Introdução

Em 1964, em pleno desenvolvimento do Concílio Vaticano II, realizou-se a primeira Campanha da Fraternidade (CF) em âmbito nacional, sob os cuidados da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Para o ano de 2018, foi escolhido o tema “FRATERNIDADE E SUPERAÇÃO DA VIO­LÊN­CIA” e o lema: “VÓS SOIS TODOS IRMÃOS” (Mt 23,8), com o objetivo geral de construir a fraternidade, promovendo a cultura da paz, da reconciliação e da justiça, à luz da palavra de Deus, como caminho de superação da violência.

O tema da CF-2018 pretende advertir que a violência nunca constitui uma resposta justa. A Igreja proclama, com a convicção de sua fé em Cristo e com a consciência de sua missão, que a violência é um mal, é inaceitável como solução para os problemas e não é digna do ser humano.

A busca de soluções alternativas à violência para resolver os conflitos assumiu, atualmente, um caráter de dramática urgência. É, portanto, essencial a busca das causas que originam a violência, em primeiro lugar as que se ligam a situações estruturais de injustiça, de miséria, de exploração, nas quais é necessário intervir com o objetivo de superá-las (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja).

 Já o lema “Vós sois todos irmãos” busca resgatar o sentido da fraternidade dos povos, pois somos todos irmãos e irmãs, filhos e filhas de um mesmo Pai. Por isso, iluminados pelo evangelho do Reino, somos chamados à não violência.

A CNBB convida todos os homens e mulheres de boa vontade a percorrer o caminho da superação da violência, crescente em todos os níveis. Para isso, é preciso olhar a realidade, iluminá-la com a luz da palavra de Deus e do magistério da Igreja e, por fim, agir sobre ela, transformando-a.

1.Olhar a realidade

A convivência pacífica e a sociabilidade violenta parecem disputar os mesmos espaços no cotidiano. No Brasil, criou-se um discurso conveniente, segundo o qual o povo brasileiro é pacífico; contudo, basta observar com cautela a sociedade para perceber como a violência está presente no dia a dia das pessoas.

Tal violência, com o passar dos anos, foi se tornando uma cultura institucionalizada e sistematizada, gerando assim os rostos nos quais se contempla o descaso com a pessoa humana e o quanto ela é tolhida em seus direitos e dignidade.

Cultura da violência

A definição mais genuína da palavra cultura é “cultivo”. Disseminar uma cultura é cultivar um modo de ser, de estar e de agir.

Quando se apresenta a violência como cultura, parte-se de uma análise da realidade em que comportamentos, mídias, expressões verbais, músicas etc. foram se tornando “normais”, “comuns”. Essa cultura é produzida pelos indivíduos, que, ao mesmo tempo, se tornam vítimas do próprio sistema de violência.

A violência cultural institui na sociedade uma situação em que alguns atos violentos são reconhecidos como legítimos ou naturais. Assim, a violência cultural não constitui a causa primeira da violência, mas é condição para que a sociedade tenha uma visão míope dos atos violentos; em outras palavras, uma consciência anestesiada, pois aquilo que deveria ser considerado violento – porque é um mal em si – passa a não ser assim considerado.

A mídia é a grande colaboradora do processo de naturalização da violência, pois a polariza em alguns contextos específicos – por exemplo, o narcotráfico, os assassinatos e as guerras –, como se ela só fosse possível nesses “ambientes organizados”. Esquece-se que a violência nasce no próprio ser humano, quando este escolhe o caminho do ódio, do não perdão, da inveja, da soberba. Acrescido a isso, a sociedade aceita passivamente atitudes de natureza violenta.

A cultura da violência é uma cultura excludente, pois a associa às classes sociais e raciais, criando, assim, estigmas sociais como “o povo daquele país não presta”, “aquele rapaz tem cara de bandido”, “aquela mulher merece apanhar”. Essas expressões, tornadas corriqueiras, são um modo de descriminalizar a cultura da violência. As estatísticas confirmam isso quando apontam registros crescentes de xenofobia no Brasil, o grande número de jovens negros encarcerados, a multidão de mulheres que, no silêncio do lar, sofrem violências diversas.

Essa naturalização se converte em indiferença. Os números da violência no Brasil revelam uma calamidade social. Raramente, porém, o espectador ultrapassa o nível de leve indignação diante dos dados. Isso que ocorre no plano individual se manifesta como uma espécie de anestesia nos governos, que não se sentem compelidos a elaborar políticas públicas capazes de reverter a tragédia em andamento (cf. Texto-base da CF-2018).

A cultura se atualiza por meio de ações sociais, ou seja, ocorre quando a sociedade vai cristalizando alguns comportamentos, chegando a institucionalizá-los. Nesse sentido, a Campanha da Fraternidade de 2018 não quer somente identificar a cultura da violência, mas sobretudo combatê-la. Para isso, é preciso entender como essa cultura vai se sistematizando na pessoa, na comunidade e na sociedade.

A sistematização da violência

A violência apresenta-se nas mais variadas formas: física, psicológica, institucional, sexual, de gênero, doméstica, simbólica, entre outras. Superar as várias faces da violência é tarefa de todos. Exige o compromisso de cada cristão e cristã no enfrentamento das múltiplas formas de ofensa à dignidade humana que se naturalizam escandalosamente em nossa sociedade.

Ainda que o Brasil, nos últimos anos, tenha apresentado evidentes avanços e conquistas sociais, estes ainda não foram suficientes para eliminar a desigualdade. Uma vez que cresce a desigualdade, cresce também a violência. O não atendimento aos direitos elementares das pessoas constitui um nascedouro para a violência em sociedade.

Somam-se, nesse desafiador quadro social, as causas externas de mortalidade (decorrentes de acidentes de trânsito, afogamento, envenenamento e outras formas de violência, como agressões, homicídios, suicídios, tentativas de suicídio, abusos físicos, sexuais e psicológicos), que contribuem para mais de 138 mil óbitos anualmente em nosso país, segundo dados de 2010 do Ministério da Saúde. Os homicídios no Brasil, por exemplo, tiveram um aumento de 259% num período de trinta anos. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 11% dos assassinatos do mundo acontecem no Brasil, onde uma pessoa é morta a cada dez minutos; 50.806 pessoas foram vítimas de homicídios dolosos no país somente em 2013, ano que registrou 50.320 casos de estupro; o número de presos no sistema penitenciário brasileiro cresceu 5,37% entre 2012 e 2013, sobrecarregando ainda mais o já desumano sistema penitenciário; e os custos da violência chegaram a 258 bilhões de reais nesse mesmo período, correspondentes a quase 6% do PIB (soma de todas as riquezas que o país produz em um ano); nos últimos cinco anos, as polícias brasileiras mataram 11.197 pessoas, mas os policiais também foram vítimas: em 2013, 490 foram mortos, 75% dos quais fora de serviço. Dados do Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade (IVJ 2014) apontam que, no Nordeste, um jovem negro corre cinco vezes mais o risco de ser morto do que um jovem branco. Dos quase 30 mil jovens assassinados em 2012, 76,5% eram negros ou pardos, ou seja, morreram 225% mais jovens negros do que brancos. De acordo com o IVJ, no Brasil, esse índice é de 2,5, ou seja, são assassinados 2,5 vezes mais jovens negros do que brancos. A evolução histórica da mortalidade violenta no Brasil impressiona: segundo o Mapa da Violência 2014 – Os Jovens do Brasil, entre os anos 1980 e 2012, morreram no país 1.202.245 pessoas vítimas de homicídio, 1.041.335 pessoas vítimas de acidentes de trânsito e 216.211 suicidaram-se. As três causas somadas totalizam 2.459.791 vítimas (cf. Texto-base da CF-2018).

Sabe-se que a violência está presente em toda a sociedade e se manifesta de formas diferentes, mas é sabido também que as populações mais vulneráveis é que são mais vitimadas. Enquanto as classes de maior poder aquisitivo podem se proteger com uma série de artefatos que alimentam a “indústria da segurança” e dão uma falsa sensação de proteção, os mais pobres estão expostos à insegurança.

O direito à proteção é para todos, e se alguns estão tolhidos desse direito, isso se dá pelo fato de não haver políticas públicas que favoreçam a totalidade dos cidadãos. Os impostos, que deveriam servir ao bem comum, são escoados por obra da corrupção, num país em que parece estar institucionalizada a fraude contra o dinheiro público.

