Li uma vez e não me sai da cabeça um texto da escritora Clarice Lispector sobre esse improviso que salva a vida: ela chama-lhe acertadamente o "ato gratuito". Talvez se deva começar por explicar aquilo que o "ato gratuito" não é. Ele não é mais uma estação da ofegante luta pela vida que quotidianamente nos traz mobilizados. Ele não é a necessária corrida ao trabalho, aos bens, ao consumo, aos horários implacáveis, aos transportes que não dormem. Nem se pode identificar sequer com os pequenos prazeres que nos damos, os lazeres, as viagens programadas, as recompensas disto e daquilo. O "ato gratuito" não tem preço: por definição, não se compra nem se paga.


É sempre uma sede de liberdade que nos acorda para o gratuito. E não uma liberdade disto e daquilo. Eu diria: é antes, uma pura liberdade de ser, de sentir-se vivo; uma expansão da alma, não condicionada pela avareza das convenções; uma urgência não de dons, mas de dom. Hoje, por exemplo, uma amiga procurou-me para que eu lhe indicasse um voluntariado. Ela nem tem muito tempo, dedicada a um emprego absorvente e complexo, com os filhos numa idade em que dependem muito dela. «Talvez só possa dar duas horas de quinze em quinze dias» - disse-me. E eu retorqui-lhe, sorrindo: «Duas horas podem ser uma imensidão». Na verdade, não é o tempo o mais importante. O essencial é deixar que se formule no interior de nós e que se expresse livremente o "ato gratuito".


O serviço aos outros é um excelente exemplo do gratuito. Mas em relação a nós próprios ele tem igualmente de existir. No texto que li de Clarice Lispector ela conta: «Eram 2 horas da tarde de verão. Interrompi meu trabalho, mudei rapidamente de roupa, desci, tomei um táxi que passava e disse ao chofer: vamos ao Jardim Botânico. "Que rua?", perguntou ele. "O senhor não está entendendo", expliquei-lhe, "não quero ir ao bairro e sim ao Jardim do bairro." Não sei porquê, olhou-me um instante com atenção.

Deixei abertas as vidraças do carro, que corria muito, e eu já começara minha liberdade deixando que um vento fortíssimo me desalinhasse os cabelos e me batesse no rosto grato de felicidade. Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver». 


Uma vez vi grafitada, num muro, uma pergunta: «Acreditam na vida antes da morte?». Foi um baque para mim. Claro que alarga infinitamente o horizonte acreditar que há vida depois da morte. Porém, se eu, por algum motivo, desistir de confiar que existe vida (isto é, possibilidade de vida verdadeira) antes da minha morte, tudo fica estranho, escuro e perdido. 


O "ato gratuito" é um gesto que nos salva. Uma das mais belas orações que conheço foi aquela encontrada entre os pertences pessoais de um judeu, morto num campo de concentração. Diz o seguinte: «Senhor, quando vieres na Tua glória, não Te lembres somente dos homens de boa vontade; lembra-Te também dos homens de má vontade. E, no dia do Julgamento, não Te lembres apenas das crueldades e violências que eles praticaram: lembra-Te também dos frutos que produzimos por causa daquilo que eles nos fizeram. Lembra-Te da paciência, da coragem, da confraternização, da humildade, da grandeza de alma e da fidelidade que os nossos carrascos acabaram por despertar em cada um de nós. Permite então, Senhor, que os frutos em nós despertados  possam servir também para salvar esses homens».



José Tolentino Mendonça

padre e poeta português

(texto originalmente publicado no SNPC 16.08.2012)