Jesus, porém, passando pelo meio deles, continuou seu caminho” (Lc 4,30)

Continuamos com o tema do domingo passado. A expressão “hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir” faz conexão com o relato anterior. “Hoje” se cumpre essa Escritura em cada um de nós; é preciso abrir espaço para que Deus cumpra sua vontade amorosa em nossas vidas; Ele não força nem impõe nada: “que se cumpra”, depende exclusivamente de nós. Somos nós que temos continuamente de nos perguntar: “cumprimos essa Escritura que acabamos de ouvir?”

Até o leitor menos atento ficará surpreso com a dissonância que aparece no relato deste domingo: diante da aprovação e admiração que seus conterrâneos expressam, Jesus responde com repreensões, e a cena se conclui com sentimentos de fúria por parte dos ouvintes na sinagoga, a ponto de terminar em tragédia.

Se estivermos bem atentos ao texto, perceberemos que o motivo do conflito e da fúria dos ouvintes parece claro: embora citando dois grandes profetas de Israel – Elias e Eliseu -, Jesus deu destaque a dois personagens estrangeiros como referência (viúva de Sarepta e Naamã, o sírio), em detrimento dos personagens do próprio povo. Para um judeu piedoso era inadmissível que qualquer pagão recebesse um favor divino, antes de alguém pertencente ao “povo eleito”. 

Elias e Eliseu são exemplos como Deus atua com relação aos não-judeus. Elias atendeu a uma viúva de Sarepta e Eliseu a um general sírio, e isso deixa em evidência a pretensão de salvação exclusiva que os judeus pretendiam, como povo eleito.

O evangelista Lucas quer “quebrar” este argumento contundente; Jesus desmascara a cegueira coletiva e isso provocou a ira de seus vizinhos que se sentiram agredidos.

“Não é este o filho de José?”. A única razão que os membros de seu povo dão para rejeitar as pretensões de Jesus, é que Ele é mais um do povo, conhecido de todos.

No entanto, aqui está a grandeza de Jesus: sendo um entre tantos, foi capaz de descobrir o que Deus esperava dele. Jesus não é um extraterrestre que traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira das profundezas de seu ser aquilo que Deus já colocou em todas as pessoas. Jesus fala do que encontrou dentro de si mesmo e nos convida a descobrir e viver em nós o mesmo que Ele descobriu e viveu. 

Jesus poderia ter dito muitas coisas aos seus ouvintes, para tranquilizá-los: explicar que Deus não escolhe os seus enviados entre os grandes deste mundo, mas sim entre os pequeninos, a exemplo de Davi, o filho caçula de Jessé. Poderia ter-lhes dito que se tornariam mais imagem de Deus se dedicassem um cuidado especial aos cegos, aos prisioneiros e aos outros deserdados, vítimas do contexto social, político e religioso da época.

No entanto, em lugar de tranquilizá-los, Jesus vai inquietá-los ainda mais. Recorda-lhes, então, que Deus, em tempos de penúria e sofrimento, foi em socorro de estrangeiros, de pagãos, sem qualquer ligação com o povo eleito. Temos aí, em todo caso, o que provocou a indignação dos ouvintes de Jesus. No fundo, o culto a Deus cedeu lugar ao culto ao povo eleito. Este tipo de idolatria não é raro e pode assumir diversas formas: o culto à classe social, à família, à nação, às relações vantajosas, etc.

Tal idolatria chegou ao extremo a ponto de levarem Jesus para fora da cidade, a fim de matá-lo.

É uma antecipação da Páscoa, claro: Hebreus 13,12 destaca que Jesus foi crucificado «fora do acampamento». Mas é este excluído que vai integrar todo o universo com sua presença salvífica. 

