Apresentação de Jesus no tempo - Rupnik
 
“…porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos” (Lc 2,30)
 
 
O texto de Lucas se transforma na história de uma espera e de um encontro surpreendente. 
             “O ar está cheio de nossos gritos” (Beckett).
 
Esse suspiro de expectativa e de esperança não fica sem resposta. Toda a narrativa lucana é invadida por uma atmosfera festiva, litúrgica, musical: o menino Jesus é ofertado a Deus no Templo. Simeão é um homem justo e temente a Deus, que espera a consolação de Israel, que não teme e morte, porque sabe que ela será precedida pela grande surpresa, o encontro com o Messias do Senhor. O Espírito age em todos os justos, movendo-os e consolando-os; Simeão bendiz a Deus cantando um hino de paz, de luz e de alegria; o pai e a mãe do menino são tomados de espanto, e testemunham um mistério glorioso e tremendo; há também Ana que diante da criança explode em louvores a Deus.
 
A vinda do Cristo é, portanto, o grande evento que agita os corações: aterrorizou Herodes e, com ele, toda Jerusalém, mas fez exultar o coração dos justos. Simeão, como Ana, pertencem ao povo dos “Anawim”, os “pobres de Javé”, pois é descrito como “justo e piedoso”. Sua característica fundamental é a fé profunda, a confiança total em Deus. Simeão toma o menino Jesus entre os braços. A arte dos ícones vai representá-lo como o Theodochos, “aquele que acolhe Deus”. Homem “pobre”, homem da espera, homem do Espírito: por essas qualidades Simeão é também profeta, no sentido bíblico de conhecedor do mistério de Deus e revelador da sua Palavra.
 
Simeão é um homem bom do povo que guarda em seu coração a esperança de um dia ver “o consolo” de que tanto precisam. Ele é também o homem da espera, um pouco como todos os personagens do Evan-gelho da infância. Ele recolhe em si a longa expectativa da esperança messiânica. Ele não é prisioneiro da “cotidianidade”: mantém o olhar fixo no horizonte, para a consolação, para a revelação da glória. Se o presente é sem sol, ele está seguro da aurora. Deus quebrará seu silêncio, a noite escura será iluminada, a primavera substituirá o inverno. Ainda que “avançado em anos”, nele ainda não se apagou a chama da esperança e da juventude  de espírito. 
 
Simeão guarda em si o fogo do Espírito Santo, que o mantém sempre vivo, forte, aberto ao futuro. Ele não olha para o passado; vê longe e sonha grande, sonha com a  salvação de todas as nações. Seu olhar é limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções; olhar admirado e gratuito que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente a realidade humana de uma criança. 
 
O olhar de Simeão nasce da camada mais profunda e secreta do seu ser, onde a vida se torna vida que sente, vida que acolhe toda a realidade e traduz as ressonâncias em estados de espírito. Esse é o seu modo habitual de olhar que é, ao mesmo tempo, o seu modo habitual de sentir; um olhar afetuoso, que não intimida e não se sente intimidado, um olhar desarmado, acolhedor, estimulante...
 
Em um gesto atrevido e paternal, “toma o menino em seus braços” com grande amor e carinho. No entanto, este menino que tem em seus braços será uma “bandeira discutida”: sua presença será rejeitada e ocasião de conflitos e enfrentamentos; ele desvelará o que há no mais profundo das pessoas.  Uns o acolherão e sua vida adquirirá uma dignidade nova: sua existência se encherá de luz e de esperança. Outros o rejeitarão e sua vida terminará na ruína.  A acolhida deste menino pede uma mudança profunda. Jesus não vem trazer tranquilidade, mas gerar um processo doloroso e conflitivo de conversão radical. Quanto mais nos aproximamos de Jesus, melhor veremos nossas incoerências e desvios, o que há de verdade ou de mentira em nossas vidas, o que há de fechamento e resistência em nossos corações e em nossas instituições.
 
Podemos pensar também no simbolismo do sentinela: como o guarda noturno espera ansioso que chegue outro para substituí-lo, assim Simeão espreita a aurora, porque sua vigília está terminando, e então poderá descansar no Senhor, adentrando em seu Reino. O cântico de Simeão, porém, não é uma despedida melancólica, porque sua missão foi cumprida. É, antes, uma saudação festiva à Palavra de Deus que agora se realiza, é uma oração de serena e alegre entrega, de suave abandono, de confiança, pronunciado por um homem que pressente o fim, mas um fim cheio de luz e, portanto, não assustador. Seus sentimentos são os mesmos da bem-aventurança de Lucas: “Felizes os olhos que vêem o que vós vedes” (10,23) Um canto de fé e de esperança segura, não um sonho melancólico. Esse é o sentido da existência cristã.
 
O perfil de Ana é também todo luminoso e alegre. Como Miriam, irmã de Moisés, como Débora, como a mulher de Isaías, ela também é profetisa, está atenta aos sinais da história, e a este sinal decisivo que é Cristo. Porque está aberta ao Espírito, não permanece espectadora e passiva. Ana é o retrato da velhice feliz, abençoada por Deus, no estilo das narrações patriarcais, segundo as quais a velhice veneranda é sinal de justiça e de recompensa divina. Ana, portanto, é modelo de velhice alegre e pacífica, uma velhice ativa e cheia de esperanças. Seus 84 anos não são um tempo que fugiu, que escapou das mãos como a areia, deixando-as vazias. Para ela não existem apenas recordações. Lucas a descreve como a mulher de oração, uma “pobre do Senhor”. O Salmo do ancião canta (Sl. 92,12-16):
O justo floresce como a palmeira, cresce como o cedro do Líbano. Quem está arraigado na casa do Senhor, floresce nos átrios de nosso Deus; ainda dará fruto na velhice, con-servando toda a exuberância e frescor, para proclamar que o  Senhor é justo...”
 
Pertencemos a uma geração devorada pelo imediatismo e pela rapidez, com enorme dificuldade para acolher processos de longa duração: navegamos na Internet, viajamos em carros supervelozes, cozinhamos em micro-ondas, consumimos “fast-foods”...
O problema é quando aplicamos estes mesmos ritmos às relações humanas; no entanto, nem uma amizade, nem uma família, nem uma comunidade se forjam com essa medida ultrarrápida do tempo, senão que necessitam de processos lentos de crescimento, difíceis de serem aceitos.
Ana, a profetisa, nos oferece a sabedoria do saber esperar; o Evangelho de hoje nos apresenta esta anciã, durante toda sua vida, esperando a chegada do Messias e celebrando o fato de ter podido encontrá-lo em seus últimos dias de vida. A imagem que dela nos dá Lucas é que foi recompensada por ter passado a vida inteira à espera e que agora sua alegria se transborda em louvor e agradecimento.
 
Texto bíblico:  Lc 2,22-40
 
Na oração:  S. Inácio, nos Exercícios Espirituais, recomenda que o exercitante eleve o pensamento para o alto, considerando como Deus nosso Senhor o olha. Talvez seja este o momento de maior recolhimento e elevação da oração, quando ele se torna diálogo silencioso de olhares, como acontece entre duas pessoas que se amam.
 
Deveríamos nos situar diante de Deus desse modo com mais freqüência, deixando os olhos, os d’Ele e os nossos, se falarem silenciosamente. Em momentos de aridez do coração e de resistência interior, o olhar é tudo o que resta para rezar.
 
 
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
28.01.2013