A violência não é um fenômeno apenas cultural, mas, ao se instalar na sociedade, vai se sistematizando. Tal sistema é bipartido e polarizado: de um lado, estão os que querem a todo custo tirar vantagem; de outro, as vítimas da desigualdade. Por sua vez, as instituições precipuamente responsáveis por zelar pelos direitos elementares de segurança, justiça e paz acabam se transformando em instituições corrompidas, como é o caso do sistema de justiça criminal brasileiro (formado pelas polícias, pelo Ministério Público, pela Justiça e pelo sistema prisional), que, muitas vezes, não consegue responder adequadamente às problemáticas contemporâneas.

A sociedade ainda se pauta na reação, e não na prevenção; na punição, e não na educação para o senso de pertença. Com o passar do tempo, os sistemas que deveriam ser um serviço à seguridade social tornam-se instituições sobre as quais a desconfiança cresce dia a dia.

A violência que se manifesta diariamente e em intensidade numérica cada vez maior muitas vezes é ocultada para dar espaço a fatos midiáticos. Alguns casos ficam tão expostos nos meios de comunicação, que levam a população a particularizá-los e a focar especificamente neles, esquecendo-se de outros, muito mais numerosos, que acontecem todos os dias. E, ainda, a mídia, ao apresentar situações de modo teatral, desperta na população um senso justiceiro, um desejo de fazer justiça com as próprias mãos. Volta à cena o desejo do mais alto grau de punição: a morte, como se fosse a solução para erradicar todos os tipos de violência.

 O descarte do ser humano, seja ele vítima ou autor do malfeito, não é o caminho. Não se pode alimentar um sistema maniqueísta que separa bons e maus, justos e injustos. É preciso voltar-se ao senso de alteridade: o outro (alter) é meu irmão; se é meu irmão, eu não o descarto quando erra, mas o ajudo a se reeducar no caminho do bem.

É preciso passar de um sistema excludente, elitista e descartável para uma sociedade fraterna, responsável e inclusiva.

Os rostos da violência

Quando se fala de vítimas da violência, não se pode ficar o tempo todo generalizando. Por trás de cada vítima há um rosto, uma pessoa com vontade, liberdade e capacidade para amar, que teve os seus direitos arrancados pela violência. O convite que a Igreja faz, por meio da Campanha da Fraternidade, não visa à superação de um quadro estatístico cheio de dados e números; ela convida à superação na vida e na história de cada homem e mulher subtraídos de seus direitos.

A Igreja não quer apenas apontar dados e estatísticas, mas convida cada um a contemplar os rostos e a história de tantos irmãos e irmãs:

– rosto dos que sofrem violência racial;

– rosto dos que sofrem violência de gênero. Muitas mulheres continuam sendo vítimas da cultura patriarcal e machista, de salários reduzidos, da violência doméstica, de abuso sexual. Cabe lembrar aqui os irmãos e irmãs da comunidade LGBT, vítimas constantes do preconceito e da violência física;

– rosto dos que sofrem violência doméstica, tendo como principais vítimas as mulheres, as crianças e os idosos;

– rosto das vítimas da exploração sexual e do tráfico humano, sobretudo mulheres e crianças;

– rosto dos trabalhadores rurais e dos povos tradicionais. Aumenta o conflito no campo; os trabalhadores rurais, na luta por seus direitos, muitas vezes são assassinados e expulsos da terra. Os povos tradicionais, que estão na terra desde muito antes da chegada dos colonizadores, são tratados com estranhamento e com o endurecimento das leis de criação de reservas;

– rosto das vítimas do narcotráfico. Cada vez mais cresce o número de pessoas que perdem a vida por causa do narcotráfico. A vida é tirada não só pelo consumo dos entorpecentes, mas também pela violência do crime organizado, gerador de um sistema injusto, que prende crianças e jovens consumidores de drogas, mas raramente (ou nunca) pune exemplarmente os grandes traficantes;

– rosto das vítimas do trânsito. As pessoas, tendo o direito de ir e vir, precisam fazê-lo com segurança. Muitas são as vítimas do trânsito, seja pela irresponsabilidade pessoal dos que ingerem álcool ou não respeitam a sinalização, seja pela ausência dos poderes públicos na manutenção das rodovias.

Com esse elenco de rostos da violência, não se fecha o assunto; ao contrário, com acurada reflexão, é possível perceber uma infinidade de pessoas e situações marcadas por essa realidade. Não basta identificar a violência como cultura e como sistema e distinguir suas vítimas; é preciso iluminar essa realidade com o evangelho.

2.Iluminar a realidade 

A palavra de Deus e a superaçãoda violência

A Sagrada Escritura foi sendo inspirada ao longo dos séculos. É uma história de salvação que passa pelas marcas da história da humanidade, constituída de momentos de fraternidade, de paz, de luta pela justiça, mas também marcada pelo pecado da divisão, da guerra, do abuso do poder. 

Muitas vezes os sentimentos humanos são atribuídos a Deus, apresentando-o como vingativo, violento e cheio de ira. Muitos textos da Sagrada Escritura carregam essa marca da projeção da violência humana em Deus, caracterizando-o como um Deus justiceiro. 

A Revelação atingiu sua plenitude no mistério da encarnação de Jesus Cristo, que é por excelência uma pessoa de paz, de não violência, de prática da fraternidade. 

Jesus revela que Deus é Pai (Abbá) e os homens e as mulheres são irmãos e irmãs. A fraternidade anunciada por Jesus é composta de um caminho de misericórdia, que pede e oferece perdão; um caminho em que se assume a postura do samaritano, o qual se inclina sobre a dor do que sofreu violência, dele cuida e com ele supera o sofrimento. 

Do Novo Testamento deriva uma consequência prática: quem conhece Jesus promove a paz, jamais estimula a violência. Quem, em Cristo, sabe que foi agraciado com a paz deve se tornar um reconciliador, um construtor de paz. 

Como lembra um antigo escrito cristão: “Deus enviou-o (seu Filho) para nos salvar, para persuadir, e não para violentar, pois em Deus não há violência” (Carta a Diogneto, VII, 4; cf. Texto-base da CF-2018). 

O magistério da Igreja e a superação da violência

A Igreja guarda o tesouro deixado por seu fundador, cabendo-lhe a missão do anúncio do evangelho da paz e da superação da violência. 

Quando estudamos a história da Igreja, percebemos que nem sempre ela foi fiel à sua missão; muitas vezes escolheu o caminho do não diálogo, chegando a extremos escandalosos. 

A Igreja não esconde os erros da sua história, mas aprende com eles e busca cada dia refazer a escolha do seguimento de Jesus. Ela segue o seu Mestre – que não agiu com violência, mas morreu de morte violenta – e, guiada pela sua presença ressuscitada e pelo seu Espírito, por meio da comunhão e da missão, busca oferecer a todos os povos um caminho para vencer a violência. 

Poder-se-ia aqui fazer memória de inúmeros homens e mulheres que, ao longo dos séculos, deram testemunho de superação da violência. Contudo, esta reflexão se centrará na primavera da Igreja no século XX, o Concílio Ecumênico Vaticano II e os papas contemporâneos. 

Em sua reflexão sobre a comunidade humana internacional, a constituição pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje Gaudium et Spes indica como elementos que se deve ter presentes para uma convivência pacífica e para o progresso da paz: a índole comunitária da vocação humana; a interdependência da pessoa humana e da sociedade humana; a promoção do bem comum; o respeito pela pessoa humana; o respeito e amor pelos adversários; a igualdade essencial entre todas as pessoas; a superação da ética individualista; a responsabilidade e a participação social; a solidariedade humana (n. 24-32). 

São João XXIII, na encíclica Pacem in Terris, afirma que, em nosso tempo, não é racional que a guerra seja usada como instrumento da justiça (cf. n. 67). Ele, que viveu de perto os horrores da guerra, cita Pio XII: “Com a paz, nada se perde. Tudo, com a guerra, pode ser perdido” (n. 62). 

O Beato Paulo VI, em sua memorável Populorum Progressio, reafirma a completa exclusão da violência do ideal de sociedade coerente com a dignidade humana. São João Paulo II, na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2002, recorda que “não há paz sem justiça, nem justiça sem perdão”.

Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2007, Bento XVI recorda que a raiz da ausência de paz está localizada no contexto da desigualdade social: “Na raiz de não poucas tensões que ameaçam a paz, estão certamente as inúmeras injustas desigualdades ainda tragicamente presentes no mundo. De entre elas são, por um lado, particularmente insidiosas as desigualdades no acesso a bens essenciais, como a comida, a água, a casa, a saúde; e, por outro lado, as contínuas desigualdades entre homem e mulher no exercício dos direitos humanos fundamentais”. Fica evidente aqui a necessidade de superar a violência superando as desigualdades sociais. 

Em tempos recentes, o papa Francisco recorda que a superação da violência passa pela fraternidade, fundamento e caminho para a paz. Surge espontaneamente a pergunta: Poderão um dia os homens e as mulheres deste mundo corresponder plenamente ao anseio de fraternidade neles gravado por Deus Pai? Conseguirão, meramente com as suas forças, vencer a indiferença, o egoísmo e o ódio e aceitar as legítimas diferenças que caracterizam os irmãos e as irmãs? Parafraseando as palavras do Senhor Jesus, poderemos sintetizar assim a resposta que ele nos dá: dado que há um só Pai, que é Deus, vós sois todos irmãos (cf. Mt 23,8-9). A raiz da fraternidade está contida na paternidade de Deus. Trata-se, por conseguinte, de uma paternidade eficazmente geradora de fraternidade, porque o amor de Deus, quando é acolhido, se transforma no mais admirável agente de transformação da vida e das relações com o outro, abrindo os seres humanos à solidariedade e à partilha ativa.

3.Agir na realidade

A superação da violência não é uma teoria, mas deve ser um caminho de ativa transformação. Essa mudança passa pela pessoa, pela comunidade e pela sociedade. A conversão conjugada dessas três realidades é uma trilha segura para todo desejo de superação. 

Antropologia da mudança

As pessoas não estão inseridas no mundo para viver isoladamente, mas dependem do “outro” para viver. Essa condição, que favorece a prática relacional, desafia a todos – como sujeitos da própria história – a cuidar do outro, ou seja, a fazer parte da história do outro. 

A superação da violência passa pela conversão pessoal. É preciso assumir a espiritualidade do seguimento de Jesus, o modelo de pessoa que escolheu ser não violento. A conversão, compreendida na mudança de atitudes e comportamentos, é a principal proposta que a liturgia quaresmal oferece. 

O mundo muda quando a pessoa muda. Para que isso aconteça, é preciso adotar uma postura correspondente à de Jesus, promovendo a cultura da paz, adotando mídias alternativas, que não tratam a violência com sensacionalismo, participando dos conselhos paritários e de políticas públicas para a superação da violência, valorizando a instituição familiar, vivendo uma vida menos consumista, pedindo e oferecendo perdão, adotando a cultura da empatia. E recordando-se sempre de que o outro não é apenas o outro: ele é irmão. 

Comunidades comprometidas

Cabe aqui fazer uma salutar memória da caminhada pastoral da Igreja no Brasil, a qual, ao longo dos anos, motivada pelo espírito da profecia e da luta pela fraternidade, por meio de suas pastorais sociais, tem dado passos gigantescos na superação da violência. 

As Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 2015-2019 (DGAE) recordam: com as atitudes de alteridade e gratuidade, expressões do amor, os discípulos missionários promovem a justiça, a paz, a reconciliação e a fraternidade. Desse modo, oferecem à sociedade atual o testemunho do perdão e da reconciliação (Lc 23,34), que devem ser incessantemente manifestados e transmitidos (Mt 18,21-22) em um contexto de crescente violência. O caráter radical do amor de Deus atinge sua extrema manifestação no amor aos inimigos. A reconciliação supera toda divisão que nos afasta de Deus e nos separa uns dos outros (DGAE 12). 

– Destaca-se o trabalho da Pastoral da Mulher Marginalizada como uma luz para o enfrentamento e a superação da violência contra a mulher.

– Outras experiências de superação e, consequentemente, de humanização dos processos sociais podem ser observadas na Pastoral da Saúde, da Pessoa Idosa, da Pessoa com Deficiência, da Criança e da Sobriedade, em que o “carisma” do cuidado se faz presente.

– O cuidado e a justiça iluminam os trabalhos da Pastoral Carcerária, Indigenista, do Menor, da Mulher Marginalizada, da Terra e o Grito dos Excluídos, em que os embates por políticas públicas de prevenção e superação da violência são por elas assumidos.

– Nas CEBs, na Pastoral Operária e no laicato, é possível compreender a missão de ser sal e luz no mundo.

– Outro trabalho de grande significado é aquele realizado com os usuários de álcool e drogas nos centros de recuperação, como a Associação Esperança e Vida e a Fazenda da Esperança, ou por pessoas de boa vontade que fazem de suas aptidões profissionais uma missão, acrescentando a “fé” e o “cuidado” no seu agir em relação ao outro. 

Por fim, considerando a proposta da Pastoral do Menor, é possível recordar que ninguém nasce infrator. Cabe a todos a missão de ir ao encontro do “outro”. Esse “outro” é o mesmo que o Evangelho de Mateus nos apresenta: “Estive preso e foste me visitar”. 

No decorrer da história, várias iniciativas sociais da Igreja foram sendo assumidas pela sociedade e se tornaram políticas públicas. Portanto, o olhar social da Igreja exigiu posicionamento do Estado em relação ao sofrimento humano por ele negligenciado. 

Sociedade: a mudança de paradigma

Pensar a superação da violência no interior do sistema capitalista, que mantém sua centralidade no lucro econômico, e não no ser humano, exige grande esforço na identificação e compreensão das iniciativas que sinalizam possibilidades de enfrentamento e superação da violência. Essas iniciativas, pensadas e desenvolvidas em harmonia com a manutenção desse sistema, no qual o ser humano é apenas um objeto para o consumo, tornam-se “paliativos” para a cultura da não violência (cf. Texto-base da CF-2018). 

Portanto, enquanto uma mudança de paradigmas não acontece, é preciso voltar-se para algumas iniciativas que favorecem a construção de uma cultura da paz, mediante a consolidação de políticas públicas e a participação de conselhos paritários de direitos, para o enfrentamento da violência que se desenvolve nos âmbitos de sua abrangência, como é o caso da violência doméstica na sociedade brasileira. 

Urge uma reação cidadã, com incidências transformadoras em vários níveis. Só assim será fortalecida a cultura da liberdade e da autonomia, para mitigar a violência e o desrespeito à dignidade. 

Sofre-se pela falta de lideranças com estatura, em diferentes níveis. Encontra-se, com maior facilidade, quem levanta a voz para a reclamação e a lamentação, ou mesmo para o vandalismo. Há carência de pessoas que se dediquem a uma atuação mais criativa, corajosamente inovadora e cidadã, especialmente no âmbito governamental, primeiro responsável pelo bem comum. Os descompassos produzidos por tantos desencontros e equívocos nas escolhas das prioridades sociais – por falta de competência humanística e de ajustada visão antropológica de muitos profissionais da política –, ao lado da sede mesquinha de dinheiro, resultam na incapacidade de gerar redes de solidariedade. 

Conclusão

A superação da violência começa pelo respeito à dignidade da pessoa humana, defendendo e promovendo a dignidade da vida humana em todas as etapas da existência, desde a fecundação até a morte natural, tratando o ser humano como fim, e não como meio. A proposta é a superação da violência. Para concluir, bastam as palavras do papa Francisco no encontro com os presidentes Abbas (Palestina) e Peres (Israel) no ano de 2014: “Ouvimos um chamado e devemos responder: o chamado a romper a espiral do ódio e da violência, a rompê-la com uma única palavra: ‘irmão’. Mas, para dizer essa palavra, devemos todos levantar os olhos ao céu e reconhecer-nos filhos de um único Pai”. 

Luis Fernando da Silva

Pe. Luis Fernando da Silva, presbítero da Diocese de São João da Boa Vista/SP, secretário-executivo da Campanha da Fraternidade, membro do Fundo Nacional de Solidariedade e diretor editorial das Edições CNBB.

In: Vida Pastoral – janeiro/fevereiro 2018