A seta
Matusalém viveu novecentos e sessenta e nove, quase mil anos, Adão novecentos e trinta, outro, novecentos e doze, novecentos e cinco. No capítulo 5 de Gênesis quem morreu mais moço, morreu com setecentos e setenta e sete anos. Até parece conta... E notar que, além de “gerar filhos e filhas”, eles ainda fizeram muitas outras coisas nessas idades fabulosas.
Já o Salmo 90 (89) diz no verso 10: “Setenta anos é a duração da nossa vida os mais fortes talvez cheguem aos oitenta, mas o que passa disso é só dor e incômodo”. Como é isso: Dá para viver até perto de mil anos com todo o vigor, ou não dá para ir folgadamente muito além dos setenta ou oitenta? Quem está certo? Como explicar as idades dos antigos patriarcas?
A meta
Outra passagem da Bíblia (Is 65,20) ajudará a entender: “Será ainda jovem quem morrer com cem anos. Não alcançar os cem anos será maldição”. O texto (Is 65,17ss) fala da esperança de um mundo novo onde não haja mais mortalidade infantil e onde a média de vida venha a passar de cem anos. Uma sociedade organizada como Deus quer deve possibilitar isso. Vida longa no vigor da juventude é sinônimo de vida correta, de acordo com Deus.
O escritor javista, aquele que, no tempo de Salomão e baseado em mitos orientais, escreveu a estória do paraíso, da árvore da vida ou imortalidade, do pecado e perda do paraíso, diz que a duração da vida deixou de ser tão longa porque os semideuses ou “filhos de Deus” se uniram às filhas dos homens. O pecado ou infidelidade a Deus baixa a duração da vida.
O escritor sacerdotal, que, ao fim do exílio na Babilônia, deu redação final aos primeiros livros da Bíblia, vai aos poucos baixando a duração da vida. De Adão a Noé, de perto de mil até 700 anos, de Sem a Taré, de 500 até 200 anos, de Abraão a Jacó, de 200 até cem anos.
A Moisés atribuem-se 120 anos, em três etapas ou três gerações: 40 anos no palácio do Faraó, 40 anos refugiado em Madian, 40 anos liderando o povo pelo deserto. Cento e dez anos foi, em algumas ocasiões, a duração de vida ideal do homem justo como Josué e outros.
Por fim o Salmo reza em cima de uma observação da realidade, não muito diferente da de hoje, embora a média de vida na época fosse provavelmente bem menor do que a de hoje.
A duração da vida é, assim, um elogio ao personagem. Aí a meta. A matemática importa menos. É ridículo tentar explicar que se contavam os anos de maneira diferente da nossa. Seria necessário reduzir um ano a um mês, pois 969 meses já resultam em mais de 80 anos. Isso é ridículo, é preocupar-se com a seta, é tentar justificá-la em si mesma, esquecendo-se da meta.
A duração da vida e a própria vida estão ligadas à fidelidade a Deus. Isso é o que importa. É a meta. A mortalidade infantil e as mortes prematuras não estão dentro dos planos de Deus. A sua proposta é de vida. Seus mandamentos, sua lei tem como objetivo que se organize uma sociedade onde ninguém morra antes do tempo, onde não alcançar os cem anos seja considerado uma maldição (Is 65,20).
A mortalidade infantil, a subnutrição, a proliferação de doenças, as mortes prematuras, a violência, os acidentes, a criação e multiplicação de novas enfermidades é escolha nossa. “Hoje estou colocando diante de você a vida e a felicidade, a morte e a desgraça” (Dt 30,15). “Ele pôs você diante do fogo e da água e você poderá estender a mão para aquilo que quiser. A vida e a morte estão diante dos homens e cada qual terá aquilo que escolher” (Eclo 15,16-17).
Essa a meta. Ou vamos ficar debatendo se os personagens do passado viveram mesmo essas idades fabulosas?
Pe. José Luiz Gonzaga do Prado
Biblista e professor de Sagrada Escritura na Faculdade Católica de Pouso Alegre-MG
15.08.2013