“Acima dele havia um letreiro: ‘Este é o rei dos judeus’” (Lc 23,38)

 

 

 

Rei, não há outra palavra menos apropriada para Jesus.

Jesus, rei atípico.  Os reis deste mundo vivem às custas de seus súditos.

Jesus reina perdoando, amando e comunicando vida a partir de uma situação de humilhação e impotência extremas.. Um rei crucificado é uma contradição e um escândalo. Lucas nos diz onde e como Jesus ganha este título de rei: na entrega de sua vida até à morte. Seu senhorio é de amor incondicional, de compromisso com os pobres, de liberdade e justiça, de solidariedade e de misericórdia.

 

O título de Cristo Rei corre o risco de ser utilizado de uma forma pagã, como uma pura imitação dos reis deste mundo. O triunfalismo religioso e político tem utilizado este título para defender ideias dominadoras, triunfalistas e conservadoras.

 

Esse é o maior paradoxo da história humana: o Crucificado é esperança dos pobres, dos pecadores e de todos os sofredores. Jesus é Rei desta forma e não da forma triunfalista como querem os cristãos “gloriosos”. Um rei que toca leprosos, que prefere a companhia dos excluídos e não dos poderosos deste mundo. Um rei que lava os pés dos seus, um rei que não tem dinheiro e que não pode defender-se, que não tem exército... Um rei sem trono, sem palácio, sem exército, sem poder.

Jesus crucificado é um estranho rei: seu trono é a Cruz, sua coroa é de espinhos. Não tem manto, está desnudo. Até os seus o abandonaram. Pobre rei!

 

Por isso, para poder aplicar a Jesus o título de “rei”, devemos despojá-lo de toda conotação de poder, força ou dominação. Jesus sempre se manifestou contrário a todo tipo de poder. E não só condenou aquele que submete como também condenou, com a mesma veemência, aquele que se deixa submeter.

Jesus quer seres humanos completos, isto é, livres. Ele quer seres humanos ungidos pelo Espírito de Deus, que sejam capazes de manifestar o divino através de sua humanidade. Tanto o que escraviza como o que se deixa escravizar, deixa de ser humano e se afasta do divino.

 

Jesus quer que todos sejamos reis, ou seja, que não nos deixemos escravizar por nada nem por ninguém. Quando responde a Pilatos, não diz “sou o rei”, mas “sou rei”; com isso, está demonstrando que não é o único, que qualquer um pode descobrir seu verdadeiro ser e agir segundo esta exigência. Há uma nobreza presente em nosso interior e que é ativada no encontro com o outro, através da compaixão, do serviço, do amor solidário...

 

Devemos estar conscientes de que o sentido que queremos dar a esta festa não é aquele dado pelo papa Pio XI, há mais de 80 anos e nem mesmo aquele sentido que é dado pela maioria dos cristãos. Devemos conservar o título, mas mudar a maneira de entendê-lo, ou seja, com o Evangelho na mão podemos continuar falando de “Jesus rei do universo”.

 

Jesus será “Reino do Universo” quando a paz, o amor e a justiça reinarem em todos os rincões da terra, quando todos sejamos testemunhos da verdade, quando em todos os ambientes a mesa do Reino se tornar mesa de inclusão e de acolhida... Jesus será Rei quando estivermos dispostos a fazer descer da Cruz aqueles que estão pendurados nela.

 

O Evangelho da festa de hoje faz parte da narração da Paixão de Jesus. Fixemos nosso olhar nos personagens que assistem ao tremendo espetáculo da crucifixão. O povo estava ali olhando. Não é a multidão que habitualmente O segue, mas pessoas que assistem com curiosidade zombadora. Os chefes, as autoridades religiosas escarneciam de Jesus. Eles conservavam a ideia de um Messias triunfal. Tem um Deus feito à medida de seus interesses. A mensagem de Jesus não os afetou. Julgam-se em posse da verdade.

 

Os soldados também lhe zombavam. Aproximavam-se dele para dar-lhe vinagre. Os executores da violência do poder romano não podiam entender um rei que não fazia nada para defender-se. O letreiro também indicava ironia: “Este é o rei dos judeus”.

Um dos ladrões o insultava: “Não és tu o Messias? Pois salva-te a ti mesmo e a nós”.

Ninguém parece ter entendido Sua vida e Sua mensagem. Ninguém compreendeu seu perdão aos algozes. Ninguém viu em seu rosto o olhar compassivo do pai. Ninguém percebeu que, pendente da Cruz, Jesus se unia para sempre a todos os crucificados e sofredores da história.

 

Mas, em meio aos escárnios e zombarias, brota do coração de um  dos condenados uma surpreendente invocação: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu reinado”. Não se trata de um discípulo ou seguidor de Jesus. Lucas nos apresenta um ladrão como admirável exemplo de fé no Crucificado, que no último instante de sua vida “roubou” a promessa de Vida que acontece  no “hoje”. “Hoje estarás comigo no paraíso”. A narrativa lucana é muito provocativa: o único que o reconhece Jesus como rei é um condenado à morte, um maldito, um marginalizado da lei. Este está mais perto do reinado de Deus que as autoridades religiosas e as demais pessoas. Por isso Jesus o acolhe como companheiro inseparável. Juntos morrerão crucificados e juntos entrarão no Reino de Vida.

 

À primeira vista parece um paradoxo que dos lábios de um homem aparentemente derrotado e praticamente moribundo, brote uma palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a faz eterna, ou seja, válida para todo momento, em um presente sempre atual: o “hoje” de Lucas significa “todo momento”, qualquer instante em que ouvintes ou leitores se abrem à Palavra.

 

A resposta de Jesus diante dos insultos é o silêncio carregado de mistério. Silêncio que poderia ser interpretado como impotência resignada ou reconhecimento do fracasso. No entanto, Ele transforma a onda de insultos em manifestação de misericórdia e salvação. Desse modo, o evangelista parece estar nos dizendo: “Essa Palavra é válida também para ti, hoje, desde que sejas capaz de abrir-te a ela e acolhê-la. Também para ti há uma promessa de vida, que não se acaba na fronteira da morte. Tu também ‘hoje estarás comigo no paraíso’”

Assim compreendida, a narração nos apresenta uma dupla questão: por um lado, como pôde Jesus pronunciar essa Palavra de Vida nessas circunstâncias de morte?; por outro, como podemos acolhê-la, de modo que sejamos alcançados e vitalizados por ela?

 

A festa de “Cristo Rei” nos convida também a tomar a Cruz e “descer” com Jesus até à cruz da humanidade.

 

A solidariedade com os pobres, a fidelidade à vida evangélica, nos fazem descer aos porões das contradições sociais e políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados e difíceis, às periferias insalubres das quais todos fogem e onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o Crucificado, identificado com os crucificados da história.

 

Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor angustiado. Nele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora. Ao ecoar seu grito junto aos crucificados, provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio, mas aponta para a vida.

 

Texto bíblico:  Lc 23,35-43

 

Na oração: o Crucificado desmascara nossas mentiras e covardias; pendente na Cruz Seu grito denuncia o aburguesamento de nossa fé, a nossa acomodação ao bem-estar e nossa indiferença diante daqueles que sofrem. Celebrar a festa do “Cristo Rei” é aproximar-nos mais dos crucificados da nossa história e comprometer-nos a tirá-los da Cruz.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

19.11.2013