Desde o segundo século, a tradição cristã atribuiu o quarto evangelho a João, o discípulo amado e, diferentemente dos outros  três evangelhos que tem como tema central o Reino de Deus, em João  vamos encontrar o testemunho sobre Jesus, que é o próprio Reino. A vinda do Reino de Deus é substituída pela vinda de Jesus. Mais do que fornecer informações sobre Jesus, João procura desvendar a sua personalidade divina.

O evangelho de João, ao ser organizado,  foi apresentado em duas grandes partes: após o prólogo (1, 1-18), a primeira parte é conhecida como o Livro dos sinais (Jo 1,19-12), ou seja, do capítulo um, versículo dezenove,  até o capítulo doze. Nessa parte encontramos as sete narrativas de sinais, que são os milagres que Jesus realizou. A segunda parte, conhecida como o Livro da Exaltação ou glorificação de Jesus (Jo 13,1-20,31), ou seja, do capítulo treze, versículo primeiro, até o capítulo vinte, versículo trinta e um. Nele encontramos o amor e a bondade de Deus revelados na face do Pai. o evangelho termina com um epílogo (21,1-25) que apresenta a manifestação de Jesus ressuscitado à beira do lago de Tiberíades.

Em relação aos destinatários dos ensinamentos de Jesus também percebermos que, enquanto os evangelistas Marcos, Mateus e Lucas apresentam Jesus realizando o seu  ministério público  na Galileia, rodeado pelas multidões, os discípulos, os fariseus, saduceus, os doutores da Lei, os pescadores, por um período de um ano, João apresenta Jesus exercendo seu ministério público para um grande número de pessoas que podem ser classificadas em dois grupos distintos: os que acreditam e os que não acreditam em Jesus, por um período aproximado de três anos.

Havia diferentes grupos que participavam das narrativas do evangelho: os dois discípulos de João Batista, que foram convidados por Jesus a permanecer com ele (Jo 1,35-39); os samaritanos que conheceram Jesus por meio de uma mulher samaritana (Jo 4) e acreditaram nele pelas suas palavras. Houve também quem o seguisse entre os gregos (Jo 7,35; 12,20). Seus interlocutores, na maioria eram constituídos por judeus expulsos das sinagogas (Jo 9). Parece ser uma comunidade formada por pessoas marginalizadas, perseguidas  e excluídas (Jo 4; 9). Mas nessa  comunidade Joanina, as pessoas acreditavam em Jesus  como o Messias, o Filho de Deus, o profeta que devia vir para salvar o mundo. Aos que não acreditavam em Jesus eram denominados por João sendo  "os judeus". Mas João, ao se referir aos judeus, ele não estava se referindo aos judeus  de raça ou religião, mas a todos aqueles que não aceitavam Jesus.

Para falar da mensagem de Jesus, João nos apresenta toda a vida de Jesus marcada por uma "Hora". Essa "Hora misteriosa" dá sentido a todo o Evangelho. Esta palavra "Hora" refere-se ao momento mais importante da vida de Jesus: sua morte e ressurreição.
    
Fazendo a leitura do Evangelho de João percebe-se que, nos doze primeiros capítulos, Jesus afirma que a sua hora ainda não chegou. Vejamos:

•Primeiramente, em Caná da Galileia, na celebração das bodas (2,4.11) Jesus diz que ainda não chegara a sua hora, ou seja, a hora da sua glorificação, o momento de oferecer os bens messiânicos simbolizados no vinho.

•Por ocasião da festa dos Tabernáculos (Tendas), uma das três principais festas de peregrinação na tradição religiosa judaica. Era uma festa  celebrada no outono, estação das colheitas e das peregrinações dos antepassados pelo deserto. João, na passagem do seu evangelho (7,4) ele apresenta os parentes de Jesus  pedindo a ele que se manifeste ao mundo, mas Jesus fazendo uma distinção entre o 'seu tempo' e o 'tempo deles' diz ser o seu tempo marcado pela Hora.

•Nas passagens do evangelho (7,30 e 8,20), momentos em que Jesus se encontrava  ensinando no Templo, João faz o anúncio da chegada dos adversários  que procuravam por Jesus para prendê-lo, mas diz que ninguém conseguiu, porque a sua Hora ainda não chegara. 

•Continuando a leitura do evangelho de Jesus segundo João, somente a partir do capítulo 13 é que Jesus vai afirmar claramente que 'chegou a sua hora': é a Hora de passar para o Pai (cf. 13,1).  Esta Hora é o momento da exaltação de Jesus.

•Para João, o momento da cruz é o momento da exaltação, ou seja, no momento da própria crucificação. Jesus crucificado não é apenas o Servo sofredor, o Homem das dores, mas um Rei exaltado onde a cruz é o próprio trono de Jesus. Jesus morre como um rei. "Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus" (19,19).

Nesse sentido, podemos afirmar que para o evangelista João, o centro de toda a vida e missão de Jesus é o momento de sua paixão, morte e ressurreição. Essa é a Hora de Jesus. Na cruz nasce a Igreja, e o Cristo crucificado dá o seu Espírito à sua Igreja. Para João nesse momento acontece Pentecostes, o envio do Espírito. E do coração de Jesus, transpassado pela lança do soldado, saem sangue e água, símbolos dos sacramentos da Igreja (19,31-37).


Neuza Silveira de Souza
Coordenadora da Comissão Bíblico-Catequética da Arquidiocese de Belo Horizonte

In: Opinião e Notícia 10.03.2017