Quaresma é tempo favorável para “ordenar a própria vida” na direção do sonho de Deus para toda a humanidade. Para que este processo de “ordenamento” aconteça, o tempo litúrgico quaresmal nos convida a “considerar” as nossas relações vitais: com Deus, com os outros, com o mundo e consigo mesmo.
No Evangelho fala-se das “práticas quaresmais” da oração, esmola e jejum, onde nossas relações são iluminadas e questionadas pelo modo de proceder de Jesus. Que sentido tem, para nossa cultura, estes três gestos que são propostos para uma vivência fecunda da Quaresma?
Em primeiro lugar, são três gestos que nos humanizam e tornam a vida mais leve e com sentido; eles condensam o sentido da vida cristã. A vida é um abrir-se aos demais (esmola), um manter-se no mistério de Deus (oração) e ser capaz de ordenar e dirigir a própria existência (jejum).
É preciso criar espaço novo no coração e na mente, para que coisas novas aconteçam. Vividos a partir da identificação com Jesus Cristo, os valores da oração, da esmola e do jejum podem nos aproximar dos pobres e excluídos; mover-nos de compaixão e misericórdia; exercitar-nos na prática do bem e da bondade; acolher o outro com sinceridade; perdoar gratuitamente; cuidar com ternura e admiração; mergulhar no mistério de cada coisa; deixar-nos envolver pela graça e permitir que o amor circule em nós e no mundo, gerando vida em abundância. Trata-se de um “modo de proceder” permanente.
Oração: oração em tempos de tecnologia e de rapidez parece algo sem sentido. No entanto, a oração nos ajuda a buscar sentido em todas as experiências, pois ela nos aproxima da simplicidade e da ternura. Ou seja, a oração torna o coração mais dócil, fazendo-nos mais humanos e, por isso, mais próximos de Deus. A oração é uma mão estendida para o divino; não é dobrar a vontade de Deus a nosso favor; pelo contrário, é colocar-nos em sintonia com Deus, para entendermos o que é melhor para nosso verdadeiro bem. É deixar Deus ser Deus, ou seja, revelar sua paternidade e maternidade com cada um de nós.
Orar é sentir-nos participantes da riqueza divina e de seus dons. É sentir-nos agraciados e plenos de sentido do infinito, tirando-nos da mesmice e do vazio. Orar nos molda o coração de acordo com o coração de Deus, nos ajuda a sermos mais irmãos uns dos outros e reforça a certeza de que somos filhos e filhas amados(as) de Deus.
Jejum: o jejum nos humaniza, nos faz descer do pedestal e nos torna mais sensíveis e solidários; fazer jejum tem sentido quando brota da sensibilidade que evita o desperdício, o consumo desenfreado, o esbanjamento e o orgulho. Na linguagem inaciana, jejuar é “sair do próprio amor, querer e interesse”, ou seja, viver na simplicidade de quem renuncia a um “EU” enorme por um “mundo diferente”.
Jejuamos para crescer; jejuamos para recordar que as “coisas” não são um fim, mas um meio; jejuamos como forma de olhar ao redor e recordar que a realidade é muito mais ampla que nossa própria situação. Jejuar não é “deixar de comer”. É aceitar de maneira consciente que nossos desejos, nossas necessidades, nossos interesses, nossas preocupações não são o centro do mundo.
Por isso jejuar pode ser um convite a ordenar a mente, a pacificar o coração, a serenar os olhos, a guardar a língua... Purificar a tendência ao imediatismo, ao falso moralismo, puritanismo e perfeccionismo. Implica também “dar um tempo”à tentação de falar dos outros, destruir sua imagem e diminuir seu valor; “dar um tempo” à tentação de ver apenas a aparência e julgar por ela, de ver sujeira em tudo e não ver a beleza em tantas expressões, de ver somente o errado e não acolher os limites e a boa vontade dos demais. Jejuar os olhos para ver o que alegra o coração. Jejuar é cuidar-se, com simplicidade e veneração, e manter viva a alma (= sempre animados). Por lembrar-nos de nossa precariedade, o jejum pode nos tornar sensíveis ao próprio mistério da vida que somos; é colocar em questão a razão de ser da vida. Para quê vivemos?
Esmola: a palavra “esmola” soa mal. Dá ideia de resto, de poder de uns sobre o nada de outros. O termo “esmola” deriva do grego “eleéo”, “ter piedade”, cuja forma imperativa “eleéson” figura no “kyrie” do ato penitencial da celebração eucarística. Antes que possamos ter piedade dos outros é Deus que teve piedade de nós. Precisamente porque brota da piedade divina e se modela sobre ela, a esmola não se reduz a um gesto de ordem apenas material: ela manifesta “um ato que indica o fazer-se companheiro de viagem de quantos se encontram em dificuldade”, participando na sua situação, com ternura.
O sentido está em oferecer algo de si, importante, significativo. Tem a ver com abertura de coração, sensibilidade e olhos abertos. É resultado de uma atenção permanente e ativa, que vai ao encontro do outro, que toma iniciativa, que se comove. É um estímulo a superar o assistencialismo, que mantém as diferenças, sustenta a dependência e não promove a cidadania. Provoca-nos à solidariedade e ao espírito de compaixão, nos move ao serviço, à presença-qualidade, ao voluntariado, à prática do bem e da justiça.
Textos bíblicos: Lc. 11,1-12 Is. 58,1-12 Lc. 12,22-34
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI
15.03.2013