“Ele ensinava nas suas sinagogas e todos o elogiavam” (Lc. 4,15)

 

Lucas nos apresenta Jesus como o grande Mestre: seu ensinamento é novo, pois, ao mesmo tempo que ensina, liberta. O Evangelho de hoje marca o início da missão de Jesus: conduzido pela força do Espírito,  Ele começa justamente lá onde “ninguém era capaz de dirigir o olhar e o coração”.

 

Não há dúvida que Lucas persegue um objetivo claro: fazer deste discurso em Nazaré o programa daquilo que vai ser toda a atuação de Jesus na Galiléia. A cena na Sinagoga em Nazaré é impactante. Não é casual que Lucas a eleja como ponto de partida de todo o ministério de Jesus. Chama a atenção, antes de tudo, a “ousadia” de Jesus: ele, o carpinteiro do povo, sem qualificação alguma, se levanta na sinagoga de seu próprio povo e se reveste da função do escriba, se apresenta como mestre, diante da admiração e espanto de todos.

 

Lucas descreve com todo detalhe o que Jesus faz na sinagoga: põe-se de pé, recebe o livro sagrado, ele mesmo busca uma passagem de Isaías, lê o texto, fecha o livro, o devolve e senta-se. Todos  escutam com atenção as palavras escolhidas por Ele, pois revelam a missão à qual se sente chamado por Deus.

Diferentemente dos mestres da Lei e dos escribas, cujo ensinamento está centrado em “decorar” e conservar a Lei, o ensinamento de Jesus parte da realidade humana de sofrimento, exclusão, preconceito...

 

Aqui estamos numa sinagoga em dia de sábado: lugar e dia de comunhão, de encontro, de festa... No entanto, na mesma sinagoga Jesus convida a ter um olhar mais amplo para a realidade da exclusão. Surpreendentemente, o texto não fala em organizar uma nova religião, de impor a carga de uma nova lei ou de implantar um culto mais digno... mas de comunicar libertação, esperança, luz e graça aos mais pobres e excluídos da terra.

 

A primeira coisa que se destaca, no evangelho de hoje, é a apresentação que Lucas faz de Jesus como alguém que é movido “pela força do Espírito”. Nem sempre somos conscientes das “forças” que nos movem em nosso viver cotidiano, nem das motivações reais que nos impulsionam e nem do sentido daquilo que fazemos (para quê? para quem?).

 

No entanto, o que chama a atenção em Jesus é a clareza de suas motivações e a coerência com as mesmas: é o homem íntegro e verdadeiro, lúcido e transparente. Deixa-se conduzir pelo mais profundo de si mesmo, pelo Espírito; deixa que Deus viva nele; deixa Deus ser Deus nele. Conduzido pelo Espírito de Deus, Jesus se sente enviado aos pobres, orientando toda sua vida para os mais necessitados, oprimidos e humilhados. Esta é a orientação que Ele quer imprimir à história humana. Os últimos serão os primeiros a conhecer essa vida mais digna, livre e ditosa que Deus quer, desde agora, para todos seus filhos e filhas.

 

A missão de Jesus é a de aliviar o sofrimento humano; Ele reconstrói o ser humano ferido, fragilizado, privado de sua dignidade, sem poder dar direção à sua própria vida. Jesus “desce” em direção a tudo o que desumaniza as pessoas: os traumas, as experiências de rejeição e exclusão, as feridas existenciais, a falta de perspectiva frente ao futuro, o peso do legalismo e moralismo, a força de uma religião que oprime e reforça os sentimentos de culpa, as instituições que atrofiam o desejo de viver... Enfim, tudo aquilo que prejudica as pessoas, provoca miséria, tira a dignidade do homem  e da mulher.


Lucas destaca que “todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos n’Ele”. E ao “fixar os olhos n’Ele” os ouvintes são movidos a ampliar o olhar e voltar-se para aqueles que são vítimas do sistema social e religioso de seu tempo.

 

As pessoas percebem n’Ele um novo Mestre, cujo ensinamento desperta o assombro e a admiração. Na pregação e na prática de Jesus nós nos deparamos com uma espiritualidade que vem de “baixo”,  que brota do seu encontro com a fragilidade humana. Ele, conscientemente, se compromete com os publicanos e pecadores, com os pobres e doentes, com os presos... porque sente que eles estão abertos ao amor de Deus. Por isso, a partir do homem Jesus de Nazaré, o conceito de Deus mudou, como também mudou a maneira de encontrá-Lo. Não podemos encontrar Deus senão fazendo o que Ele fez, ou seja, se Deus se humanizou em Jesus, “o único meio de encontrar a Deus é fazer-nos profundamente humanos”.

 

Acontece que, para muitas pessoas, é mais fácil amar a Deus que amar alguém muito concreto, com seu nome, seu rosto, seus defeitos e suas limitações; devem aventurar-se a compartilhar alegrias e sofrimentos, renunciando a muitas coisas às quais seguramente não estão dispostas a renunciar. Portanto, o sentido de nossa existência cristã não está em “divinizar-nos”, mas em “humanizar-nos” (descermos até o fundo de nossa condição humana). Porque o “ponto de encontro” entre Deus e os seres humanos não foi só o “divino”, senão o “divino humanizado”.

 

A questão fundamental é perguntar se nosso Deus quer, antes de tudo, o culto do templo e seus sacrifícios ou prefere, antes de mais nada, que se ponha em prática o programa das bem-aventuranças (traços daquilo que de mais humano existe em nós). Jesus é tão entranhavelmente humano que nos desconcerta a ponto de parecer estranho, extravagante e, para muitos, escandaloso. Mas, precisamente dessa maneira Ele nos revela, não só sua profunda humanidade, senão o grau de “desumanização” a que podemos submeter os outros, sem darmos conta disso.

 

Quando dizemos que “Deus se fundiu com o humano”, na verdade estamos afirmando que o humano é o único meio e a única possibilidade para termos acesso ao divino.

 

Texto bíblico:  Lc. 1,1-4; 4,14-21

 

Na oração: Antes de começar a narrar a atividade de Jesus, Lucas quer deixar muito claro a seus leitores qual é a paixão que impulsiona Jesus e qual é o horizonte de sua atuação. Os cristãos devem saber em quê direção o Espírito de Deus conduz Jesus, pois segui-Lo é precisamente caminhar em sua mesma direção.

 

Não é possível viver e anunciar Jesus Cristo se não é a partir da defesa dos últimos e da solidariedade com os excluídos. Se o que fazemos e proclamamos, como cristãos, não é captado como algo bom e libertador pelos que mais sofrem, quê Evangelho estamos anunciando? A quê Jesus estamos seguindo? Quê espiritualidade estamos promovendo? Estamos caminhando na mesma direção que Jesus caminhou?

 

Esse mesmo Espírito que atuou em Jesus está atuando sempre em cada um de nós. E sob a força do Espírito seremos deslocados para as “margens” da exclusão. Conectemos com essa energia divina que já está dentro de nós, e a espiritualidade será o mais espontâneo e natural de nossa vida.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Coordenador do Centro de Espiritualidade Inaciana - CEI

22.01.2013