Da vida cotidiana
Estava no ônibus dos jogadores que ia a uma cidade vizinha disputar mais uma partida do torneio regional. Ao passar por aquela cidade, viu sentada no banco da praça uma menina que também olhou para ele. Os olhares se cruzaram, aquele clic, aquele... Ele não conseguiu mais tirá-la do pensamento, mas como descobrir quem era? Ela, por seu turno, sabia que o ônibus levava jogadores e começou a se interessar por futebol.
Quando o time daquela cidade veio à sua, lá estava ela firme no campo. Viu - como haveria de esquecer aquele rosto? - que ele era o goleiro do time. Mas não se aproximou, não conseguiu, não era hora ainda...
Ele não a esquecia, mas julgava-se esquecido. Em casa, às vezes, tocava o telefone, ele atendia, mas ninguém falava, ouvia apenas música romântica e suspiros. Desligava. Alguns clientes a mais da cidade vizinha procuram seus serviços. Nem notou.
Um dia seu time de futebol é convidado para uma festa na cidade vizinha. Estranho, mas quem sabe, agora... Durante a festa, os dois se dão de frente, quase se chocam. Um “Oi!” sem graça, “Desculpa!” mais sem graça ainda. Depois, os dois quase ao mesmo tempo, “Como é teu nome? Você é que...?”.
Namoro, noivado, casamento. Aí vieram as explicações: O repentino interesse pelo futebol, como descobriu o número do telefone, os telefonemas incapazes de falar qualquer coisa, como lhe mandou novos clientes, o esforço para fazer com que o convidassem para a festa e tudo o mais. Tudo estava explicado e tudo ganhava sentido, muito sentido!
Alguém já viveu ou sabe de experiência semelhante?
Na Bíblia Deus se abre com a gente
Tudo começou com um grupo de sem-terras que vivia escravizado no Egito. Eles fugiram da escravidão e por quarenta anos ficaram acampados numa região de deserto, tentando ocupar as terras férteis de Canaã. No princípio dessa caminhada, o líder deles, Moisés, sobe à montanha para orar e volta com uma proposta de Deus, que quer fazer aliança com esse pessoal. Quer que eles deixem de ser um bando medroso e desorientado para se tornar um povo organizado, a comunidade do Senhor. Eles não perceberam, mas seu Deus, o Deus dos fracos, é mais forte do que os deuses do poderoso Egito e eles, que não passavam de escravos sem nome, agora são uma gente querida entre todas as nações do mundo, gente santa, reinado de sacerdotes.
Na proposta da Aliança (Ex 19,4-6) já aparece, como ponto de partida, algo como: “Faz tempo que eu estava de olho em vocês!”. O olhar, os telefonemas, os clientes, o convite para a festa... “Vistes o que fiz aos egípcios, como vos levei em asas de águia e vos trouxe até mim!”.
A águia faz seu ninho nos penhascos das mais altas montanhas. Quando os filhotes já adquiriram penas e precisam aprender a voar, ela os empurra lá do alto para que vão se debatendo até conseguir voar. Para que eles não se espatifem no chão, a águia fecha as asas e mergulha no espaço, passando à frente dos filhotes que vêm se debatendo assustados. Em seguida, abre as imensas asas sobre eles, os recolhe e leva de volta para o ninho. Vocês pularam no escuro ao fugir da escravidão do Egito, mas não foram vocês, fui eu que os tirei de lá, eu é que os estou carregando como a águia leva os filhotes sobre as asas. Tão grande amor só poderia usar uma comparação bonita e romântica!
A partir de agora a história desse povo, ou bando de ex-escravos que se tornou comunidade, passa a ter sentido. Agora Deus está presente em tudo. O que os mais velhos contavam agora deve ser contado de outro jeito. Agora é preciso mostrar a presença dele em tudo. Agora não é mais um telefonema misterioso, um cliente novo ou um convite inexplicável.
Agora tudo tem explicação. Era Deus que estava com nossos antepassados e estará com nossos filhos. Saímos da escravidão, mas não fomos feitos para a escravidão. Nossa história tem um pai que nos criou e nos dá a mão e tem garantia de futuro, uma terra onde correm leite e mel.
Nos contratos de hoje, após nomear os contratantes, o documento passa imediatamente às cláusulas contratadas. Nos antigos pactos ou contratos não. E assim é aqui. Antes de qualquer cláusula, vem um prólogo histórico para relembrar o que aconteceu e motivou o atual contrato, pacto ou aliança. Como na história de um grande amor, primeiro acontecem coisas e gestos quase imperceptíveis que, depois de revelados, crescem de importância ou tamanho.
E é preciso revelar esses gestos, será preciso contar e recontar inúmeras vezes. Não faz mal se há algum exagero cada vez que se conta e reconta, isso acontece porque o amor é grande demais! Foi assim que Deus entrou nas tradições e na história desse povo.
Como é que o bando vai se tornar comunidade, povo santo, gente escolhida, reinado de sacerdotes? Para isso vêm os mandamentos ou estipulações particulares da aliança ou contrato. Os mandamentos não visam a reger a vida particular dos indivíduos, seu objetivo é organizar o povo em comunidade fraterna. Quarenta anos acampados no deserto será uma boa oportunidade para aprender a austeridade que economiza para o bem de todos e o respeito de uns aos outros. A história do maná é emblemática (um símbolo), ninguém podia recolher mais do que o necessário para o dia de hoje, era proibido estocar e, muito mais ainda, negociar comida. E para quem recolhia pouco não faltava, para quem recolhia muito não sobrava.
E as histórias do povo contadas, cantadas e recontadas, assim como as leis que Deus lhes dera para que se organizassem como comunidade, um dia passaram a ser escritas, pois, como qualquer contrato sério, as antigas alianças também precisavam ser escritas. Daí nasceu a Bíblia.
Primeiro veio a comunidade, depois a Bíblia. Melhor, primeiro um povo escravo e sem terra, fugindo da opressão, depois a Aliança ou o encontro ou namoro com Deus no deserto, depois as lembranças do passado e as esperanças do futuro e um Deus paquerador sempre presente em tudo, ontem, hoje, amanhã. Depois as mesmas histórias escritas, “olhando o passado pra animar o presente em rumo ao futuro”.
Não faz mal contar a mesma história mais de uma vez. A cada vez o presente que se precisa animar é diferente, como diferente é o futuro que se espera. Assim a maneira de olhar o passado pode e deve mudar sempre. O que se quer contar é a mesma coisa: O nosso Deus, o Deus dos pobres, dos fracos, é mais forte que os deuses dos poderosos, e ele faz uma aliança com a gente, ele está do nosso lado, ele nos acompanha há muito tempo e, principalmente, ele ainda nos fala hoje através das histórias do passado. Na Bíblia, todos os dias de novo, ele se abre com a gente.
Assim o papo de Deus com a gente na Bíblia é menos uma janela para o passado e muito mais um espelho para hoje, é muito menos um milagre, uma maravilha passada a ser admirada, e muito mais um sinal, uma seta a apontar para o futuro. É muito mais importante, como em qualquer história de amor, admirar o amor que transformou um fato que poderia ser rotineiro ou mera coincidência num grande milagre, uma grande maravilha. Maravilha maior que o amor não há. E o amor não morreu.
Pe. José Luiz Gonzaga do Prado
Biblista, foi da equipe de tradutores da Bíblia da CNBB, é professor de Sagrada Escritura.
01.09.2012