“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la” (Jo. 6,60)

 21º Dom. do Tempo Comum


É hoje quase “lugar comum” afirmar que nos encontramos num tempo de crise, no mundo, na Igreja, nas instituições, na vida pessoal e familiar, no mundo do trabalho, da economia, da política, da educação...


Rejeitada por muitos como algo perturbador da ordem e destrutivo da “normalidade” da vida, a crise é um processo normal e faz parte da essência da vida e da história. Ele emerge de tempos em tempos para permitir a vida permanecer sempre vida, poder crescer e irradiar. O simples fato da crise é bom sintoma. É sinal de que se abriram novas possibilidades, de que fermenta um processo depurador e salutar.


O termo chinês para a palavra “crise” (“wei-ji”) fala de duas coisas: perigo e oportunidade. No grego, crise (“krisis”, krinein”) significa a decisão num juízo. De crise vem também a palavra “critério” que é a medida pela qual se pode discernir e distinguir o autêntico do inautêntico, o bom do mau. 


No sânscrito “kri” ou “kir” e significa “desembaraçar”, “purificar”, “limpar”. Crise designa, então, o processo de purificação do cerne, para trazer à tona o essencial e eliminar os elementos secundários que foram se acumulando no interior da vida, comprometendo-a e esvaziando-a de sentido.


Todo processo de purificação implica ruptura, divisão e descontinuidade. Por isso esse processo é também doloroso e assume aspectos dramáticos. Mas é nessa convulsão que se catalisam as forças e se purificam os valores positivos contidos na situação de crise. 


Toda situação de crise, para ser superada, exige uma decisão (a pessoa é convocada “não a opinar sobre algo, mas a decidir sobre algo”). Esta marca o caminho novo e uma direção diferente que é dada à vida. Sem essa decisão não há vida. Ideias, nós as temos, mas decisões, nós as vivemos. Por isso, uma situação de crise é muito rica; não constitui uma tragédia na vida, mas seu vigor e transformação. É oportunidade de crescimento. Não é perda do chão debaixo dos pés, mas desafio que esse chão vital lança para uma maturação maior. Na crise tire o “s”: crie!


Para os despreparados (imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo. A crise provoca uma decisão que abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise, e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar.


Crise é o momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova forma de vida.

 

O Evangelho de hoje nos ajuda a interpretar e viver a crise com profundidade mais evangélica. Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que está se criando em seu grupo: “As palavras que vos disse são espírito e vida. Mas entre vós há alguns que não creem” (v.63). Jesus introduz um espírito novo naqueles que o seguem; suas palavras comunicam vida; o programa que propõe pode gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.


Mas existem aqueles que resistem aceitar seu espírito e sua vida. O narrador diz que “muitos voltaram para trás e não andavam mais com Ele”. Na crise revela-se quem são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva sempre é essa: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra seu projeto? O grupo começa a diminuir. Mas Jesus não teme o fracasso e não pronuncia nenhum julgamento sobre eles. Só faz uma pergunta decisiva àqueles que permaneceram junto dele: “Não quereis também vós partir?” Seguimento é questão de decisão pessoal; é exercício de liberdade.


Esta é a pergunta que ressoa no interior de cada um de nós: Que queremos? Por quê permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto? A resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”. Os que permanecem o farão por Jesus. Só por Jesus. Comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.

 

Jesus põe seus seguidores em crise porque tem consciência de que há momentos na vida em que, para continuar, é preciso romper, entrar num processo de agitação, de instabilidade e radical questionamento. A crise é esse momento angustiante, mas profundamente criativo, que permite o evoluir da vida sobre outras bases e com outros valores.


A crise não é um mal que surge inesperadamente, interrompendo o curso normal da vida; é um momento de virada. Caímos em crise quando algo novo quer entrar em nossa vida e não podemos ou não queremos dar-lhe espaço e atenção. Crise na vida é chance de vida.


A crise traz sempre incômodos, aflições e dores tremendas, mas também as promessas de uma nova vida, uma forma mais integral de viver, de amar, de sonhar, de lutar, de sofrer e de ser feliz. A crise é portadora de vitalidade criadora; não é sintoma de uma catástrofe iminente, mas é o “momento crítico” em que a pessoa se questiona radicalmente a si mesma sobre o seu destino, sobre o mundo que a cerca, sobre a sua missão... A crise aparece como uma dimensão da transformação.


As crises tem sempre uma dimensão instrutiva, isto é, sempre uma oportunidade de aprendizagem, de evolução, de crescimento. Elas podem sinalizar mudanças positivas e dão início a profundas transformações, rompendo coisas incrustadas, atitudes acomodadas, visões estreitas... O caminho torna-se mais claro, a vida mais agradável, o futuro mais empolgante. Depois de qualquer crise, seja corporal, psíquica, moral, seja interior e religiosa, o ser humano sai purificado, liberando forças e criatividade para uma vida mais vigorosa e cheia de renovado sentido.

 

Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade o “kairós” (momento de graça), onde o essencial surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, empalidece em sua consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um horizonte mais aberto.


Se compreendermos que a crise é o nicho generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para despertar nossa humanidade; ela nos humaniza.

 

Texto bíblico:  Jo. 6,60-69

 

Na oração: fazer memória das crises na vida pessoal

    – elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou re-                       traimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?


Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana

21.08.2012