A seta

 

Os cinco primeiros livros da Bíblia (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) são chamados no Novo Testamento, de Lei de Moisés ou simplesmente Moisés. Se assim dizem os Evangelhos, esses livros devem mesmo ter sido escritos por Moisés. Hoje muitos ainda os chamam de livros de Moisés, imaginando que nos quarenta anos de caminhada no deserto, 1200 anos antes de Cristo, sem computador, sem máquina de escrever, sem caneta esferográfica, sem caneta tinteiro, sem pacotes de papel sulfite ou de cadernos, com os recursos que poderia ter no deserto, Moisés mesmo escreveu a grande obra.

 

Verdade? Leia o último capítulo do Quinto Livro de Moisés ou Deuteronômio. Ali se conta a morte e o sepultamento do grande líder. Foi ele mesmo quem escreveu? É evidente que não poderia Moisés contar a própria morte. Seria exigir milagre demais.

 
A meta

 

Os cinco livros fundamentais da constituição do povo hebreu são atribuídos ao principal líder desse povo. Aí a meta.

 

Os “Livros de Moisés”, se a gente calcular desde as mais antigas tradições orais até os últimos retoques de redação, demoraram oitocentos anos ou mais até serem concluídos. Foram escritos em mutirão, com a colaboração de muita gente que viveu e lutou movida pela fé, que descobriu coisas novas, que interpretou e reinterpretou as antigas tradições, que guardou e passou adiante estórias contadas de boca em boca, que juntou as tradições ou escritos esparsos e montou enfim os livros como nós os temos hoje.

 

Algumas tradições vieram de longe e chegam bem perto de Moisés. É o caso do Cântico de Maria que se encontra no capítulo15 do livro do Êxodo, os Mandamentos (capítulo 20) e o Código da Aliança (21-23 do Êxodo). Outras partes são bem mais recentes. É o caso da primeira estória da criação, o primeiro capítulo do livro do Gênesis. É de oitocentos anos depois de Moisés.

 

O Deuteronômio, que conta a morte de Moisés, foi escrito setecentos anos depois dele, já no período do exílio da Babilônia. Não é preciso que tenha sido escrito por ele.

 

Mas quando o Pentateuco coloca toda a sua legislação e todos os seus comentários nos lábios de Moisés, tem razão. Tudo tem realmente a sua raiz em Moisés. Ele iniciou a organização do povo em bases de fé religiosa, para se construir uma sociedade sem opressores e oprimidos, sem privilegiados e escravos, diferente da que havia no Egito.

 

Se hoje o povo vive uma vida infeliz, se perdeu o paraíso que era sua terra, é porque foi infiel à Aliança, afastou-se dos mandamentos dados por Moisés. Esses Mandamentos é que haveriam de trazer a felicidade para o povo. O sonho de voltar à fidelidade a Moisés para recuperar a felicidade perdida é a grande meta, por isso se diz que os cinco livros foram escritos por ele.

 

Moisés é aquele que, em nome de Deus, liderou um grupo de Sem-Terras que fugiu da escravidão a que estavam sujeitos no Egito, que ficou acampado numa região de deserto, buscando a Deus e preparando-se para viver uma sociedade diferente, fundada na igualdade e na solidariedade, não no privilégio e na opressão.

 

Depois de quarenta anos de acampamento, de aprendizado da solidariedade e de experiência de Deus, o grupo conseguiu “invadir” ou ocupar as terras de Canaã. Mas Moisés, o grande líder que começara tudo, morreu antes, não entrou na posse da Terra. Os livros da Bíblia que registram toda essa experiência de caminhada e sonho, de preparação e formação só podem ter Moisés como seu autor.

 

Por que ele não se sentou diante de um computador ou de uma máquina de escrever, não tomou pena e pergaminho para escrever, só por isso, não foi ele quem escreveu toda essa história, deixou toda essa instrução? E dizer que ele escreveu, significa dizer que ele descreveu em detalhes até a própria morte e sepultamento?

 

Ou vale mais olhar para a meta: tudo vem do grande líder que fez a aliança do povo com Deus, de que discutir a seta?

 

 

Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

Tradutor da Bíblia da CNBB, Professor de Sagrada Escritura

15.05.2013