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“Se uma família se divide contra si mesma, ela não poderá manter-se” (Mc 3,25)

Segundo a tradição bíblica, o que mais nos desumaniza é viver com um “coração fechado” e endurecido, um “coração de pedra”, incapaz de amar e de crer. Quem vive “fechado em si mesmo”, não pode acolher o Espírito de Deus, não pode deixar-se guiar pelo Espírito de Jesus. Uma fronteira invisível o separa do Espírito de Deus que tudo dinamiza e inspira; é impossível sentir a vida como Jesus sentia. 

O ser humano “dividido” é desfalcado, despojado de seu conteúdo humano, espoliado de sua densidade interior, assaltado por dentro. A “divisão”  corrói a interioridade da pessoa e dissolve aquilo que é mais nobre em seu coração. Longe de uma humanidade dinâmica, operante, ousada... o que a pessoa deixa transparecer é uma humanidade neutra, apática, estagnada; é humanidade lenta, demorada, afogada na “normose”, estacionada na repetição dos gestos e dos passos. Ela gira em torno de si mesma e não consegue fazer um salto libertador. Isso tudo leva a pessoa a debilitar-se, provocando a redução da vitali-dade humana em vez de favorecer o crescimento pessoal. 

Num coração petrificado e dividido o Espírito não tem liberdade de atuar; dessa resistência à ação do Espírito brotam as doentias divisões internas. São os dinamismos “dia-bólicos” (aquilo que divide) que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos. Com isso nos blindamos, tornando-nos rígidos, petrificados em nossas posições, crenças, valo-res... e não nos deixamos impactar pelo novo, pelo diferente.

Podemos soltar nossa necessidade de segurança e abandonar-nos totalmente ao Espírito para que possa nos guiar? Como desarticular as forças depredadoras do ego em nós? Como quebrar os ferrolhos de nossas intolerâncias, fanatismos, preconceitos, e estender as mãos para acolher o surpreendente e o novo?

Abrir as portas, quebrar os ferrolhos, abandonar as muralhas que nos protegeram, viver a vida e aceitar o desafio, ensaiar um canto, baixar a guarda e estender as mãos, desatar as asas e mover-se de novo a celebrar a vida e retomar os horizontes...; é isso que significa deixar-se “conduzir pelo Espírito”. 

Em que consiste a gravidade do “pecado contra o Espírito Santo, revelado pelo Evangelho de hoje. Só há um pecado contra o Espírito Santo. Se o Pai é Vida, se o Filho é Verdade, o Espírito Santo é Amor. E o pecado contra o Espírito Santo é o pecado contra o amor. 

O perdão, por sua vez, é crer no amor; o perdão é expressão de amor. E quem não crê no amor, não abre espaço para o perdão, porque simplesmente no crê no perdão. Permanece fechado dentro dos seus muros e não se abre à amplitude da vida. Quem não ama não perdoa e tampouco é perdoado quem não se deixa amar. O problema não está em Deus, pois Ele continua amando a todos. O problema está em nós, pois se não cremos em seu amor, nunca nos sentiremos amados. 

Jesus, desde o seu batismo, foi apresentado como o Filho de Deus, a quem se devia dar ouvido. Ele foi constituído mediador da salvação divina oferecida a toda humanidade. Suas palavras e ações, porém, tinham como princípio dinamizador o Espírito Santo, força de Deus que atuava n’Ele. 

A atitude de seus parentes, que o acusavam de louco ao verem as multidões acorrerem a Ele, e a interpretação dos mestres da Lei que viam  nele o poder de Belzebu, chocava-se com a realidade da ação divina em Jesus. Isso significava negar que o Espírito Santo agia através de Jesus e atribuia ao demônio o que pertencia ao Espírito de Deus. Eis uma autêntica blasfêmia! 

As acusações contundentes levantadas contra Jesus manifestam um fechamento à ação do Espírito. Assim como Jesus agia pela força do Espírito, do mesmo modo só quem se deixa iluminar pelo Espírito pode agir como Jesus. Quem se fecha ao Espírito, tornava-se incapaz de discernir a manifestação da misericórdia de Deus, em Jesus. Fechar-se para Jesus, portanto, significa fechar-se para Deus e, por conseguinte, tornar-se indigno de perdão. 

Viver humanamente consistirá, então, em deixar o Espírito circular livremente por todos os cômodos de nossa morada interior, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. Precisamos nos abrir para uma verdade maior quanto à nossa humanidade, ou seja, que todos os nossos recantos merecem serem visitados, olhados, ouvidos e abraçados; que cada aspecto de nossa vida contém uma dádiva maior do que podemos enxergar e cada sentimento merece uma expressão saudável. 

O Espírito nos faz fortes em nossa fragilidade e nos faz amadurecer quanto mais nos humanizamos. Seu modo de proteger-nos é abrindo-nos; seu modo de defender-nos é desarmando-nos. 

Um dos aspectos mais empolgantes do ser humano é o fato de ter reservas inspiradoras, úteis e podero-sas que estão adormecidas, ansiando para sair da sombra e ser integradas ao todo da pessoa. Há uma imensa variedade de sentimentos maravilhosos esperando por uma oportunidade de se deslocarem no corpo, trazendo-nos novas sensações e novos níveis de felicidade, alegria e prazer. Precisamos nos desa-fiar a aceitar todas as facetas de nossa humanidade; do contrário, os personagens que foram expulsos do palco, agora reprimidos, se tornarão os orquestradores silenciosos de nossa vida secreta. 

É preciso superar a “divisão diabólica” do nosso coração, para recuperar a densidade humana interna. Para isso, ele precisa “re-ordenar-se”, repensar a interioridade perdida, reconquistar a autodeterminação. Para viver um processo de humanização profundíssimo, é preciso despertar, pacificar-se, reencontrando, na própria história, pontos de referência fundamentais que vão situá-lo, corretamente, na condição de filhos e filhas de Deus. 

É indispensável “unificar-nos” por dentro e descobrir que, sob a ação do Espírito, podemos nos inventar a cada dia, conduzindo conscientemente a vida em direção à plenitude e não arrastá-la pelo chão. Pessoa “dividida” é massa anônima empurrada pela multidão. Quem está “unificado”  tem a coragem de redefinir-se, de eleger, de assumir-se; é alguém preparado para dar um salto arrojado e criativo. Trata-se de sermos dóceis para deixar-nos conduzir pelos impulsos do Espírito, por onde muitas vezes não entendemos e não sabemos. Como nosso Mestre interior, nos ensinará a deixar-nos conduzir para a bondade, para a doação, para a reconciliação e a alegria. Sua discreta presença nos move a acolher em nós nosso potencial de ternura, de cuidado e de resistência diante de todas aquelas situações e forças que desintegram a vida e nos dividem por dentro. 

Textos bíblicos:  Mc. 3,20-35 

Na oração: É no mais íntimo que se reza ao Senhor. É no mais profundo da interioridade que se escuta o Senhor. Deixe-se invadir pela luz e pela vida d’Aquele que “armou sua tenda entre nós”.  

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI