“E Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52)

A liturgia deste último domingo do ano nos propõe celebrar a “Família de Nazaré” como horizonte de inspiração para nossas famílias. Uma festa estabelecida recentemente para que nós cristãos celebremos e aprofundemos aquilo que pode ser um projeto familiar entendido e vivido a partir do espírito de Jesus.

Uma família cristã procura viver uma experiência original no meio da sociedade atual, indiferente e consumista, ou seja, construir o seu lar a partir da referência da Casa de Nazaré: José, Maria e Jesus que alentam, sustentam e orientam a vida humana e são fonte inspiradora de toda família.

A festa da Sagrada Família deste ano adquire um sentido todo especial: neste dia acontece oficialmente a abertura do “Ano Jubilar da esperança”, proclamado pelo Papa Francisco através da Bula “Spes non confundit” (“a esperança não decepciona” – Rom 5,5).

Entre os cristãos defendemos com muita naturalidade o valor da família, mas nem sempre paramos para aprofundar no conteúdo concreto de um projeto familiar, entendido e vivido a partir do Evangelho.

Como seria uma família inspirada em Nazaré?

Não podemos celebrar dignamente a festa de hoje sem escutar o desafio de nossa fé: como são nossas famílias? Vivem responsavelmente e comprometidas com uma sociedade melhor e mais humana, ou fecha-das exclusivamente em seus próprios interesses? Educam para a solidariedade, a busca da paz, a sensibilida-de para com os mais necessitados, a compaixão..., ou ensinam a viver somente para o bem-estar insaciável, o consumismo, o máximo lucro e o esquecimento dos outros? É espaço de humanização, de relações as-dias..., ou ambiente limitador das possibilidades de seus membros?

A contemplação da vida familiar de Jesus nos convida a “olhar” nossa terra cotidiana, nossa humanidade, fragilidades, paixões, sentimentos, fracassos, imperfeições... Deus se encontra misturado com tal realidade, salvando-a. Frente a uma “visão imediatista” do cotidiano, sem meta e sem direção, a esperança cristã leva a sério todas as possibilidades latentes na realidade presente; ela nos move a viver o cotidiano de maneira criativa.

Precisamente porque queremos ser realistas e lúcidos, nós nos aproximamos da realidade, vendo-a como algo inacabado e “em marcha”; não aceitamos as coisas “tal como são”, mas “tal como deverão ser”. Quem ama e espera (esperançar) o futuro não pode “conformar-se” com a realidade tal como é hoje. A esperança não tranquiliza, mas nos inquieta, gera protesto, nos desperta da apatia e da indiferença... nos desinstala. Precisamos voltar a ter um futuro em que ancorar; um futuro que valha a pena imaginar e que impulsiona as ações de nosso presente; uma esperança que nos dilate. Sem silêncio, sem profundidade, sem a sabedoria que sabe decantar, nunca seremos arrojados e audaciosos frente o futuro.

Em Nazaré, Jesus nos ensina, o valor das coisas cotidianas quando são feitas com dedicação e carinho.

No cotidiano vivido Ele estava assumindo a condição da imensa maioria dos mortais deste mundo, dos homens e mulheres “comuns”, dos que iam trabalhar ou estavam sem emprego, dos que tinham de “ganhar a vida” porque na vida não encontravam seu lar, daqueles que eram pura estatística...

Na escola da vida, comum e cotidiana, Jesus também foi aprendiz. Portanto, Jesus viveu a vida como um processo lento e progressivo, a partir da própria condição humana no meio dos seus, no meio do povo e em vista do Reino de Deus, graças a uma criatividade transformadora.

Sintonizado com o Pai, também no ambiente familiar de Nazaré Jesus alimentava a esperança de um mundo novo, de novas relações, de um novo ambiente solidário. Também para nós, seus seguidores e seguidoras, as famílias deveriam ser o ambiente propício para despertar e alimentar grandes sonhos, ativar a esperança. Só os medíocres ou os desesperançados renunciam sonhar.

Por isso, entrar no fluxo da Família de Nazaré é viver em permanente travessia, em contínuo deslocamento.

