“Que vossos rins estejam cingidos e as vossas lâmpadas acesas” (Lc 12,35) 

morte, sempre estranha e, com frequência, incômoda; e no mundo ocidental ela fica escondida em locais funerários, afastada do ambiente familiar. Sem cair em extremismos, este fenômeno diz respeito a um dos problemas que temos como cultura: falar da morte nos dá medo, mesmo sabendo que é uma das poucas certezas que temos. Preferimos ridicularizá-la, negá-la ou silenciar, antes que reconhecer que é uma dimensão de nossa vida que não podemos ignorar. E é questão de tempo, sempre termina por chegar, em ocasiões de uma maneira inesperada: tantas vidas ceifadas, tantas mortes prematuras, tantas histórias truncadas em muitos lugares de nosso mundo.

São mães, pais, maridos, mulheres, irmãos, filhos, amigos, avós, vizinhos, companheiros de trabalho, de comunidade...; tantos que faleceram por diferentes causas e que estão presentes em nossa memória, na lista de ausências. A morte traz dor pela ausência, saudades pelos momentos que se foram, desejo por um presente no qual não estão. Na fé, que ajuda a trazer um horizonte de sentido, a memória dos que partiram desperta também uma profunda gratidão pelas vidas daqueles(as) que amamos, pelas “marcas” que deixaram em nossas vidas, pelas presenças inspiradoras que despertam uma serena consolação, pela esperança de que, um dia, de outro modo, voltaremos a nos encontrar e não haverá mais tristeza, nem pranto, nem dor... Eles e elas, na vida foram, aos poucos, nascendo e nascendo até acabar de “nascer” em Deus.

A vida se transforma no coração da Vida, em Deus. Então, vale a pena, no dia de hoje, ativar a “memória agradecida”.

Neste Dia de Finados, passarão por nosso coração e pela nossa memória, de um modo muito especial e íntimo, aquelas pessoas que foram e são parte de nossa vida e que, ao fazerem a “travessia” para outra margem continuam presentes, amando-nos e sendo amadas por nós. Precisamos parar um momento e acender uma vela por dentro, e escutar. Escutar os ecos que suas presenças nos deixaram, suas palavras, seus gestos... Quê palavras, olhares, gestos não quero esquecer das pessoas de minha vida que já não estão mais aqui? Segundo Guimarães Rosa, as pessoas não morrem, ficam encantadas no nosso coração e na nossa memória.

Finados é um “dia memorial”: memória agradecida que não nos fixa na saudade do passado, mas, nos ins-tiga a prolongar na nossa vida o modo original de viver de tantas pessoas que agora estão “no coração de Deus”. Este é o objetivo dos ritos de finados: ajudar-nos a processar a vida, a morte, a dor, a alegria..., carregados de oração e emoção que move nosso interior à contemplação.

Eles e elas continuam estando presentes, não só na esperança de futuro. Continuam estando em nós que os recordamos (visitamos de novo com o coração). Continuam presentes no amor que partilhamos, na memória dos abraços que ninguém pode nos arrancar, nas imagens que cada um registra em nossa memória, nas conversações que nos constroem, nas canções que nos fazem evocá-los, no sorriso com o qual acolhemos uma lembrança, naquilo que deles(as) aprendemos, nos sentimentos mais elevados que os fazem sentir orgulhosos de nós. Continuam estando em nós, porque quando amamos, decidimos que alguém permaneça conosco para sempre. Até mais além da vida; até mais além da morte.

Há tanto que agradecer a estas pessoas que, como silencioso fermento, fizeram história com Deus no inte-rior de nossa pobre humanidade. Foram presenças inspiradoras que melhoraram uma parte do mundo e nossa gratidão as acompanha. Ditosos eles e elas, e ditosos também nós porque, na comunhão com aque-les(as) que já vivem a Páscoa definitiva, somos movidos a seguir seus passos pelo caminho da vida, para sermos dispensadores humildes de felicidade, compaixão, mansidão, famintos e sedentos de justiça, de paz.

Sabemos que dentro de cada pessoa encontra-se o desejo de eternidade gravado no coração. É um desejo instintivo de transcender-se para além dos limites que nos apresentam o cotidiano, a rotina, a evidência de que pouco a pouco nosso corpo se deteriora.

Por isso, costumamos nos referir à vida em termos de caminho, itinerário ou processo no qual o traçado do mesmo são nossos próprios passos, um processo em constante ascendência, inevitavelmente atravessado por dificuldades, sofrimentos e crises. E enquanto caminhamos e ascendemos vamos nos dando conta de que o verdadeiro progresso se dá “para dentro”. E o horizonte de eternidade vai se vislumbrando.

A vida é simplesmente eterna. E ela se aninha em nós e, passado certo lapso temporal, ela segue seu curso pela eternidade afora. Nós não acabamos na morte, pois ela representa a porta de ingresso ao mundo que não conhece a morte, onde não há o tempo, mas só a eternidade.

Com a morte começa a vida para sempre, no coração do Deus amor. E se a morte é capaz de nos privar do dom da vida, o “amor tem poder para nos devolvê-la”, nos afirma o bispo Balduino de Cantebery.

Neste Dia de Finados, fazer memória das pessoas que já fizeram a travessia é despertar a reverência pela vida. A vida é tanta surpresa, tanta novidade e riqueza que desperta o assombro e o encantamento.

Fazer memória daqueles que viveram intensamente (mesmo que por pouco tempo) nos mobiliza e nos compromete a viver mais intensamente. E viver intensamente é viver aqui e agora de “modo eterno”.

A vida é dom que não pode ser desperdiçado. Para quê viver? Tem sentido? Quê marcas quero deixar?...

Alguém já afirmou que a morte é a realidade mais universal, pois todos morrem, mas nem todos sabem viver. Por isso, viver é uma arte; é necessário reinventar a vida no dia a dia, carregá-la de sentido.

“A tragédia não é quando um ser humano morre; a tragédia é aquilo que morre dentro da pessoa enquanto ela ainda está viva” (Albert Schweiter). 

Quem viveu intensamente deixa “marcas”; fazemos, então, memória dessas marcas. “Aquilo que a memó-ria amou fica eterno” (Adélia Prado). A memória é a presença da eternidade em nós. Tudo o que recor-damos da pessoa que “já partiu” é semente de eternidade. Sua passagem entre nós não foi em vão.

A vida é feita de partidas e chegadas. De idas e vindas. De travessias. Assim, o que para uns parece ser a partida, para outros é a chegada. Nesse caminho em direção à plenitude, um dia, todos nós partiremos como seres imortais que somos ao encontro d’Aquele que nos criou.

Portanto, como seguidores de Jesus, no Dia de Finados vamos celebrar a vida, a vida verdadeira, a plenitu-de dos irmãos que já vivem para sempre, que estão no coração de Deus. Porque a vida, como um rio, tem duas margens; a ponte para cruzar de uma margem à outra é construída diariamente com o amor, a fraternidade, a solidariedade, a esperança..., que ao longo da vida vamos semeando em nós, nos outros e na criação, dando a esta vida uma dimensão celestial.

A vida se expande quando compartilhada e se atrofia quando permanece no isolamento e na comodidade. E a morte é o ins-tante da expansão plena para aquele que soube dar um sentido inspirador à sua existência. Podemos afirmar, então, com muita propriedade, que todos morremos para o interior da Vida.

Texto bíblico:  Lc 12,35-40

Na oração: Para viver despertos é importante viver com mais calma, cuidar do silêncio e estar mais atentos aos chamados do coração. Só quem ama e serve, vive intensamente, com alegria e vitalidade, despertado para o essencial. Uma certeza podemos ter: o Espírito está sempre pronto a criarrecriar, a transformar, a renovar “fazer novas todas as coisas”, abrindo-nos a um novo tempo com a feliz esperança de “novos céus e nova terra”, num mundo outro e pleno de vida.

No “silêncio memorial” cala a palavra, mas o coração sente a voz daqueles(as) que já estão no silêncio pleno de Deus. Deixe vir à tona a presença de pessoas que fizeram “diferença” na sua vida. Alimente gratidão.

Pe. Adroaldo Palaoro sj

02.11.22

Imagem: pexels.com