Hippolyte Flandrin, 1842

 

“...encontrareis amarrado um jumentinho que nunca foi montado; desamarrai-o e trazei-o aqui”

Nas celebrações da Semana Santa, muitas vezes corremos o risco de nos deter no secundário e esquecer o essencial. E o mais essencial é que as diversas celebrações (procissões, via sacra, liturgias...) nos aproxi-mem e nos façam crescer na identificação com o protagonista principal: Jesus de Nazaré.

Por isso, precisamos voltar constantemente ao Evangelho para compreender o mais essencial sobre Jesus. Recuperemos, como diz o papa Francisco, o frescor original do Evangelho. 

E a primeira coisa que o Evangelho nos diz é que Jesus foi um buscador de alternativas.

Ele não foi conivente e nem compactuou com a estrutura social-política-religiosa de seu tempo, que era profundamente desumanizadora. Sonhou novas possibilidades de vida e novas relações entre as pessoas. Por isso, ao anunciar o Reino, transgrediu a situação vigente e, a partir das periferias, foi despertando uma alentadora esperança nos corações dos mais pobres e excluídos, vítimas de um mundo fechado.

Com sua entrada em Jerusalém, Jesus quis recuperar a cidade como lugar do encontro e da comunhão, como espaço da paz e da solidariedade... desalojando aqueles que se fechavam a qualquer tentativa de mudança. Por isso, seu gesto provocativo e escandaloso de entrar na cidade montado num jumentinho, símbolo da simplicidade e do despojamento de qualquer pretensão de poder e força, causou violenta reação naqueles que se beneficiavam da estrutura política e religiosa da cidade.

Jesus participava do sonho de todo o povo de Israel que via em Jerusalém a cidade da promessa de paz e plenitude futura, lugar onde deviam vir em procissão todos os povos da terra. A tradição profética havia anunciado uma “subida”  dos povos, que viriam a Jerusalém para iniciar um caminho de comunhão e justi-ça e adorar a Deus no Templo, que estaria aberto para todos. Toda a cidade se converteria num grande  Templo, lugar onde se cumpre a esperança dos povos.

Jesus sobe a Jerusalém anunciando a chegada do Reino de Deus que  deveria manifestar-se ali, mas de uma forma diferente: com um Templo sem culto sacrifical, aberto para todas as gentes, com uma nova estrutura humana aberta ao senhorio de Deus.

Jesus, Filho de Davi, tinha que subir à cidade de seu antepassado Davi, não para conquistá-la militarmen-te e reinar, a partir dela, sobre o mundo, mas para instaurar ali outro Reinado, fundado precisamente nos pobres e expulsos dos reinos da terra. Para Jesus, Jerusalém deveria ser entendida como centro da nova humanidade messiânica, capital do Reino dos excluídos da velha história humana. 

Jesus tomou a cidade sem conquistá-la. Dom do Reino. A subida a Jerusalém foi um gesto profético, de caráter pacífico (não violento) e por isso de forte conotação política, não na linha da tomada do poder (Jesus não conquistou Jerusalém), senão de oferecimento e comunicação de vida. Não quis invadir a capi-tal com armas e exército, para que mudasse simplesmente de dono (sentando-se sobre o trono de Davi para reinar), nem quis estabelecer um Estado melhor (com bons administradores), senão algo mais revolu-cionário: “tomou” a cidade sem dominá-la, com seu anúncio do Reino e com seu ensinamento.

A entrada de Jesus em Jerusalém nos revela que Ele foi transgressor e rebelde frente ao poder estabele-cido, sobretudo o poder religioso que impõe suas normas de verdade e de pureza acima da vida. Jesus sabia que com isso arriscava a vida. Mas, ao pressentir seu final violento, não arredou pé, senão  que fez frente ao Templo e ao Palácio. O que estava em jogo era mais que sua vida, era a Vida: era a antiga promessa de todos os profetas, era a libertação universal  esperada, era a igualdade de homens e mulheres  ainda sem construir, era a erradicação de toda violência e poder, era a instauração do Reinado da justiça e da paz. Tudo isso estava em jogo, e a fé de Jesus, mansa e rebelde, foi maior que seu medo. Montou sobre um humilde jumentinho e desafiou o Império e o Templo, com suas cortes e legiões e todas as suas inumanas ordens sagradas. 

