Nestes tempos em que se procuram novos messias, “a la zelotes”, sobretudo, e um (ou mais) bodes expiatórios urge retomarmos as discussões acerca do “nosso Messias”, como diziam os padres da Igreja. Afinal, pautados pelas demandas, sejam elas sóciopolíticas, sejam puramente subjetivas, corremos o sério de risco de construir uma imagem de Jesus pouquíssimo fiel ao que as Escritura e a Tradição nos transmitem.
Hoje, é fácil escrever e postar o que se deseja. Tornamo-nos consumidores ávidos de novidades, fofocas, pseudoanálises, mensagens de autoajuda, etc. Passamos para frente aquilo que consideramos importante ou minimamente significativo. Dentre estes conteúdos – em não poucos casos – estão imagens de Deus, de Jesus, da Igreja. Elas escondem e revelam uma visão de mundo e de pessoa que, nem sempre, são óbvias. Analisando mais a fundo, perceberemos que em grande parte correspondem pouco àquilo que o Evangelho guarda e a Igreja recebeu a incumbência de apregoar.
Uma das maneiras mais importantes de fazer circular “imagens” de Jesus é a Liturgia. Importante porque sua dinâmica e linguagem estão situadas no campo simbólico. Sua narrativa verbal e gestual alcançam as pessoas de uma forma muito própria, indisponível a outros meios de transmissão da fé, como a catequese, as pregações não litúrgicas, bibliografias e até mesmo o que se tem tornado última moda ultimamente: as pregações em contexto de show ou espetáculo religioso.
Importante também porque a narrativa simbólica que a Liturgia faz acerca de Jesus tem – explicitamente – sua raiz, sobretudo, nos Evangelhos e na Tradição mais genuína da Igreja, registrada, conservada e transmitida em suas orações e cantos. Há, portanto, uma objetividade da fé que é resguardada pelas celebrações da Igreja. Como dissera Paulo, transmitimos aquilo que do Senhor recebemos.1 O detalhe está em perceber que os ritos não se fundam sobre a “ressonância emotiva” próprias das subjetividades, mas numa prescrição que lhe confere objetividade e autenticidade.2
Essa característica da Liturgia faz dela excelente instrumento evangelizador. E esse potencial das celebrações tem sua fonte e poder no fato de não somente fazer circular conteúdos religiosos, teológicos e éticos, mas, sobretudo, por sua capacidade de gerar presença. A evangelização, em última análise é isso: dotar o mundo com uma presença que alegra. A presença do Verbo de Deus, princípio e fim de tudo; qualificador primordial de todas as realidades criadas. Por Ela tudo se sustêm.
Uma vez que nas celebrações da Igreja quem opera é Cristo, explicitamente,3 a Liturgia ganha, de longe, de todas as outras formas de pregação e anúncios do Evangelho. Nela e por ela, mais do que “falar sobre” Deus e suas coisas, é Ele mesmo quem fala e por sua Palavra, se revela e se dá. Isso é muito diferente da catequese, na qual predomina o discurso sobre o Mistério; ou as pregações-show, nas quais tem destaque a perspectiva subjetiva do “artista-pregador” mais do que a objetividade da fé.
A Liturgia, por sua plasticidade ritual, não se contenta em ilustrar o Mistério. Ela o desvela em nosso corpo, revelando o Filho em nós e inserindo-nos em seu pastoreio. Nesse sentido, a Liturgia não é composta de ideias a serem comunicadas, mas de uma presença a ser percebida, experimentada e expressa. A Liturgia não é, primeiramente, pensamento, é corporeidade. O corpo antecede a mente, na verdade, a forma, como dirá Bonaccorso.4 Na Liturgia, é o jogo estético, isto é, das percepções ancoradas na sensorialidade humana, que determinará o conhecimento de Deus e de nós mesmos.
A Liturgia, portanto, evangeliza à medida que nos insere no mundo de Deus e qualifica a história com a presença sacramental do Cristo morto e ressuscitado. O liturgista Gofredo Boseli diz que isso “significa atestar que a liturgia é, em si mesma, mistagogia, ou seja, é capaz de ser epifania do mistério, de modo que a Liturgia inicia ao Mistério celebrando-o.”5
Celebrar é marcar um lugar e um tempo como significativos, enriquecê-los, diríamos. Lola Mayenco em seu “Algo que celebrar” adverte-nos que o poder das celebrações reside em “criar um marco comum que nos permita apreciar em profundidade a beleza da vida e que, por sua vez, nos faça sentir mais próximos às pessoas que amamos.”6 E o que fazem as liturgias cristãs senão abrir para nós a beleza regeneradora da vida do Filho Amado, Jesus, e tornar-nos próximos dEle e nEle, uns dos outros?! O Catecismo da Igreja Católica fala disso ao citar Ef 3,16-17: “Pela Liturgia, o homem interior é enraizado e fundado no ‘grande amor com o qual o Pai nos amou em seu Filho bem-amado. É a mesma “maravilha de Deus” que é vivida e interiorizada por toda oração, ‘em todo tempo, no Espírito.’”7
Pe. Márcio Pimentel
In: Opinião e Notícias 20.04.2017
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1 Cf. 1Cor 11,23
2 Cf. ZANQUI, Giuliano. In presenza di spirito: rito Cristiano e temp dell’anima. In. VV.AA. Il culto incarnato. Sipiritualità e liturgia. Milano: Glosa, 2011, p. 33.
3 Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium 7.
4 Cf. BONACCORSO, Giorgio. Il culto nello Spirito come culto incarnato. In. VV.AA. Il culto incarnato. Sipiritualità e liturgia. Milano: Glosa, 2011, p. 18-23.
5 BOSELI, Gofredo. O sentido espiritual da Liturgia. Brasília: Edições CNBB, 2014, p. 15.
6 MAYENCO, Lola. Algo que celebrar. Guía sencilla para enriquecer la vida com belas tradiciones. Barcelona: Urano, 2013, p. 18.
7 Catecismo da Igreja Católica n. 1073.