Podemos compreender a ‘virada’ realizada nas celebrações da Igreja a partir do Concílio Vaticano 2º , recorrendo ao número 5 da Sacrosanctum Concilium, constituição conciliar sobre a sagrada liturgia, que nos oferece elementos importantes para a correta interpretação.

Comecemos pela relação que o texto conciliar estabelece entre a liturgia e a revelação: “havendo outrora falado muitas vezes e de muitos modos aos pais pelos profetas (Hebreus 1,11), quando veio a plenitude dos tempos, mandou seu Filho (…)”. A raiz da liturgia é a vontade salvadora de Deus (cf. 1Timóteo 2,4) que cuida de sua criação com grande ternura e põe-se em diálogo com ela, elevando-a à dignidade de interlocutora. Os homens e mulheres de todos os tempos e lugares se tornam símbolos da criação que compartilham a palavra com seu Criador.

Esta apreciação da liturgia como lugar e ocasião para se ocupar da Palavra de Deus aparece com certa frequência na teologia dos Santos Padres. Atanásio de Alexandria, por exemplo, no século 4º falava que por ocasião da páscoa os fiéis “comem a Palavra do Pai”. Orígenes, um século antes, considera o culto (ritual e existencial) como permanência na Palavra de Deus. Em sua Encíclica Verbum Domini, Bento XVI insiste na compreensão da liturgia como “o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde. Cada ação litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura” (VD 52).A Dei Verbum, constituição dogmática sobre a revelação divina, igualmente emanada do Concílio Vaticano 2º, nos diz que “Deus invisível, no seu imenso amor, fala aos homens como a amigos e conversa com eles para convidar e admitir a participarem da sua comunhão. A celebração cristã, por sua vez, será lugar privilegiado para continuar este diálogo querido e iniciado por Deus. Neste sentido, se poderá dizer na perspectiva do teólogo-liturgista Salvatore Marsili que “a liturgia é um momento na história da salvação e, precisamente, o último, por meio do qual se estende a salvação realizada por Cristo no âmbito da comunidade humana em todo lugar e em todo tempo” (Flores: 2006, p. 246).

Com razão, o prefácio 9º do tempo comum afirma o domingo como momento para dar graças e bendizer a Deus, dia em que a sua família se reúne para escutar a Palavra de Deus, recordando a Páscoa de Cristo Jesus.

A recuperação da liturgia da Palavra de Deus, reconhecendo, como nas origens, a sua sacramentalidade, isto é o seu status de celebração e não apenas de anúncio e/ou instrução, como se passou a conceber no período moderno, foi um grande ganho trazido pelo Concílio Vaticano 2º. É preciso, então, verificar se as nossas assembleias experimentam a si mesmas como ‘interlocutoras eclesiais’ no diálogo com o Pai, que a liturgia por Cristo, com Cristo e em Cristo realiza.

Padre Danilo Lima
Liturgista

In: Opinião e notícias 30.08.2019