A seta

 

Essa é a primeira “pergunta embaraçosa” que sempre se faz a respeito da Bíblia. É a primeira contradição que, ao contato um pouco mais intenso com a Bíblia, desperta a curiosidade das pessoas. Diz o livro do Gênesis que Adão e Eva tiveram dois filhos, Caim e Abel. Caim matou Abel. Pouco depois diz o Gênesis que Caim se casou, teve filhos e filhas e fundou uma cidade! Como? Com quem se casou, gerou filhos e começou uma cidade? Então é mentira que só havia Adão e Eva e seu filho Caim!

 

A meta

 

A Bíblia não é um livro de história. A verdade da Bíblia não é a verdade histórica. Essas estórias dos 11 primeiros capítulos do livro do Gênesis não se baseiam em tradições de origem histórica, nada têm de histórico a não ser que a humanidade teve um começo e viveu muitas peripécias.

 

Os autores desses capítulos da Bíblia nem mesmo se preocupam em fazer que sua estória seja aceitável, sem incoerências. Assim é que o autor da narrativa sobre Caim e Abel, escrita no tempo do rei Salomão, não se preocupou em dizer onde Caim teria arranjado uma esposa.

 

Qual, então, o significado de Caim se casar, criar filhos e fundar cidades? Qual a meta? 

 

Abel e Caim representam dois mundos, duas tendências que tiveram seu momento de dificuldades e conflitos: O nomadismo e a sedentarização, o acampamento e o assentamento, a pecuária e a lavoura, a agricultura e a indústria, o campo e a cidade.

 

Abel, pastor de ovelhas, representa os nômades do início da civilização, o acampamento, a pecuária, o campo. Cuidar de rebanhos foi uma das primeiras atividades do homem. Nessa primeira fase da civilização não havia casas nem cidades, pois não havia agricultura, muito menos indústria, comércio e serviços. Não havia propriedade de terras nem cercas. Os pastores viviam em barracas e eram nômades, mudando sempre de um lugar para outro, à procura de melhor pastagem para seu gado. Abel representa o povo nômade e pastor.

 

A vida nômade, em barracas ou tendas, lembrava, além do mais, o tempo em que o povo da Bíblia viveu acampado no deserto, antes de invadir as terras de Canaã. Foi a juventude do povo de Deus, o tempo de sua formação, o tempo do seu noivado com Javé, os tempos do primeiro amor, da fidelidade inquebrantável. Abel representa a insegurança e a fidelidade a Deus da vida nômade, nos acampamentos de Israel.

 

Caim já representa a cidade. A agricultura fez o grupo passar a morar no mesmo lugar e construir casas permanentes em vez de tendas ou barracas removíveis. O cultivo da terra fixa as pessoas e lança as bases para a indústria. O som do nome Caim lembra o do martelo batendo na bigorna, o mesmo som produzido pela araponga ou ferreiro. O nome de seus descendentes (Gn 4,17) corresponde à profissão de cada um: Condutor ou pastor, músico, ferreiro. Da descendente mulher de Caim, o fundador de cidade, irmã do industrial (o ferreiro), não se diz qual a profissão, só se diz o nome, Noema, que significa atraente, agradável, prazerosa. Caim foi o pai dos condutores de rebanhos, dos músicos, dos industriais e das prostitutas, o pai da cidade, pai da nova civilização.

 

Quando se escrevem essas estórias, estamos na euforia do progresso trazido pela idade do ferro. O que se vê, porém, é a violência, a brutalidade da cidade, é Lamec, descendente de Caim falando em assassinato e vingança, é a destruição da antiga igualdade, cada qual na sua tenda cuidando de seu rebanho ou debaixo de sua videira e de sua figueira.

 

Javé não se agrada disso. Ele quer a sinceridade, a honestidade, a solidariedade, a fidelidade do tempo quando o povo vivia acampado no deserto. Ele se agrada do sacrifício do pastor e nômade Abel, não do fundador de cidades, Caim.


Interessa saber com quem Caim se casou? Vamos questionar a seta ou vamos olhar para a meta?

 


Pe. José Luiz Gonzaga do Prado

É da Diocese de Guaxupé-MG, um dos tradutores da Bíblia da CNBB, Professor de Sagrada Escritura.

28.03.2013