Jesus entra em Jerusalém rodeado do povo, das pessoas simples. Este povo escravo e oprimido o aclama porque vê em n’Ele uma luz de esperança, de vida, de libertação. Escutaram suas palavras e viram seus feitos durante alguns anos. Escutaram palavras de vida, de justiça, de amor, de misericórdia, de paz...

Viram seus gestos de cura dos enfermos, de defesa dos fracos, de dar alimento aos famintos, de reabilitar os desprezados, de acolher os marginalizados, de enfrentamento dos opressores...

Jesus quer continuar anunciando e realizando na cidade de Jerusalém aquilo que fizera na região excluída da Galiléia; quer também humanizar esta cidade para que ela seja sol de justiça e paz para todos os povos.

E nós, se queremos continuar a percorrer o caminho que Jesus abriu, temos de ser também buscadores de alternativas. Vivemos  em uma sociedade na qual parece que já não é possível outra economia nem outra política, que temos de nos resignar com o que é imposto, que não há alternativas, que só são possíveis pequenos retoques no sistema sócio-econômico que nos rodeia.

Hoje, nós seguidores do Nazareno, temos de crer firmemente que é possível um mundo diferente, uma cidade diferente, uma sociedade diferente onde a fraternidade, a igualdade e a verdadeira democracia se façam realidade. Um mundo, em definitiva, em que se respeitem os direitos de todas as pessoas e os direi-tos da mãe Terra, onde o compartilhar seja o mais normal e natural.

“A fé nos ensina que Deus vive na cidade, em meio a suas alegrias, desejos e esperanças, como também em meio a suas dores e sofrimentos. As sombras que marcam o cotidiano das cidades, como exemplo a violência, pobreza, individualismo e exclusão, não nos podem impedir que busquemos e contemplemos o Deus da vida também nos ambientes urbanos. As cidades são lugares de liberdade e oportunidade. Nas cidades é possível experimentar vínculos de fraternidade, solidariedade e universalidade. Nelas, o ser humano é constantemente chamado a caminhar sempre mais ao encontro do outro, conviver com o diferente, aceitá-lo e ser aceito por ele” (Doc. Aparecida, n.514). 

A espiritualidade da presença cristã no meio urbano convida a descobrir e indicar as presenças reais do Deus que in-habita em pessoas, casas, bairros, povos, cidades e metrópoles. “O coração dos povos é o santuário deDeus”. Trata-se de “passear com o Absoluto pelas ruas da cidade” (Michelstaeder)

O Deus presente nas cidades é um Deus que nos chama e interpela a partir do reverso da história, a partir dos lugares ocultos, dos “outros-espaços” de nossas cidades.

A cidade que Deus quer: uma praça e uma mesa para todos. A praça é de todos e todos podem caber na praça quando esta começa pelas vítimas e pelos últimos, onde todos podem circular livremente, criar relações e convivência, com a experiência de ser aceito e reconhecido como humano. 

A mesa, no centro da praça, é lugar de hospitalidade, de aceitação e de encontro, lugar de chegada e entrada da pluralidade e diversidade como a Nova Jerusalém.

 “Entrar na nossa Jerusalém” é comprometer-nos com uma cidade mais humana e humanizadora; a cidade que sonhamos e que queremos: a Cidade Nova. E o seguidor de Jesus tem em quem se inspirar. 

Texto bíblicoMc 11,1-10 

Na oração: rezar sua presença na cidade onde mora: é presença inspiradora, profética, de compromisso com a construção de relações humanizadoras?...

Fazer “memória” daquilo que é mais desumano na sua cidade: como você reage diante disso? passivo? suporta? denuncia? atua?...

Você participa de alguma instituição, organismo, Ong... que ajuda a humanizar mais a sua cidade?

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI