As setas

 

No capítulo 3 do livro do Gênesis temos, nos versículos 14 e 15, a maldição da serpente. Deus diz, então, que a cobra será o mais amaldiçoado dos animais silvestres e que passará a andar arrastando-se sobre o ventre. Antes dessa maldição cobra tinha pernas? Diz ainda que ela comerá o pó do chão, coisa que não acontece. Depois fala da hostilidade entre a cobra e a humanidade. Não diz que ela ficará muda. Ou será que cobra ainda fala? Antes parece que falava, pois conversou com Eva. Será que tudo isso é verdade?

 

As metas

 

A estória da entrada do pecado no mundo é do tempo de Salomão, o rei poderoso que, escravizando ou deixando em extrema pobreza a grande maioria da população, ajuntou riqueza fabulosa e teve também todas as mulheres que quis.

 

Havia muitas lendas antigas envolvendo serpentes ou cobras. Este réptil, aliás, provoca muita curiosidade, verdadeira atração mesmo, pelo seu mistério. Em religiões antigas chegava a ser representação de divindades. Entre outras, havia a lenda de um semideus, Ghilgamesh, que queria tornar-se imortal para vir a ser deus em definitivo. Conseguiu a planta da imortalidade, mas quando voltava para casa, descuidou-se e a serpente lhe furtou a planta. Ele, então, tornou-se definitivamente mortal.

 

Na narração do livro do Gênesis a serpente é sem dúvida uma criatura de Deus. Sabida, esperta, enganadora com sua língua dupla, mas criatura de Deus. O ser humano está sujeito a tentações. E, quando cai na tentação de colocar a esperteza e o espírito de competição como norma suprema, a ponto de pretender ser igual a Deus, destrói a felicidade, perde o paraíso.

 

A serpente é lembrança de tudo isso. A meta: Semelhante ao medo que ela nos provoca, assim a humanidade deveria temer a tentação de competir até que os mais espertos e mais falsos tornem-se senhores absolutos como Deus. Isso é o que destrói a humanidade e o mundo, acabando com toda possibilidade de vida feliz.

 

Na época não se sabia que a cobra se alimenta de animais menores e faz parte do equilíbrio ecológico, imaginava-se que comia terra. Comer terra, arrastando-se pelo chão, parece ser o que há de mais humilhante. Deus quer que a língua dupla da esperteza e da competição, da vaidade e do orgulho humanos, ande de rastro e comendo poeira. Outra meta.

 

Mas a cobra conversou com Eva? Creio não ser necessário discutir. Por que a serpente tinha de falar? Para destacar a língua dupla. Ela tem a extremidade da língua dividida em duas, por isso também é chamada de o mais esperto dos animais silvestres criados por Deus. Ela representa a fala dos espertos, dos matreiros, que com língua dupla enganam os outros ou soltam o veneno e se escondem.

 

Essa conversa enganadora, porém, nem sempre está fora da pessoa, freqüentemente está dentro. Pode ser a idéia de competir e vencer, de ser o mais esperto, pode ser a voz do próprio orgulho e da própria vaidade. E quem disse que essa serpente não fala mais?

 

Essas coisas, mesmo que falem alto e forte, não devem mesmo andar de rastro e comer poeira?

 

Quais são mais verdadeiras, as setas ou as metas?



Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

É da Diocese de Guaxupé-MG, um dos tradutores da Bíblia da CNBB, Professor de Sagrada Escritura.

15.03.2013