Ao perguntar o que significa ser cristão em 2012, procederei pelo método comprovado do ver, julgar e agir, que infelizmente está sendo esquecido em nosso trabalhos pastorais.

 

VER

Olhando em redor, percebe-se não apenas uma gritante pobreza material e um ainda mais gritante contraste com a riqueza de uns poucos. Percebe-se, sobretudo, uma grande miséria interior. Miséria, digo, não pobreza, porque no discurso cristão “pobre” soa quase nobre. A miséria de que quero falar é a que se revela nas frases desconexas que os alunos escrevem na redação para o vestibular, na incapacidade de ler e escrever quando chegam ao fim do segundo grau, na inutilidade da escola para encaminhar-se na vida, na superficialidade das relações amorosas, na escravidão em relação à publicidade e o consumo. Depois que a indústria da moda começou a colocar a marca (grife!) por fora, muitas pessoas também parecem casacos virados para fora. A interioridade se foi... ou vem da droga!

 

Por outro lado, muitos jovens procuram algo religioso, mas não assumem. Nos mosteiros entram noviças, mas vão embora: dificuldade em comprometer-se para a vida. O mesmo se diga dos casais. Os/as jovens percebem o mal-estar, mas não encontram um caminho seguro, uma estrada transitável, uma vereda adentrável no grande sertão dessa vida que é chamada pós-moderna, embora às vezes nem atinja o limiar da civilização.

 

Aliás, não só os jovens estão nessa. Multidões acorrem às “tendas de milagres”, aos “templos da fé”, que funcionam na base de potentes alto-falantes. Parece que a salvação já não vem do alto, mas de quem grita mais alto. Talvez por analogia dos bailes onde o som se substitui à música, a frenesi muscular à beleza da dança, os quadris à quadrilha... Não é de admirar que os políticos troquem a palavra dada pela gorjeta recebida. As absolvições políticas são da mesma natureza que os milagres encomendados e as curas combinadas. E os descarregos e apostas com Deus têm a mesma lógica que a loteca e o jogo do bicho.

 

Miséria interior, sertão ressequido, enquanto o grande rio agoniza e ainda lhe querem tirar as águas.

Até aqui este lamento mineiro. Mas onde quero chegar?

 

JULGAR

Quero confrontar o que vemos com o que entendo por ser cristão. “Ser cristão” é o título de um pequeno livro que destinei  ao grande público (pela Editora Vozes). Aí explico que Jesus não foi o Messias esperado, o “salvador da Pátria”, mas o Messias inesperado, o “filho do homem” que é também o Filho de Deus, porque se dedicou ao amor que Deus tem por todos os seus filhos. Ele até deu sua vida por eles quando o poder deste mundo não aguentava mais sua palavra. Mas Deus, com seu Espírito que é Sopro de Vida, o fez ressurgir e o mostrou vivo aos que nele tinham posto sua fé e esperança. Pois ele era “o Justo”: era ele quem tinha razão, não “o mundo” que o rejeitou. Em cada palavra do Sermão da Montanha, que muitas vezes nos parece exagerado e meio louco, percebemos que, no fundo, ele tem razão.  Lembro o professor de teologia protestante na Alemanha durante a Segundo Guerra Mundial, Dietrich Bonhoeffer. Ele queria cristãos que levassem a sério sua profissão de fé: a “Igreja confessante”. Como a Jesus, isso lhe custou a vida. Foi morto pelos názis, em 1945, por ter participado de um atentado contra Hitler. Jesus é o “Justo”, a Luz que ilumina as trevas de nossa barbárie e suscita o conhecimento do mistério divino por meio de palavras singelas, extraídas da cultura de seu povo. Luz transmitida por aqueles que se deixam acender pelo Pai e se tornam luz do mundo, sal que dá sabor e força à sociedade humana.

 

Esta luz, como diz João 3,19-21, “julga”: condena tudo o que fica aquém da vocação divina do ser humano. Condena a condenação à ignorância que pesa sobre as massas populares, porque a educação não é levada a sério. Condena a economia que impede o pobre de levantar a cabeça e alcançar igualdade e dignidade, se não material, pelo menos humana e moral. Condena as estruturas que ligam o poder ao poder em vez de ligá-lo à justiça. Condena também a irresponsabilidade pessoal de tantos que “quereriam”, mas não querem realmente. Que constróem sobre a areia, em vez de edificar sobre a rocha firme. Que empreendem sem sentar e ponderar se podem arcar com o custo.

