“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14) 

Nenhuma palavra consegue expressar com profundidade o mistério do Natal que estamos celebrando. Talvez o melhor seria aplicar o provérbio oriental: “Se tua palavra não é melhor que o silêncio, cala-te”. Só em chave de silêncio podemos compreender a Encarnação e o Nascimento de Jesus. O que devemos descobrir não pode vir de fora, mas deve surgir do mais profundo de nós mesmos.

As leituras dos evangelhos indicados pela liturgia para o “tempo do Natal” certamente farão transbordar em nosso interior os sentimentos mais nobres e elevados. Mas isto não basta para nos situar diante do Mistério e vivê-lo com intensidade. Falamos de uma noite surpreendente, mas para a contemplação. Sem esta contemplação, permanecerá um vazio interior, sem nenhum sentido religioso. O valor desta festa depende de nossa atitude. Nada substituirá o itinerário para o centro de nós mesmo. Só ali acontece o mistério; só no mais profundo de nós mesmos descobriremos a presença de Deus. 

Celebrar a Encarnação-Nascimento de Jesus pode nos ajudar a encontrar a Deus dentro de nós e no coração dos outros. Jesus nasceu, viveu e morreu em um lugar e um tempo determinado, mas não estamos celebrando um aniversário. Os dados históricos não têm maior relevância: não sabemos onde Jesus nasceu, não sabemos quando, nem em que dia ou mês. Tudo o que digamos d’Ele, a partir do ponto de vista histórico, aponta para o desconcerto. Não se trata de recordar e celebrar o que aconteceu faz dois mil anos, mas de descobrir o que está acontecendo hoje em cada um de nós. Devemos descobrir, celebrar e viver conscientemente essa realidade sublime. Este é o sentido do Natal.

O que celebramos, na noite de Natal, é precisamente isso: o “sublime Mistério da Encarnação de Deus” em cada coração humano e em todo o Universo.

Como costuma ocorrer com os grandes mistérios da fé, acabamos adocicando e esvaziando o conceito original de “Encarnação”. Preferimos dizer “natal ou natividade”, fazendo referência a um termo latino relacionado com o “nascimento”. Por isso, nos fixamos em um nascimento – o de Jesus – e colocamos à margem o que realmente significa “encarnação”. Talvez, no fundo, “essa coisa de carne” não nos convence muito: é como se fosse algo muito “vulgar”, material, prosaico..., que se conecta com nossa dimensão corporal-sexual.

Afirmar que “Deus se fez carne” é quase uma heresia. Segundo a mentalidade que foi se propagando no cristianismo Deus é o Absoluto e não pode ser “contagiado” com a matéria corporal.

No entanto, a partir da Revelação bíblica, a Encarnação é Deus dentro de nós e dentro de toda a Realidade existente, sem se confundir ou desaparecer no que é perecível, no transitório.

Este é o grande “milagre” de Deus. “O Verbo se faz carne” na pessoa de um Menino que, dentro de sua corporeidade e sua realidade como ser humano verdadeiro “interioriza Deus na Humanidade”.

“Tão humano, tão humano... só podia ser Deus” (L. Boff).

Assim, a moral cristã, durante muitos séculos, alimentou uma espiritualidade “desencarnada”, piegas, cheia de culpas, angústias e remorsos. No fundo, negou-se uma dimensão humana tão nobre: o ser humano “é carne”. É da sua essência. O mistério da Encarnação-Nascimento vem iluminar e dignificar esta dimensão “carnal” que foi tão desprezada e gerou tantos conflitos morais. Na Encarnação do Filho, Deus se faz “carne”, se humaniza; assume e plenifica tudo o que é humano. Nada do humano é considerado como suspeita, fonte de pecado... Afinal, somos obras maravilhosas do Criador.

É preciso superar a pobreza do dualismo “corpo-alma” e retornar à visão antropológica bíblica onde o ser humano não “tem” corpo nem “tem” alma. Ele “é” corpo, “é” alma, “é” espírito, “é” sentimento, “é” relação, “é” afeto, “é” razão... Ele “é”, nas suas diferentes expressões.

A partir da Encarnação do Verbo não dá mais para imaginar um ser humano “compartimentado”, desintegrado, dividido nas suas dimensões existenciais. Ele “é” um todo, integrado, unido, pacificado...

Quão distante estamos da essência do Mistério da Encarnação!

Inácio de Loyola, ao propor a “contemplação da Encarnação”, nos Exercícios Espirituais, afirma: “recordar como as Três Pessoas divinas determinam, em sua eternidade, que a Segunda Pessoa se faça homem, para salvar o gênero humano”.

Encarnação é o mistério fundante de nossa fé a ser vivido e não pensado. A Encarnação não é um evento isolado da história. Toda a Criação foi afetada; todos os fatos da história encontram nela seu sentido. A história humana se faz História de Salvação.

Assim sendo, “Deus não só se encarna; Ele é Encarnação”. A Encarnação não é um ato pontual, mas uma “atitude eterna de Deus”. A Encarnação já começa na criação do mundo: “Tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada se fez de tudo que foi feito” (Jo 1,3); tudo é perpassado pela Sua Presença. Estamos falando do Verbo que tem a ousadia de penetrar as categorias de espaço e tempo, as únicas que nós temos para conhecer em plenitude a realidade de tudo.

Deus já veio, está vindo deste sempre; só o esperamos e o celebramos seu Nascimento de um modo simbólico, religioso, fraternal. Por isso, o Natal é tão inspirador e nos enche de paz, por saber que carregamos Deus dentro de nós, embora nem sempre saibamos disso, nem O vejamos. Deus deixa de ser o eterno desconhecido para se tornar “Emanuel”, Deus conosco. Já estamos salvos porque Deus se “encarnou” em nós, em todos: sem distinção de credo religioso, raça, língua, época em que se viva, idade que tenhamos, etc. “Assim novamente encarnado”, nos diz S. Inácio nos EE (n. 109). Encarnação permanente.

E por isso nos felicitamos, porque não somos órfãos, nem estamos perdidos em um Universo imenso, mas porque Deus é nosso cúmplice, o melhor avalista de que nossa vida é já Vida n’Ele.

Eis o “realismo da Encarnação”! Cada vez mais nos conscientizamos, com maior evidência, de que a Encarnação do Filho é isto: tomar a carne concreta da humanidade para viver nela, a partir dela, através dela, para dignificá-la na sua plenitude.

O Verbo não fez uma experiência de homem, mas, antes, “se humanizou”, se fez “carne”, na expressão de João (1,14). Mas é “Carne” que podemos ouvir, que podemos ver com os olhos, que podemos contemplar ou apalpar com as nossas mãos (1Jo. 1,1); “carne” de presépio e de patíbulo, “carne” de ternura e de coragem, “carne” de trabalho e de descanso; “carne” de homem e de mulher, “em tudo semelhante a nós”.

No Natal celebramos precisamente que Deus se fez “pele” e se deixou impactar por tudo aquilo que o rodeava. Tudo isso é Deus na nossa carne quente e mortal. Um Deus que “adentrou” na humanidade e de onde nunca mais saiu; um Deus que agora pode ser buscado em nossa interioridade e em tudo o que é humano. Na pobreza, na humildade da própria história pessoal, inserida na grande história da humanidade, torna-se possível acolher o dom do amor de Deus visível no Menino do Natal.

Texto bíblico:  1Jo. 1,1-18 

Na oração: No Natal, diante do “Deus Ternura”, nossas reservas de bondade, compaixão, ino-cência, mansidão... são ativadas para dizer “sim” ao incompreensível Amor...

- Alargue seu interior para acolher a surpresa perma-nente da Encarnação d’Aquele que, em sua humanida-de, iluminou e deu sentido a tudo o que é humano.

- Mergulhe na contemplação do “mistério da Encarnação” e deixe ressoar o chamado a ser “presença encarnada” neste mundo tão carente de vida, de beleza, de humanização... 

Desejo a todos(as) um inspirado Natal!

      Pe. Adroaldo Palaoro sj

 22.12.2022

Imagem: adoração dos pastores - Rembrandt

Imagem: adoração dos pastores - Rembrandt