A catequese deve ser inculturada – é o que se diz. Mas, o catequista se pergunta: O que é isso, na prática? Em que consiste a inculturação do evangelho?
Não é fácil responder essa questão. Até porque o conceito de cultura é vasto, complexo e dinâmico. Cada um usa a palavra cultura em um sentido. E ainda não ficou muito claro em que sentido a Igreja tem empregado o termo cultura. É só pegar alguns documentos mais recentes da Igreja que vamos encontrar várias referências à cultura, cada vez num sentido diferente.
Às vezes, nos discursos sobre esse assunto, cultura significa simplesmente a tradição, o folclore de povos específicos, seus usos e costumes que a modernidade tende a sufocar. Então, inculturar seria resgatar costumes e tradições, por meio de símbolos. Algo como usar um cocar de índio. Ou cobrir-se com um pano de estampas africanas. Vemos isso em muitas celebrações. Num encontro de catequistas de que certa vez participamos, sempre que se proclamava um texto bíblico na liturgia, o leitor se enrolava num pano colorido, punha a Bíblia numa peneira e estava convencido de fazer inculturação.
Outras vezes, o termo cultura é usado para distinguir estratificações sociais que teriam características próprias. Cultura seria aquilo que diferencia um grupo social de outro. Fala-se então de cultura urbana, cultura rural, cultura das minorias, cultura dos guetos, etc. Nesse caso, o conselho que se dá é que a Igreja aprenda a falar a língua de cada grupo social. Mas, pode-se perguntar: O que seria mesmo essa língua característica? A língua do homem do campo seria diferente da língua da cidade, ainda mais depois da globalização?
Aí entra o conceito de língua. E, às vezes, a Igreja fala de cultura querendo se referir à forma de expressão vocabular de cada grupo, ou seja, ao tipo de português que cada um sabe falar. Cultura seria, então, a gramática, a correção vocabular, as palavras usadas para expressar ideias. Então se diz: É preciso falar a língua do homem do campo. E os líderes começam a usar expressões como: enxada, cerca de arame, bota de borracha, boi; e cantam “Penerei fubá, fubá caiu”. E acham que estão inculturados. E na cidade fala-se de vídeo, fast-food, shopping-center, internet, blog etc. Acontece que parece não haver tanta distinção entre cidade e campo. O homem do campo assiste televisão e tem acesso à internet. A modernidade tem globalizado a cultura. Quando falam para jovens, alguns catequistas começam a usar gírias, a fazer tatuagens, a cantar axé e hip-hop. Para crianças, colocam tudo no diminutivo, transformam Deus em papai do céu, Maria de Nazaré em mãezinha do céu, rezam orações do anjinho da guarda etc. Infantilizam a fé ou transportam-na para o campo da moda que a mídia impõe. Parece que alguns insistem em ressaltar as diferenças que não são a coisa mais importante no momento, esquecendo-se de que cada um desses grupos é capaz da fé madura, no universo cultural ou situação em que se encontra, sem subterfúgios.
Poderíamos citar ainda outros dos muitos conceitos de cultura. Mas parece que o que mais se aproxima do ponto que a Igreja quer atingir é o conceito de cultura como linguagem. Não como língua, mas como linguagem. Há uma grande diferença. Língua é o vocabulário, as palavras, o idioma. No Brasil, todos falamos português. Então, não é o idioma que vai dificultar a compreensão. Linguagem é mais que língua. A linguagem é o conjunto de valores que está na mente das pessoas. Por detrás de cada coisa que se faz ou se fala, existe um universo de valores e crenças que compõem a linguagem de um povo. Esse conjunto é a cultura desse povo. Nesse sentido, inculturar é compreender a motivação mais profunda que está na mente das pessoas, entendendo a mente não tanto como realidade individual, mas como mentalidade ampla e abrangente. Poderíamos quase dizer que cultura é mentalidade. O processo de inculturação exige, pois, que a fé da Igreja encontre uma forma de ser compreendida pela mentalidade do povo. A mentalidade abre umas portas e fecha outras. A Igreja precisa descobrir, no homem chamado pós-moderno, quais são as portas abertas e quais são as portas fechadas. É preciso saber por qual porta a mensagem da fé vai entrar no coração desse novo destinatário da evangelização.
O Estudo da CNBB nº 73 – Catequese para um Mundo em Mudança – resumiu tudo isso, dizendo: “Não se trata de montar um espetáculo bonito, mas de falar ao coração do povo, nas diferentes realidades” (n. 14). Fica apenas a pergunta se, num mundo globalizado, as realidades ainda continuam tão diferentes. A chamada pós-modernidade criou nova mentalidade em todos os seguimentos sociais: pobres, ricos, índios, negros, marginalizados, minorias, homens do campo, da cidade etc. Talvez a cultura seja muito mais o que une esses seguimentos sociais do que o que os separa. E a Igreja, no seu discurso, precisa enfocar coisas que as pessoas queiram ouvir com boa vontade, coisas que respondam aos anseios da pós-modernidade. Esses anseios indicam as portas abertas nos corações das pessoas, por onde a boa-nova de Cristo pode ser acolhida como força para viver.
Já se fala também de inculturação como o processo pelo qual a pessoa se insere na cultura cristã ou na cultura do evangelho. Dessa forma, a pessoa evangelizada é que deve se inculturar, ou seja, absorver os valores do evangelho, como os gregos absorveram a pregação de um judeu – Jesus! – e adotaram os valores cristãos adaptando-os à sua cultura.
Então, não adianta, no processo formativo, vestir roupas africanas e usar cocar de índio, se não falamos ao coração da sociedade e não respondemos aos seus anseios. A inculturação, nesse sentido, requer a ousadia de subverter o discurso oficial e padronizado. Para a catequese, isso é fundamental. É preciso apresentar a boa-nova de Cristo de modo que ela signifique algo importante dentro de nossa cultura. Quando Jesus pregou o evangelho, as pessoas se sentiram profundamente tocadas por sua mensagem. A mensagem de Jesus fez a diferença para aquelas pessoas. Hoje precisamos apresentar esta mesma mensagem, de modo que ela também faça a diferença para as pessoas do nosso tempo.
Isso não significa que vamos nivelar o evangelho a partir das necessidades das pessoas. Mas vamos apresentar a boa-nova como uma força motivadora para os tempos atuais, pois ela é assim. Deus continua querendo falar aos corações das pessoas. Vamos entender a inculturação como o esforço para superar uma linguagem arcaica, muitas vezes baseada no argumento da autoridade, em prol de uma linguagem que deixe transparecer a beleza do evangelho de Cristo. As pessoas continuam tendo sede de Deus. Tanto que se fala da busca pelo sagrado, característica dos nossos tempos. Mas o modo de falar de Deus precisa ser tal que o sagrado seja de fato transmitido pelo nosso discurso. Senão, as pessoas vão procurar o sagrado em outras Igrejas que pregam o evangelho de outra forma.
Solange Maria do Carmo
Mestre em Sagrada Escritura, doutoranda em Catequese pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia-FAJE
01.08.2012