 

Mas essa luz que julga dá razão aos que preferem a justiça e a solidariedade à riqueza pessoal. Aos que empenham sua vida, vivendo ou morrendo, para dar vida verdadeira a seus irmãos e até aos inimigos. Aos que se tornam pobres com os pobres, para a muitos tornar ricos. Os “filhos da luz”.

 

AGIR

Diante disso, que fazer? E pensar, pois também pensar é fazer, é a primeira ação propriamente humana, pois somos animais racionais. Proponho que façamos uma séria reflexão, para ver se, do ponto de vista da fé em Jesus, os fundamentos foram bem colocados. Será que estamos baseando nossa compreensão e atuação na luz de Cristo? Será possível ser libertador sem ser libertado, pessoalmente, dos desejos de poder e aparência? Será que não nos deixamos seduzir pelo poder a todo custo, pela ação imediata, pela tentação das “melhoras visíveis”, mas talvez inconsistentes, enquanto negligenciamos melhoras invisíveis como são a educação e a cultura? Mais a fundo: será que acreditamos realmente naquilo que o olho não vê e o ouvido não ouve: o Espírito, que ressuscitou Jesus dentre os mortos e nos faz esperar contra toda esperança?

 

A vida prática do cristão é guiada pela opção consciente e pessoal por Jesus, que chamamos, num sentido totalmente novo, Cristo ou Messias. Ora, tenhamos claro que o Brasil não é um país cristão, ainda que seja o país com o maior número de católicos do mundo. Pois essa grande porcentagem (que rapidamente decresce) não significa que o espírito de Cristo oriente as práticas de nossa sociedade. Aliás, creio que fora da Jerusalém celeste dificilmente se encontrará uma sociedade cristã; em nível de sociedade talvez se possa falar de “inspiração cristã”, mas essa facilmente degenera, se não for sustentada por uma fé pessoalmente assumida. Cristãs são as pessoas que fazem do Jesus do Sermão da Montanha e da Montanha da Cruz o seu Cristo, seu Ungido-de-Deus, ungido não com o perfume dos reis ou o bálsamo dos sumos sacerdotes, mas com o Espírito de Deus. Tais pessoas são o sal da terra, luz do mundo, fermento na massa.

 

Daí minha proposta. Comecemos pela “família de Deus”, a comunidade da fé cristã. Insistir num “ser cristão” assumido e confesso, sustentado por uma verdadeira iniciação pessoal, que deve acontecer em algum momento da vida. Chega de religiosidade confusa! A identidade cristã é a condição para dialogar sinceramente com os que procuram por outros caminhos a luz da vida.

 

Ora, para manter firme a consciência de nossa opção e mensagem, é preciso alimentá-la permanentemente. A celebração dominical é o contínuo volta à fonte, na palavra bíblica e no memorial de Cristo que pelo dom de sua vida confirma sua palavra de amor. A celebração dominical mantém viva nossa fé cristã confessa. A Eucaristia é a consumação da iniciação cristã; é lá que se vive o sentido pleno da fé assumida. Ora, muitos dos meus amigos dizem que não têm onde ir à missa. Será? Às vezes parece-me que cada um quer a missa a seu jeito, ou com o grupo de sua preferência. Será isso o espírito do evangelho? A celebração da Palavra e da Eucaristia não é coisa subjetiva, é “obra da comunidade de fé” (este é o sentido da palavra “liturgia”). Mas a comunidade de fé não é somente a paróquia de trinta mil fiéis. O aprofundamento cristão necessita de comunidades menores, integradas no nosso dia-a-dia, na família, na rua. Cada grupo de cristãos sociologicamente próximos (pela vizinhança, pelo parentesco, pelo contato profissional ou cultural...) deveria ter seu espaço de oração, fosse apenas uma garagem ou pátio ocasionalmente arrumado para rezar um salmo, o divino ofício popular, o tradicional terço (de preferência meditado, não metralhado...). A paróquia seria uma comunidade de comunidades. Em todos os quarteirões, em todos os ambientes onde vivem os católicos, deveria haver espaços de encontro e de aprofundamento da fé. Os cristãos de outras denominações nos dão o exemplo nesse sentido.

 

E para isso não se precisa sempre de padre. Nossa gente idolatra o padre, quer padre para tudo. Parece uma figura mágica. No Brasil, há um padre para cada 12.000 católicos. Antes de “catar” um padre é bom fazer um pequeno cálculo: se esses 12.000 quisessem todos catar um padre para seus fins particulares, como ficaria?! O padre não é uma pessoa de destaque para enfeitar eventos. Ele é apenas um fiel no meio dos outros, em certo sentido um “leigo”, pois este termo significa: membro do povo de Deus. Porém, é ordenado para ser colaborador do bispo, para dedicar-se ao serviço da fé de seus irmãos – serviço que não consiste apenas em realizar sacramentos e cerimônias, mas em orientar a comunidade, falar com as pessoas, visitar os fiéis, estudar, orientar a catequese, preparar bem a homilia (para poder dizer muito coisa em pouco tempo)... O que os outros fiéis podem fazer por conta própria – rezar, meditar, ler a Bíblia, organizar a solidariedade –, que o façam, em sintonia com o bispo que preside à igreja local, dentro do enorme campo de liberdade que lhes está aberto. É este seu dever de cristão, pois cada evangelizado é evangelizador (Papa Paulo VI).

 

Os padres estão sendo ocupados de maneira irracional. Veja os batismos, os casamentos, as encomenda e os enterros. Não se precisa de padre para batizar, para assistir casamento. Há diáconos ou, se for o caso, ministros extraordinários. Muitos padres passam os melhores momentos pastorais esperando casais atrasados para cerimônias pomposas, em que o compromisso de amor e fidelidade é última coisa que passa pela cabeça! Casamento deveria ser celebrado em celebração comunitária, com um rito simples e, se preciso, de graça – a festa social cabe alhures. Todas essas coisas muitas vezes são “atendidas” melhor por um ministro amigo das pessoas do que por um padre “catado” não sei onde. Muitos católicos ainda não se libertaram do clericalismo e sacramentalismo mágico do passado; pelo contrário, parece que está voltando com toda a força...

 

Isso quanto à família da fé. E fora dela, na sociedade civil? No Brasil, atualmente, os cristãos têm uma missão especial em relação à educação: ajudar as pessoas a estruturar sua personalidade e sua vida, preservar as crianças do caos, do “tudo pode, tudo vale”; oferecer conteúdos, pôr limites e explicar por quê. Então, os projetos sociais, a luta contra a fome, a promoção da saúde encontrarão chão firme em vez de ser um balde sem fundo. Educação em nível institucional e, simultaneamente, também em nível pessoal, pois como poderia alguém que não é capaz de desligar a TV ensinar atitudes conscientes a seus filhos?

 

Daí: atenção à família e aos demais elementos básicos da contextura social. Ter uma família sadia é o sonho de qualquer um, não só da classe média – e quanto à saúde das famílias de classe média, há de se questionar até que ponto são sadias.

 

Outra urgência: agentes competentes, honestos e dedicados, para atuar na organização da sociedade, ou seja, na Política com grande P. Mandatários políticos qualificados. O cristão não pode ficar alheio à vida política e, se for o caso, deve até arriscar sua pele assumindo um mandato. E todos têm de escolher aqueles que merecem a confiança, para o bem da sociedade toda – em primeiro lugar, das vítimas da desigualdade.

 

Conclusão. Como cristãos temos de aprofundar nossa ligação com Jesus, o Cristo. Não apenas no sentido de uma vaga tradição cristã, mas no sentido de ter o próprio Cristo como referência primeira da nossa vida. Tê-lo sempre diante dos olhos como presença permanente e critério de nossas escolhas na prática da vida. Então veremos a vida à luz de Cristo e agiremos, em relação a nós mesmos, à comunidade cristã e ao mundo, como “filhos da luz”, com a clarividência e adequação que a luz de Cristo e seu espírito nos proporcionam.

 

 

Pe. Johan Konings SJ

Doutor em Sagrada Escritura e professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE

(texto originalmente publicado no Jornal de Opinião maio/2012)

15.06.2012