E o apelo mobilizador que emerge é este: “fazei-vos itinerantes!”. Só quem é peregrino vive em “estado de esperança”, ou seja, torna-se “esperançado(a)” como atitude de vida

Inspirados no cotidiano da Família de Nazaré passamos a viver em contínuo êxodo do lugar estreito e dispersivo  ao lugar expansivo e unificante, travessia dos lugares auto-referenciais para os amplos lugares humanizadores. Assim, a contemplação da Infância de Jesus nos pede deslocamento de nossos lugares onde controlamos; supõe travessia para espaços onde não somos o centro. Falamos de diferentes espaços: religioso, afetivo, gênero, ideias, crenças, ideologias...

Ampliar os espaços do coração implica agilidade, flexibilidade, criatividade, solidariedade e abertura às mudanças e às novas descobertas. Quando os caminhos interiores são abrasados e iluminados pela força da Família de Nazaré, começam a cair nossas falsas seguranças, suspeitas e preconceitos e a nossa vida se abre à grande novidade que o Deus surpreendente nos reserva.

Para “entrar” no cotidiano em Nazaré precisamos de olhos novos e de um coração puro.

É necessário despertar aquela “sensibilidade” escondida e abafada pelo ativismo e pelo ritmo estressante de nossa vida. Em Nazaré, somos tomados de surpresa. A nossa noite, o nosso silêncio, a nossa rotina diária... é quebrada por uma novidade absoluta. É estar “acordado”, no sentido musical de estar afinado, em sintonia com a Presença que se des-vela sempre inesperada, surpreendente, provocativa...

Portanto, a vida familiar de Jesus nos recorda sempre que as coisas mais importantes da vida requerem espera, vigilância, assombro, acolhida e que a obscuridade e a luz convivem sempre no coração da história e em nosso próprio coração. Ou seja, que tudo está misturado e o Deus que vem, se embarra, se faz carne em nossa carne, em nossas grandezas e misérias, as nossas e as de nosso mundo; é nesse ambiente que se fundamenta nossa esperança.

Esta esperança é como a impressão, os rastos, o desejo ardente que Deus colocou em nosso coração. Deus sonhou o ser humano, e o ser humano anseia por Deus. Nossa história pede um novo sentido a partir desta fé-esperança-confiança. A fé confia em Deus. A esperança confia a Deus.

Tudo na vida requer preparo, e toda preparação exige empenho e mudança..., envolve uma espera.

Somos feitos disso: desejo, súplica, anseio, busca, esperança...

Na “perda e encontro” de Jesus no Templo se condensa toda sua vida, que é buscar a Vontade do Pai.

Mas Jesus não é somente este jovem que decide “perder-se” no templo; é todo cristão que busca a Vontade de Deus; somos, todos nós, convidados a “perder-nos” na busca de Deus, de seu Reino, da missão que Ele tem reservada para nós.

Ainda que o itinerário em Nazaré pareça pobre e rotineiro, se o percorremos com fidelidade e amor, ele se insere no projeto de Deus, fica iluminado e nos impulsiona a ter amplos horizontes.

Para atravessar a Nazaré cotidiana é preciso aprender a dimensão perfeita do amor, que é doação silenciosa, é oblação alegre e livre.

Textos bíblicos:  Lc 2,41-52

Na oração: O caminho contemplativo que temos de percorrer é longo: entrar em nossa casa, entrar em nosso lar interior requer tempo. Como dizia S. Bernardo: “não se trata de atravessar mares, de escalar o céu, de ultrapassar as nuvens, de cruzar vales ou de escalar montanhas. É para ti mesmo que deves caminhar; habitar-te e não ser casa vazia ou cheia de espíritos que não são teu espírito, tu mesmo”.

- Está dentro de ti o caminho que tens a percorrer; para o mais profundo teu; é ali onde Deus te espera e deseja encontrar-se contigo, prolongar a Encarnação.

- Sua vivência em Nazaré (lar, comunidade...) é oportunidade privilegiada para ousar, alimentar a esperança... ou simplesmente um espaço a ser “suportado”, “normótico” (normalidade doentia), cansativo...?

Pe. Adroaldo Palaoro sj