então, espelharmo-nos na paternidade de José que é um espelho da paternidade de Deus, e perguntarmo-nos se permitimos que o Senhor nos ame com a sua ternura, transformando cada um de nós em homens e mulheres capazes de amar desta forma. Sem esta “revolução da ternura” – é necessária uma revolução da ternura! – corremos o risco de permanecer presos numa justiça que não nos permite erguer-nos facilmente e que confunde redenção com castigo. Por esta razão, hoje desejo recordar de um modo especial os nossos irmãos e irmãs que estão na prisão. É justo que quem erra pague pelo próprio erro, mas é também justo que aqueles que erraram possam redimir-se do seu erro. Não podem haver condenações sem janelas de esperança. Qualquer condenação tem sempre uma janela de esperança. Pensemos nos nossos irmãos e irmãs encarcerados, e pensemos na ternura de Deus por eles e rezemos por eles, para que encontrem naquela janela de esperança um caminho de saída rumo a uma vida melhor.
E concluamos com esta oração:
São José, pai na ternura,
ensinai-nos a aceitar que somos amados precisamente naquilo que é mais débil em nós.
Concedei que não coloquemos qualquer obstáculo
entre a nossa pobreza e a grandeza do amor de Deus.
Suscitai em nós o desejo de nos aproximarmos do Sacramento da Reconciliação,
para que possamos ser perdoados e também que nos tornemos capazes de amar com ternura os nossos irmãos e irmãs na sua pobreza.
Estai próximo daqueles que erraram e que pagam o preço por isso;
ajudai-os a encontrar, juntamente com a justiça, a ternura para recomeçar.
E ensinai-lhes que a primeira maneira de recomeçar
é pedir sinceramente perdão, para sentir a carícia do Pai.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 19.01.22
Catequese sobre São José 7. São José o carpinteiro
Os evangelistas Mateus e Marcos, definem José como “carpinteiro” ou “marceneiro”. Escutámos anteriormente que o povo de Nazaré, ao ouvir Jesus falar, perguntava-se: «Não é este o filho do carpinteiro?» (13, 55; cf. Mc 6, 3). Jesus praticou o ofício do pai.
O termo grego tekton, utilizado para indicar o trabalho de José, foi traduzido de várias maneiras. Os Padres latinos da Igreja traduziram-no como “carpinteiro”. Mas tenhamos presente que na Palestina do tempo de Jesus, a madeira era utilizada não só para fazer arados e móveis vários, mas também para construir casas, que tinham armações de madeira e telhados em terraços feitos de vigas ligadas entre si com ramos e terra.
Portanto, “carpinteiro” ou “marceneiro” era uma qualificação genérica, indicando tanto os artesãos da madeira como os trabalhadores que se ocupavam de atividades relacionadas com a construção. Um ofício bastante duro, tendo que trabalhar com materiais pesados como a madeira, a pedra e o ferro. Sob o ponto de vista económico, não garantia grandes ganhos, como se pode deduzir do facto de Maria e José, quando apresentaram Jesus no Templo, terem oferecido apenas um casal de rolas ou de pombas (cf. Lc 2, 24), como a Lei prescrevia para os pobres (cf. Lv 12, 8).
Assim, o adolescente Jesus aprendeu esta profissão com o pai. Portanto, quando, adulto, começou a pregar, os seus concidadãos, surpreendidos, perguntavam-se: «De onde Lhe vem esta sabedoria e o poder de fazer milagres?» (Mt 13, 54), e escandalizavam-se com Ele (cf. v. 57), pois era o filho do carpinteiro, mas falava como um doutor da lei, e escandalizavam-se com isto.
Este dado biográfico sobre José e Jesus faz-me pensar em todos os trabalhadores do mundo, especialmente naqueles que trabalham arduamente em minas e em certas fábricas; naqueles que são explorados através do trabalho não declarado; nas vítimas do trabalho – vimos que ultimamente na Itália houve muitas – nas crianças que são obrigadas a trabalhar e naquelas que vasculham as lixeiras em busca de algo útil para baratear... Permito-me repetir o que disse: os trabalhadores escondidos, os trabalhadores que fazem trabalho pesado nas minas e em certas fábricas: pensemos neles. Naqueles que são explorados pelo trabalho clandestino, naqueles que contrabandeiam salários, às escondidas, sem reforma, sem nada. E se não trabalhas, tu, não tens segurança alguma. Há muito trabalho não declarado hoje em dia. Pensemos nas vítimas do trabalho, dos acidentes de trabalho; nas crianças que são obrigadas a trabalhar: isto é terrível! As crianças na idade de brincar devem brincar, mas em vez disso são forçadas a trabalhar como os adultos. Pensemos nas pobres crianças que vasculham as lixeiras à procura de algo que se possa baratear. Todos estes são nossos irmãos e irmãs, que ganham a vida desta forma, com trabalhos que não reconhecem a sua dignidade! Pensemos nisto. E isto está a acontecer hoje, no mundo, isto está a acontecer hoje! Mas também penso naqueles que estão desempregados: quantas pessoas vão bater às portas das fábricas, das empresas: “Mas, há alguma coisa a fazer?” – “Não, não há, não há...”. A falta de trabalho! E penso também naqueles que se sentem feridos na própria dignidade porque não conseguem encontrar um emprego. Voltam para casa: “Encontraste alguma coisa?” – “Não, nada... Passei na Cáritas e trouxe o pão”. O que dá dignidade não é levar o pão para casa. Podes recebê-lo na Cáritas: não, isto não dá dignidade. O que dá dignidade é ganhar o pão, e se não dermos ao nosso povo, aos nossos homens e mulheres, a capacidade de ganhar o pão, é uma injustiça social naquele lugar, naquela nação, naquele continente. Os governantes devem dar a todos a possibilidade de ganhar o pão, porque este ganho lhes dá dignidade. O trabalho é uma unção de dignidade, e isto é importante. Muitos jovens, muitos pais e mães vivem o drama de não ter um emprego que lhes permita viver serenamente, vivem um dia de cada vez. E muitas vezes a procura de uma ocupação torna-se tão dramática que são levados ao ponto de perderem toda a esperança e desejo de viver. Nestes tempos de pandemia, muitas pessoas perderam os empregos – sabemos isto – e algumas, esmagadas por um fardo insuportável, chegaram ao ponto de cometer suicídio. Gostaria hoje de lembrar cada um deles e as suas famílias. Façamos um momento de silêncio para recordar aqueles homens e mulheres desesperados porque não conseguem encontrar trabalho.
Não se tem suficientemente em conta o facto de o trabalho ser uma componente essencial da vida humana, e também do caminho da santificação. O trabalho não é apenas um meio de ganhar a vida: é também um lugar onde nos expressamos, nos sentimos úteis e aprendemos a grande lição da realidade, o que ajuda a vida espiritual a não se tornar espiritualismo. Infelizmente, porém, o trabalho com frequência é refém da injustiça social e, em vez de ser um meio de humanização, torna-se uma periferia existencial. Muitas vezes pergunto-me: com que espírito fazemos o nosso trabalho diário? Como lidamos com a fadiga? Vemos a nossa atividade ligada apenas ao nosso destino ou também ao destino dos outros? Com efeito, o trabalho é um modo de expressar a nossa personalidade, que é relacional por natureza. O trabalho é inclusive um modo para exprimir a nossa criatividade: cada um desempenha o trabalho à sua maneira, com o próprio estilo; o mesmo trabalho mas com estilo diverso.
É bom pensar que o próprio Jesus trabalhou e aprendeu esta arte com São José. Hoje devemos perguntar-nos o que podemos fazer para recuperar o valor do trabalho; e que contribuição podemos, como Igreja, oferecer para que ele possa ser resgatado da lógica do mero lucro e possa ser experimentado como direito e dever fundamental da pessoa, que exprime e incrementa a sua dignidade.
Estimados irmãos e irmãs, por tudo isto gostaria hoje de recitar convosco a oração que São Paulo VI elevou a São José a 1 de maio de 1969:
Ó São José,
Padroeiro da Igreja
vós que, ao lado do Verbo encarnado
trabalhastes todos os dias para ganhar o pão
tirando d’Ele a força para viver e labutar;
vós que experimentastes a ansiedade do amanhã,
a amargura da pobreza, a precariedade do trabalho:
vós que irradiais hoje, o exemplo da vossa figura,
humilde perante os homens
mas grandíssima diante de Deus,
protegei os trabalhadores na sua dura existência quotidiana,
defendendo-os do desânimo
da revolta negadora,
bem como das tentações do hedonismo;
e preservai a paz no mundo,
aquela paz que, por si só, pode garantir o desenvolvimento dos povos. Amém.
Papa Francisco
Catequese na audiência geral 12.01.22
Catequese sobre São José 6. São José, o pai adotivo de Jesus
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
Hoje meditaremos sobre São José como pai de Jesus. Os Evangelistas Mateus e Lucas, apresentam-no como o pai adotivo de Jesus e não como pai biológico. Mateus especifica-o, evitando a fórmula “gerou”, utilizada na genealogia para todos os antepassados de Jesus; mas define-o como «esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado o Cristo» (1, 16). Enquanto Lucas afirma isto, dizendo que era pai de Jesus «como se supunha» (3, 23), isto é, aparecia como pai.
A fim de compreender a paternidade putativa ou legal de José, é necessário ter em mente que em tempos antigos no Oriente a instituição da adoção era muito comum, mais do que é hoje. Pensemos no caso comum em Israel do “levirato”, formulado da seguinte maneira no Deuteronômio: «Se os irmãos residirem juntos, e um deles morrer sem deixar filhos, a viúva não poderá casar com um estranho; o seu cunhado é que se juntará a ela e a tomará como mulher, observando o costume do levirato. E o primeiro filho que ela tiver usará o nome do irmão morto, a fim de que esse nome não se extinga em Israel» (25, 5-6). Por outras palavras, o pai desta criança é o cunhado, mas o pai legal continua a ser o falecido, que dá ao recém-nascido todos os direitos hereditários. O objetivo desta lei era duplo: assegurar a descendência do falecido e a preservação do património.
Como pai oficial de Jesus, José exerce o direito de impor o nome ao filho, reconhecendo-o juridicamente. Juridicamente é o pai, mas não generativamente, não o gerou.
Antigamente o nome era o compêndio da identidade de uma pessoa. Mudar o nome significava mudar a si mesmo, como no caso de Abrão, cujo nome Deus mudou para “Abraão”, que significa “pai de muitos”, pois, diz o Livro do Génesis, «farei de ti o pai de inúmeros povos» (17, 5). O mesmo vale para Jacob, que é chamado “Israel”, que significa “aquele que luta com Deus”, porque lutou com Deus para o forçar a conceder-lhe a bênção (cf. Gn 32, 29; 35, 10).
Mas, sobretudo, dar o nome a alguém ou a algo significava afirmar a própria autoridade sobre o que era denominado, como fez Adão quando conferiu um nome a todos os animais (cf. Gn 2, 19-20).
José já sabe que para o filho de Maria havia um nome estabelecido por Deus – o nome de Jesus é dado pelo seu verdadeiro pai, Deus – o nome “Jesus”, que significa “O Senhor salva”, como o Anjo lhe explicou: «Porque ele salvará o povo dos seus pecados» (Mt 1, 21). Este aspecto particular da figura de José permite-nos hoje refletir sobre a paternidade e a maternidade. E acho que isto é muito importante: pensar na paternidade, hoje. Pois vivemos numa época de notável orfandade. É curioso: a nossa civilização é um pouco órfã, e sente-se esta orfandade. Ajude-nos a figura de São José a entender como se resolve o sentido de orfandade que hoje nos faz tanto mal.
Não é suficiente pôr um filho no mundo para dizer que também somos pais ou mães. «Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exerce a paternidade a seu respeito» (Carta ap. Patris corde). Penso, em particular, em todos aqueles que se abrem a acolher a vida através da adoção, que é uma atitude tão generosa e positiva. José mostra-nos que este tipo de vínculo não é secundário, não é uma alternativa. Este tipo de escolha está entre as formas mais elevadas de amor e de paternidade e maternidade. Quantas crianças no mundo estão à espera de alguém que cuide delas! E quantos cônjuges desejam ser pais e mães, mas não o conseguem por razões biológicas; ou, embora já tenham filhos, querem partilhar o afeto familiar com quantos não o têm. Não devemos ter medo de escolher o caminho da adoção, de assumir o “risco” do acolhimento. E hoje, também, com a orfandade, existe um determinado egoísmo. Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos… Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade. E esta negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade. E assim a civilização torna-se mais velha e sem humanidade, porque se perde a riqueza da paternidade e da maternidade. E a Pátria que não tem filhos sofre e – como dizia alguém um pouco humoristicamente – “e agora quem pagará os impostos para a minha reforma, que não há filhos? Quem se ocupará de mim?”: ria, mas é a verdade. Peço a São José a graça de despertar as consciências e pensar nisto: em ter filhos. A paternidade e a maternidade são a plenitude da vida de uma pessoa. Pensai nisto. É verdade, existe a paternidade espiritual e a maternidade espiritual para quem se consagra a Deus; mas quem vive no mundo e se casa, deve pensar em ter filhos, em dar a vida, pois serão eles que lhes fecharão os olhos, que pensarão no seu futuro. E também, se não podeis ter filhos, pensai na adoção. É um risco, sim: ter um filho é sempre um risco, quer natural quer adotivo. Mas pior é não os ter, é negar a paternidade, negar a maternidade, tanto a real como a espiritual. A um homem e a uma mulher que voluntariamente não desenvolvem o sentido da paternidade e da maternidade, falta algo principal, importante. Pensai nisto, por favor. Espero que as instituições estejam sempre prontas a ajudar neste sentido da adoção, controlando seriamente, mas também simplificando o procedimento necessário para que se realize o sonho de tantos pequeninos que precisam de uma família, e de tantos cônjuges que desejam entregar-se com amor. Há tempos ouvi um testemunho de uma pessoa, um médico – importante a sua profissão – não tinha filhos e com a esposa decidiram adotar uma criança. E quando chegou o momento, ofereceram-lhes uma e disseram: “Mas não sabemos como será a saúde dela. Talvez possa ter alguma doença”. E ele – tinha-o visto – respondeu: “Se o senhor me tivesse perguntado isto antes de entrar, talvez teria dito não. Mas vi-o: aceito-a”. Esta é a vontade de ser pai, de ser mãe também na adoção. Não tenhais medo disto.
Rezo para que ninguém se sinta sem um vínculo de amor paterno. E quantos estão doentes de orfandade continuem em frente sem este sentimento tão negativo. Possa São José exercer a sua proteção e a sua ajuda sobre os órfãos; e que interceda pelos casais que desejam ter um filho. Por isto, rezemos juntos:
São José,
vós que amastes Jesus com amor de pai,
estai próximo das muitas crianças que não têm família
e que desejam um pai e uma mãe.
Apoiai os cônjuges que não podem ter filhos,
Ajudai-os a descobrir, através deste sofrimento, um projeto maior.
Fazei com que a ninguém falte uma casa, um relacionamento,
uma pessoa que se ocupe dele ou dela;
e curai o egoísmo daqueles que se fecham à vida,
para que possam abrir o coração ao amor. Amém.
Papa Francisco,
Catequese na audiência geral 05.01.22
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