Bendita a sede
por arrancar nossos olhos
da pedra.
Bendita a sede
por ensinar-nos a pureza
da água.
Bendita a sede
por congregar-nos em torno
da fonte.
(Orides Fontela)
Não é por acaso que começo essa conversa com um poema. Como sempre acontece, nele podemos fazer muitos itinerários e eu espero e desejo que cada um de nós possa fazer o seu. Eu lhes proporei alguns, nesse caminho que eu considero uma possibilidade de humanização, e por isso mesmo, desdobrável e múltiplo. Lembro-lhes que aqui também não se trata de uma crítica literária.
A autora repete três vezes uma bênção. E ela bendiz a sede. Curioso que ela nos lembre isso. Porque bem dizer a sede? Habitualmente somos convidados a evitar o desconforto da sede, um estado de privação. Minha boca está seca. Preciso urgentemente de água. Então, porque bendizer a sede?
A sede é o reconhecimento de que somos humanos, que estamos em estado permanente de construção da nossa humanidade. Não estamos prontos em nenhuma instância. Somos seres a caminho. Qual é a nossa sede? Sede de humanidade, sede de humanização.
E o que nos torna humanos são os nossos afetos. Somos afetados pela vida que nos constitui. A nossa imersão no tempo e no espaço da qual emergimos fazendo poesia, contando as nossas histórias. Temos sede de contarmos as nossas experiências de alegria e de dor. Basta pensarmos nas histórias e canções que nos ensinaram do amor e da coragem de existir.
Bendita a sede por arrancar os nossos olhos da pedra.
É um verbo forte: arrancar. A sede arranca os nossos olhos da tentação da saciedade. Temos uma tendência irresistível para a mesmice, para ficarmos instalados na nossa própria compreensão da realidade, agarrados às nossas verdades pré-concebidas para não sermos despertados do sono que nos aliena de nós mesmos, dos outros e do mundo. Surpreendidos pela sede, somos des-instalados e lançados para uma existência que nos transcende, abertos a outras possibilidades para além daquelas conhecidas.
A sede, o estado de inacabamento próprio do que é humano, movimenta o nosso olhar para além da pedra. Com muita facilidade nos desumanizamos, perdemos o nosso jeito de aprendiz, deixando de reconhecer a eterna novidade do mundo.
Bendita a sede por ensinar-nos a pureza da água.
Só a sede nos dá a conhecer a água. Só o nosso olhar, arrancado da pedra, é capaz de nos ensinar que a vida tem um sabor, que a vida pede saboreá-la. O sentido da vida nós o captamos através dos cinco sentidos. Saborear supõe paciência. As pessoas sábias são aquelas que saboreiam o gosto do viver. Aí voltam as histórias. Elas nos contam ‘o sabor das massas e das maçãs’ que o Almir Sater canta em ‘Tocando em frente’. É na lembrança do sabor da água fresca que podemos bendizer a sede que volta e nos arranca da nossa aridez.
Bendita a sede por congregar-nos em torno da fonte.
O que nos congrega é sempre maior do que a gente mesmo. Ouvir a quem nos chama. Sem a sede ficamos surdos para os chamados, cegos para o reconhecimento das fontes. É preciso espiritualizar a nossa vida cotidiana, porque ela tem uma dimensão muito maior do que aquela que nos aponta a necessidade. Não somos necessidade pura em nenhum momento da nossa existência. O que nos congrega em torno da fonte é a sede de humanidade que nos sustenta no caminho.
Num texto inspirado, o Pe. Adolfo Nicolas, superior da Companhia de Jesus (jesuítas), sugere três dimensões importantes para a vida de uma comunidade profética. Um outro modo de bendizer a nossa sede:
Profundidade: para que não nos percamos na superficialidade ou na mesmice (arrancar os nossos olhos da pedra). Jesus nos pede para entrarmos no tempo de Deus. A contemplação cultiva processos lentos e profundos.
Criatividade: para entrarmos nos mundos novos e responder de maneira adequada (saborear a pureza da água). Jesus exposto e encarnado. Ele é o abraço de Deus, acessível a todos os nossos sentidos. Quando O contemplamos, os nossos sentidos se convertem.
Espiritualidade: é a vida no Espírito que leva à transformação (congregar-nos em torno da fonte). Na contemplação, Deus não impõe, mas propõe, oferecendo opções de vida. E nos acompanha nesse caminho.
Na formação de catequistas, em todo processo de educação da fé, na vida cristã, nossa missão é a de despertar a sede, como Jesus fazia.
Fátima Fenati
Psicanalista e membro da Equipe do Centro Loyola-BH
15.09.2012