Como humanos, todos temos a tendência por estabelecer distância entre o próprio grupo – tribo, parentela, família, povo, religião, nação – e todos os demais grupos. Trata-se, sem dúvida de um movimento de autoafirmação, de busca de segurança e defesa frente o diferente. Se, unido a tudo isso, advertimos que nossas próprias crenças são questionadas, é provável que se despertem sentimentos de agressividade, que não são outra coisa que expressão do próprio medo.

Muitas vezes, o zelo religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e fanatismo.

A intolerância e o fanatismo são uma expressão de atrofia espiritual e que tem graves consequências na vida social e no diálogo inter-religioso. É a incapacidade de aceitar os outros em razão de suas ideias, convicções ou crenças. É uma grave debilidade que torna impossível “viver a cultura do encontro” entre pessoas e grupos humanos que pensam, sentem, creem de maneira diferente.

É profundamente desumanizador quando alguém se fecha na cegueira de suas próprias ideias, crenças, ideologias... Frente a essa tendência ancestral e, com frequência, virulenta, uma atitude madura e compreensiva relativiza muros e fronteiras, reconhece a identidade comum e  torna possível a vivência da alteridade, no respeito e na confiança compartilhadas. 

É o que apreciamos nas pessoas sábias, como se mostra neste caso em Jesus. Sarepta, Síria, Israel:  por que a diferença deveria ser entendida como enfrentamento ou exclusão?

Ao compreender o que somos, se distendem as rigidezes instintivas do ego e a intolerância dos esquemas mentais que se expressam nas relações sociais, no campo da política, da religião... São mecanismos de defesa ativados automaticamente, mas carentes de sentido quando nos situamos na compreensão daquilo que somos, ou seja, humanos. 

É evidente que aquela mesma resistência contra Jesus se reproduz hoje: argumentos batidos e arcaicos são tomados como pretexto para que seja recusada a verdade presente no outro.

Se em todos os aspectos da vida se faz presente a inércia do costume, mais ainda no campo religioso: há um tradicionalismo de manter intocável o que foi recebido, como se nisso perigasse nossa fé. Sempre fazemos o mesmo e não nos paramos para analisar, para introduzir mudanças e avaliá-las.

É necessário superar a inércia da rotina, do de sempre, do estabelecido. Para não entrar em processos esquizofrênicos é preciso, muitas vezes, desaprender o aprendido. Pensemos, repensemos, provemos, inovemos... Não é esnobismo, nem desejos superficiais de mudar por mudar, mas necessidade de questionar aquilo que não convence e nem serve mais, e buscar o que é mais coerente e essencial.  Desconstruir para reconstruir. É um trabalho que é preciso fazer a partir de baixo. Não esperemos que as mudanças venham de cima.

É essa mesma compreensão que nos permite “abrir passagem” e “afastar-nos” dos preconceitos e intolerâncias que nos isolam, nos empobrecem e, em ocasiões extremamente cruéis, desembocam em tragédias. Somente tomando um mínimo de distância de nossos próprios mapas mentais, legalismos, suspeitas... seríamos capazes de rir de nós mesmos diante de tão cegos padrões de pensamento e comportamento; só assim poderemos suavizar nossa rigidez, ampliar horizontes, celebrar e viver a unidade compartilhada em tanta diversidade de maneiras de ser e de viver. 

Texto bíblico:  Lc 4,21-30

Na oração: Aliado ao conformismo e à segurança está o medo da Mudança; fechamo-nos no conhecido por medo do desconhecido. Marcados pela “normose” (normalidade doentia), ficamos encapsulados num quadrado “mofado”, trancafiados por normas parentais, sociais, culturais e religiosas.

- Também na nossa sinagoga interior carregamos intolerâncias, preconceitos, fanatismos... que depois se expressam no julgamento e na indiferença frente aos diferentes.

- Quê sinais de intolerância e preconceito percebo em minha vida cotidiana? Quando aparecem?

- Minha relação com Deus é intimista ou me abre a uma presença sadia diante de quem pensa-sente-ama de maneira diferente? Sou presença ecumênica ou carregada de suspeita?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

27.01.22