“Todos davam testemunho a seu respeito, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam de sua boca” (Lc. 4,22)

4º Dom. Tempo Comum

 

O ser humano é um “corpo falante”.  O “sopro de vida”  passa pelo “sopro da palavra”. “Nós somos palavra”. Somos feitos para a comunhão, para unir as nossas vidas. É graças à força das palavras que derrotamos o silêncio angustiante da solidão, derretemos o gelo da indiferença, aprendemos a “partilhar o ser e o ter”. De modo particular os poetas, os amantes, os místicos e os filósofos perceberam, desde sempre, a força e a sedução da palavra.

 

As palavras conseguem criar pontes, horizontes, chegando a lugares jamais imaginados ou tocados pelos pés de quem a emite. No entanto, elas perdem força quando não nascem do silêncio. O mundo está repleto de papos vazios, confissões fáceis, palavras ocas, cumprimentos sem sentido, louvores desbotados e confidências tediosas, palavras enfeitadas e vazias, sem alma, nem paixão. “Os homens gastam-se tanto em palavras que não podem entender o silêncio de Deus” (D. Helder Câmara).

 

A palavra tem os atributos divinos. Os próprios textos sagrados nos dizem que “Deus é Palavra” e, em Jesus, ela se faz carne. Jesus, a Palavra Encarnada, ajusta sua palavra à Palavra do Pai. As palavras tem um peso no anúncio e na atividade missionária de Jesus; não são neutras. Como um raio x que transpassa, as palavras proferidas por Ele iluminam os recantos mais profundos do ser humano; como um refletor em noite escura, ela reacende a esperança onde tudo já perdeu o sentido; como a chuva em terra seca, ela desperta novidades na vida, sacode as consciências adormecidas, põe em questão as atitudes de indiferença e de fechamento...

 

Enfim, a palavra de Jesus desencadeia nos ouvintes uma crise: eles tem que se decidir porque com a palavra de Jesus se dá uma divisão entre luz e trevas, vida e morte... Quem aderir à sua pessoa e mensagem, encontrará uma saída feliz e libertadora da crise: a vida eterna.

 

Jesus pregou uma mensagem que constituía uma crise radical para a situação social, religiosa, política e humana da época. Proclama o Reino de Deus. A crise que Jesus provoca junto aos seus conterrâneos visa redimir o ser humano, isto é, tirá-lo de seu horizonte limitado e estreito para elevá-lo a um horizonte amplo, próprio de Deus. A crise irrompe quando os dois horizontes se entrechocam.

 

A novidade de Jesus consiste em afirmar que existe um caminho para encontrar a Deus que não passa pelo Templo. Desse modo, Ele aponta para a vida como lugar da Presença. Jesus nos convida a viver o encontro com Deus no centro de nossa pessoa e da vida mesma. E Ele se faz de “espelho” para nós, para nos revelar como é que é uma vida vivida desse modo: uma existência marcada por um amor compassivo e por um compromisso acolhedor.

 

Jesus se tornou um sinal de contradição porque permaneceu absolutamente fiel a uma mensagem, a um modo de agir e a uma missão que havia recebido do Pai e que devia realizar com critérios e opções coerentes com o conteúdo do seu Evangelho.

 

Falar em conflito na missão de Jesus é o mesmo que falar da fidelidade de Jesus. O que tem valor em sua vida é seu Amor fiel, e não os conflitos em si mesmos. A dimensão conflitiva da fidelidade de Jesus à missão é o resultado do confronto entre sua missão (que anuncia a justiça do Reino e as bem-aventuranças) e a realidade que não quer ouvir e rejeita a novidade  do Reino. A conflituosidade na vida de Jesus proveio do choque entre as exigências do Amor e a realidade injusta e pecadora. Jesus não cria conflitos;  Ele  os constata ao dar testemunho das exigências do Amor.

 

Talvez o que mais nos falte hoje em dia seja dirigir nosso olhar sobre “a palavra”, prestar atenção à palavra mesma a partir da espiritualidade. Podemos chegar, assim, ao “interno conhecimento” da palavra, à reverência para a palavra por ser expressão externa da palavra interior escutada no silêncio, por ser palavra “dirigida” a Alguém. Sem dúvida, em nossa sociedade pós-moderna, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Atrofiamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento  esvaziamento de significados segundo nossa conveniência.

 

É preciso uma atenção especial à “palavra ociosa” ou sem direção, a qual não traz benefício próprio nem alheio, nem tem intenção clara. Portanto, “cuidar a palavra é cuidar o mais próprio do ser humano, enquanto que é através dela como se expressa nosso mistério” (Melloni, sj).

 

É preciso “sentir” a palavra, e isso implica um conhecimento espiritual, que não é nem puramente intelectivo nem puramente afetivo. É palavra que procura traduzir a palavra interior, saber “empalavrar”, ou seja “pôr em palavras” nossa realidade interior e exterior.

 

Desde o nascimento até à morte, continuamente estamos “empalavrando” nossos sentimentos, sonhos, aspirações... A palavra abarca todas as expressividades humanas. Ela não se reduz à oralidade. A gestualidade, a linguagem corporal, a presença solidária e compassiva... tudo isso também forma parte da palavra humana. Os comportamentos éticos também e os valores são formas de “empalavramento”. As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, ação, sentimento... Para o ser humano só existe o que  pode ser expresso através das palavras.

 

Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial.

 

Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida. Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco.

 

Jornais, revistas, tevê, outdoors, telefone, face-book, Internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos de poesia.

 

O silêncio é a matriz da palavra. Talhada pelo silêncio, mais significado ela possui. O tagarela cansa os ouvidos alheios porque seu palavreado crônico ecoa sem consistência. Já o sábio pronuncia a palavra - empalavra – lavra a palavra do meio do cascalho de sua vida; ele não fala pela boca, e sim do mais profundo de si mesmo. Ele tem a capacidade de aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e podê-la assim confrontar  com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica.

 

Sabem os místicos que, sem calar o palavreado crônico, é impossível ouvir, no segredo do coração, a Palavra de Deus que neles se faz expressão amorosa e ressonância criativa.

A palavra recém saída do forno da experiência está viva, quente... transforma a vida.

 

Texto bíblico:  Lc. 4,21-30

 

Na oração:

Você é atento ao que fala, o modo como fala, o tom e os sentimentos com que fala?

Você consegue distinguir as palavras que salvam e as que arrasam?

 

Cave palavras nas minas do seu silêncio, e deixe que o Espírito diga a “palavra” misteriosa, diferente, reveladora de sua verdadeira identidade. Somente o silêncio poderá gerar “palavras de vida”.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

01.02.2013