“Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas...” (Mt 4,23)

Galileia foi a primeira decisão importante que Jesus tomou no início de sua vida pública. Uma decisão que foi essencial em sua vida, porque Jesus permaneceu na Galileia até pouco antes de morrer. Jesus viu claramente que o melhor lugar em que Ele podia e devia comunicar sua mensagem era precisamente a Galileia. Assim sendo, é evidente que o lugar de onde fala condiciona o que essa pessoa diz. Não é a mesma coisa falar de uma cátedra no Templo que da janela de uma casa simples em um povoado perdido.

“Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar pela Galileia” (At. 10,37), dirá Pedro em seu discurso, batizando para sempre a Galileia como lugar dos começos. Os galileus não viviam preocupados em conservar a memória de antepassados ilustres ou de veneráveis predecessores; nenhum personagem de peso tinha marcado aquela região com sua fama; nenhuma tumba patriarcal a havia convertido em terra sagrada; nenhum profeta ocorreu nascer ali. O pior da Galileia já havia sido descrito por Isaías quando disse: “caminho do mar, do outro lado do Jordão, Galileia dos gentios... (8,28). Respiravam ares de liberdade naquela sociedade mesclada e heterogênea, acostumada ao vai-e-vem das caravanas do Oriente e de muitos gregos e romanos nas ruas das cidades. Havia algo de “marginalidade” em uma Galileia refratária a continuar escutando os discursos, palavras e temas de sempre.

O fato é que Jesus, para realizar sua missão docente, não se dirigiu à capital, Jerusalém, nem à importante província da Judéia. Logo após sua decisão, Jesus foi viver e desenvolver sua atividade, pregar sua mensagem numa região distante, habitada por humildes camponeses e pescadores pobres, pessoas que, naquele tempo, eram consideradas uma população sem influência, que não vivia na abundância e que, ainda por cima, tinha má fama, má reputação. Os “galileus” do tempo de Jesus não gozavam de especial estima (Jo. 7,52); eram considerados ignorantes e impuros com os quais se devia manter distância.

Se efetivamente Jesus queria “evangelizar”, ou seja, comunicar uma “boa notícia” à sociedade de seu tempo, não buscou conquistar para si os notáveis e as classes influentes da sociedade, nem procurou os postos de privilégios, nem o favor dos mais influentes e, muito menos, os que tinham poder e dinheiro. Mais ainda, quando Jesus tomou a decisão de ir pregar na Galileia, o que na realidade fez foi dirigir-se a um país governado por um tirano sem escrúpulos (Herodes) e que não estava disposto a admitir “denúncias proféticas” de ninguém. Portanto, Jesus foi para esta região ciente de que estava “entrando na boca do lobo”. Mas nada disso o desviou de seu projeto de ir em busca dos pobres e dos marginalizados, nem o fez tomar precauções para denunciar as mazelas dos poderosos de seu tempo.

Por isso, Galileia é o lugar da luta e compromisso pela vida, o lugar dos excluídos e desprezados, o lugar do discipulado, o lugar no qual Jesus realizou os gestos libertadores em favor da vida. Todos sabemos que as “mudanças profundas e duradouras” na sociedade não vem de cima, mas de baixo, a partir da solidariedade e da identificação com os últimos deste mundo. Há uma esperança alentadora que vem das periferias e das margens, daqueles que se empenham por imprimir um movimento novo à história; neste lugar está a semente na qual Jesus viu a possibilidade de uma vida diferente, nova e mais promissora. 

E Jesus foi o ponto de partida de uma profunda mudança na história da humanidade.

Foi na Galileia que Jesus anunciou uma notícia alvissareira: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”; foi na Galileia que Jesus lutou contra os poderes que atentavam contra a vida; foi ali  que Ele abriu novo horizonte de vida a todos; foi ali que Ele despertou a esperança no coração de cada um: um mundo de fraternidade, de comunhão, de acolhida, de relações sadias... 

O “Reino de Deus” constituiu o centro da mensagem de Jesus: a utopia que enchia seu coração, embora nunca explicasse seu conteúdo concreto. Poderia ser traduzido como o projeto de uma nova humanidade, centrada na vivência da fraternidade e marcada pela compaixão.

Por isso, o anúncio de Jesus não é, em princípio, uma exigência moral, nem a constituição de uma nova religião, com sua doutrina, normas, ritos... O original na mensagem de Jesus está no chamado a despertar, a tomar consciência da nossa verdade mais profunda. Dessa compreensão brotará uma atitude e um comportamento coerentes com o projeto humano – que é o projeto divino – do “Reino de Deus”. 

Galileia foi também a terra do chamado e do discipulado.

No evangelho de Mateus, a cena do chamado de Jesus nos introduz na dinâmica da troca de olhares. A resposta ao chamado só é possível a partir do olhar inspirador e mobilizador de Jesus, que consegue ter acesso ao seu oceano interior de cada um e faz emergir as ricas possibilidades, criatividades, inspiração... Com sua presença instigante, Jesus desperta, ativa e faz vir à tona o que há de mais humano nas pessoas e o potencializa. Debaixo das cinzas do cotidiano, encontram-se as brasas da paixão, daquilo que é mais nobre. Assim aconteceu no encontro e chamado dos pescadores, homens rudes, mas que carregavam uma nobreza interior; Jesus os desafia a serem mais humanos. “Farei de vós pescadores do humano”.

“Pescar o humano” é trazer à tona o que de humanidade está escondido ou atrofiado em cada pessoa; é ajudar as pessoas a viverem com sentido, tirando-as do mar da desumanização. O chamado-resposta é ocasião para motivar e buscar a inspiração no oceano interior. Jesus revela a extraordinária capacidade de “pescar” o maior bem possível do outro, de fazer brotar o melhor de cada um, sem necessidade de dar-lhe lições ou arrastá-lo com argumentos racionais.

“Pescar o humano” é extrair a melhor e mais original versão humana de cada um, garimpar a autêntica qualidade humana no cascalho das limitações e fragilidades presentes em todos nós. No contexto do chamado-resposta somos mobilizados a viver a experiência de ter os olhos fixos em Jesus e de nos sentir olhados por Ele, deixando-nos afetar pela Sua Pessoa, Suas relações, Sua paixão pelo Reino, Sua missão, Seu chamado...

“Chamado-resposta” implica, pois, uma troca comprometedora de olhares. O olhar transparente e livre de Jesus e sua Palavra mobilizadora ressuscitam o nosso olhar tímido e estreito e nos capacitam a olhar novas realidades: seu povo, seu mundo dividido e excluído... Seu olhar e sua palavra nos predispõem a encontrar motivações saudáveis e maduras que nos permitam olhar e viver no contexto atual e plural com amor, com entusiasmo e criatividade.

Jesus nos precede com seu olhar, se adianta à nossa necessidade, nos convida e nos desafia a ir mais além de nós mesmos, destravando nossa estreita vida; em outras palavras, o olhar de Jesus vai mais além da casca humana para buscar o que é mais nobre e digno em cada pessoa. Este jogo de olhares é humanizador e não possessivo: nosso olhar fixo em Jesus e deixar-nos olhar por Jesus.

Uma vez que levantamos o olhar para Jesus e nos deixamos olhar por Ele, brota a Palavra. Depois do olhar, a Palavra. Depois do amor, a missão. O olhar de Jesus gera uma atitude de serviço.

Texto bíblico:  Mt 4,12-23

Na oração: Ao “fixar seu olhar” em cada um de nós, chamando-nos pelo nome, seremos movidos a fazer opções mais radicais e integrais pelo Reino, segundo o modo de ser, de viver e de fazer do próprio Jesus.

- Sinta-se movido(a) a ser original, criativo(a), audacioso(a) em dar um estilo e um matiz diferente à principal mensagem de Jesus: a doação ao próximo, o serviço gratuito, a presença inspiradora em um mundo que interpela a sair das estreitas fronteiras pessoais.

Pe. Adroaldo Palaoro sj

19.01.23