Há pouco mais de um século Dom Lambert Beauduinse ressentia por que a Liturgia não era mais fonte da existência cristã. Sobretudo porque os ritos litúrgicos não eram mais compreendidos, e consequentemente já não eram vivos para a Igreja. É certo aquilo que Francisco diz: vitalidade da Liturgia deriva de Cristo, de sua presença. Entretanto, esta presença precisa ser captada, reconhecida pelo sujeito eclesial. Assim, sobre a língua com a qual rezar, já Orígenes se posicionava: cada povo fala a Deus segundo o modo de falar que lhe é próprio: os gregos em grego, os romanos em latim… etc.
Mas também porque os cristãos e cristãs – por necessidade, talvez – tenham substituído as Liturgia pelo mundo devocional. Evidentemente que as coisas estão conectadas. Um programa ritual que não mais oportuniza a participação efetiva dos fiéis naquele mistério do qual é mediação, por consequência, será tomado como algo completamente secundário. Daí para a frente, o povo de Deus privado do exercício ritual responsável, isto é, como ocasião para experimentar a salvação oferecida em Jesus, mediada por sua humanidade que é prolongada nos ritos sacramentais (cf. São Leão Magno) vai constituindo uma espiritualidade cada vez mais distante do culto.
A maneira como o mundo das ciências no século XIX tratou o rito também não ajudou muito. Antes, por sua influência (natural) no âmbito da fé cristã, levou-nos a uma ‘racionalização’ das praticas religiosas. A fé cristã tornou-se um conteúdo mental, uma mensagem descarnada. O resultado é facilmente perceptível e recentemente denunciado pelo Papa Francisco em Gaudete et Exsultate, uma religião com forte apelo neognóstico.
Tudo isso conduziu a um dualismo entre fé e vida amplamente denunciado pela Teologia da Libertação que, tampouco conseguiu tratar a questão de maneira profunda e adequada. Ainda hoje, o rito é visto de modo enviesado. Diz-se que é importante, mas não tanto quanto pareceria. A bíblia é importante, a ética é importante, a doutrina é importante, o direito (canônico) é importante, a catequese é importante. Os ritos, também. Mas, com cautela.
Esta maneira de compreender a ritualidade está muitíssimo aquém daquilo que o Concilio propõe. O primeiro documento do Vaticano II, que desejou reenraizar a fé na experiência salvífica de Jesus de Nazaré, trata da Liturgia e seu argumento radicado na Revelação. A Liturgia é a maneira mais importante – embora não a única – de tornar contemporânea a narrativa sobre o Verbo feito carne. E isso por uma razão muito simples, a Liturgia não é uma ideia, um conceito, um discurso, mas a carne – nossa humanidade – tomada pelo Verbo de Deus. Não há ética, não há doutrina, não há direito, não há catequese sem uma realidade cristã, sem os ritos. Na verdade, não haveria nem Bíblia e nem teologia. Porque? Ora, os ritos são fundamentais para a experiência cristã de Deus que basicamente tem sua novidade na encarnação.
O Ritual de Bênçãos em sua Introdução recorda que Cristo é a bênção máxima de Deus para nós (Maxima Patris benedictio). Chegada a plenitude dos tempos, tendo muito amado o mundo, enviou-nos Deus o seu Filho, Verbo feito carne e ungido pelo Espírito, enviado para evangelizar os pobres. O cume deste caminho pelo qual Deus faz história e se torna, Ele mesmo, história ao encarnar-se é a cruz e ressurreição. Esse percurso salvífico de Cristo define a natureza da Igreja. Ela surge como comunidade de discípulos e discípulas com uma tarefa apostólica concreta: prolongar até o fim do mundo e dos tempos a obra redentora de Jesus, ou seja sua liturgia. As celebrações serão marcos neste caminho, de modo que os fiéis sigam identificando-se com Ele [Jesus].
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)