A seta

 

O livro do Deuteronômio nos primeiros 4 versículos do capítulo 24 diz que o marido, encontrando alguma coisa de inconveniente na esposa, deve dar a ela um documento de demissão ou de dispensa (algumas traduções dizem “de repúdio”, um termo técnico, e outras, menos apropriadamente, “de divórcio”) antes de mandá-la embora de sua casa. Tratava-se realmente de repúdio, dispensa ou demissão. Não se tratava de divórcio como temos hoje, porque esse pode ser iniciativa tanto do homem quanto da mulher e depende de decisão da autoridade.

 

Aqui não, é o marido, e só o marido, que pode dar por encerrado o casamento, sem aprovação de quem quer que seja, bastando-lhe apenas colocar um documento nas mãos da mulher. Algo como o patrão que assina a carteira e dispensa a empregada.

 

Se a Bíblia manda fazer assim, por que não se faz mais? Por que os maridos já não têm esse direito de acabar com o casamento à hora que quiserem? Alguma lei da Bíblia não precisa mais ser observada? Isso não pode gerar confusão? Seria o caso de impor condições, limitar essa lei a circunstâncias especiais?

 

A meta

 

Um dia levaram esse problema a Jesus. Está em Marcos 10,2-9. A resposta que ele deu foi muito simples: Não nego, está na Bíblia, faz parte da Lei de Moisés. Mas não é uma lei absoluta e definitiva! Moisés deu esse mandamento por causa da cabeça (coração) dura de vocês. Em seguida recorre a outra passagem da Bíblia: No princípio, na origem, Deus os fez homem e mulher e disse os “ dois serão uma só carne”. Deus uniu, o homem não deve separar.

 

Nesse episódio, Jesus ensina a ler a Bíblia. Nem tudo o que está na Bíblia é lei absoluta e definitiva. É preciso prestar atenção ao contexto, ao restante da conversa, às circunstâncias, para saber se aquilo não é uma seta apenas para aquelas circunstâncias.

 

Uma lei tão machista, que dá ao marido o direito de acabar com o casamento quando bem entender, como se a esposa fosse apenas uma funcionária contratada para o tempo da conveniência do patrão, não pode ser absoluta. Só poderia valer em circunstâncias muito especiais, “a cabeça dura de vocês”, a meta segundo Jesus. A exigência do documento visava proteger a mulher. Está na Bíblia, sim, mas não é esta a vontade de Deus total e absoluta.

 

É preciso ver se na Bíblia não existem outras afirmações, outros princípios. Jesus lembra como mais original o trecho da criação do homem e da mulher e termina dizendo “os dois serão uma só carne”. Aqui a meta é realmente falar do casamento e do casamento como complementaridade entre iguais.


No princípio, então, o homem não tinha esse direito. Isso veio depois, por outros motivos. A vontade de Deus original, do princípio, é que os dois sejam um só. E, se Deus uniu, não cabe ao marido separar. Essa, a lei mais original e primitiva. A outra só servia para impedir que se fizessem coisas piores, como os homens, nos casos de separação, deixarem as mulheres totalmente abandonadas, sem um mínimo de proteção, numa sociedade onde só o homem tinha direitos. Essa a meta.

 

O original, o primitivo, o princípio primeiro é a unidade e estabilidade do casamento. Isso, segundo Jesus, foi feito e estabelecido por Deus já na criação do ser humano, homem e mulher, quando disse: “Os dois serão um só!”. E não pode o desejo momentâneo do marido, que “encontrou na esposa alguma coisa de inconveniente”, desfazer o que Deus fez. O poder do marido, só do marido, sobre o casamento está na Bíblia, sim, mas não é definitivo e não é vontade de Deus. É para momento e circunstância já ultrapassados.

 

A meta é garantir os direitos da mulher e a estabilidade do casamento.

 


Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

Tradutor da Bíblia da CNBB, Professor de Sagrada Escritura

01.05.2013