Olá, faz um tempo que não escrevo aqui na coluna de Catequese na era digital, mas neste cenário em que as pessoas no mundo inteiro são convidadas ao isolamento social e nossas igrejas estão de portas fechadas é impossível não refletir a esse respeito. Eu também estou em casa cumprindo as medidas preventivas, o que me possibilita a escrita desta breve reflexão. Desde 2015 dou formações para catequistas, agentes e líderes pastorais sobre catequese, evangelização e pastoral na era da conectividade, destacando a importância de refletir sobre este ambiente de comunicação que compartilhamos, que não substitui o encontro físico face-a-face, mas pode complementar e enriquecer a relação, ser um elo com a comunidade e um alimento diário para a vivência da fé cristã. Agora neste contexto de calamidade decorrente da pandemia do coronavírus, considerada a maior crise da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial, todos os campos da sociedade precisam se remodelar, e o que era antes um ambiente complementar torna-se a base para se manter o funcionamento dos sistemas sociais que gerem a nossa vida cotidiana.

O processo de digitalização dos serviços públicos e privados, comerciais e sem fins lucrativos chega nesta demanda por isolamento físico das pessoas ao seu ultimato. A sociedade em rede não é apenas uma teoria sociológica de Manuel Castells, mas uma realidade compartilhada em todo o planeta. O que era uma possibilidade, potencialidade, ou serviço secundário, torna-se o principal e talvez o único meio de comunicação entre pessoas. Isso traz outras questões relacionadas, como a necessidade de inclusão digital a toda a população, de formação dos mais idosos sobre como utilizar os dispositivos eletrônicos, de tornar gratuito o acesso à internet e disponibilizar aparelhos digitais a famílias carentes.

O cenário eclesiológico também é totalmente transformado pelo fenômeno social que estamos vivendo. Há poucas semanas a participação de missas e bençãos através dos meios de comunicação não eram muito estimuladas, apenas em casos de impossibilidade eram consideradas uma ação benéfica. Hoje que todo o povo de Deus está impossibilitado de ir ao templo prestar culto, a participação da celebração eucarística midiatizada torna-se a norma padrão da Igreja. Quando não é possível a comunhão física do Corpo de Cristo, a comunhão espiritual torna-se acessível através da rede. Para manter a comunidade viva e unida e não deixar ninguém sentindo-se só e abandonado, o encontro no ambiente digital é amplamente incentivado. Mas atenção, precisamos ser conscientes de que isso traz uma grande mudança. Como Heidi Campbell salienta em suas pesquisas, o uso eclesial das mídias digitais não é apenas uma oportunidade de comunicação, mas modifica a identidade da própria Igreja.

O pensamento de alguns teólogos e teólogas que, como eu, estudam o fenômeno da cultura digital na vivência da fé tornam-se evidentes em tempos de COVID19. Deus pode habitar o ciberespaço através de cada um de nós que estamos ativamente presentes na rede, que buscam viver e testemunhar a sua comunhão no Espírito com Deus. E a natureza conectiva da rede mundial de pessoas, através de cada fiel, pode transformar-se em rede eucarística, no “Reino Conectado de Deus”, usando a expressão de Dwight Friesen. Atualmente, o Corpo Místico de Cristo é formado significativamente pelo Corpo Conectado de Cristo.

De um dia para o outro, igrejas e religiões no mundo todo precisaram se reinventar ou melhor, repensar a sua prática por causa das medidas preventivas contra a pandemia. Assim, num primeiro momento, ocorre a migração das práticas tradicionais da fé para o ambiente digital, precisando adequar-se as limitações e possibilidades que a rede oferece para a experiência religiosa e convivência humana. Dentro dessa perspectiva, podemos citar como exemplo as incontáveis “Lives”, transmissões ao vivo, que estão se proliferando nas redes sociais, tanto de celebrações eucarísticas ou somente da Palavra de Deus, quanto formações sobre inúmeros temas relevantes para a realidade atual. Numa segunda etapa de habitação do ciberespaço, começam a surgir iniciativas de práxis religiosa próprias das características da rede, essas ainda são poucas.

Da mesma maneira a Igreja Católica foi impelida pela situação atual a uma “nova saída missionária” nas “estradas digitais”, usando expressões do Papa Francisco, para manter acesa a chama do amor de Deus nos corações, trazendo esperança e calor à humanidade. Ao anunciar o Evangelho oportuna e inoportunamente, com inovação e criatividade, a Igreja muitas vezes “acidenta-se” pelo caminho com iniciativas equivocadas que viram até memes, mas preferimos essa Igreja que se arrisca, sai de si mesma e caminha com seu povo onde quer que ele esteja e necessite, sendo esse canal da graça divina e sinal visível da graça invisível, seja no ambiente físico ou digital, do que uma igreja fechada, inativa e “doente de auto-referencialidade”.

Diversas questões surgem dessa nova experiência de Igreja e sociedade, questões importantes para o agora do Cristianismo, mas também para seu futuro. Podemos aprender muito nesse tempo de quarentena. É um tempo de grandes desafios, medos, tragédias humanas, mas também um tempo favorável a reflexão, ao exame de consciência pessoal, comunitário e social. É um tempo de amadurecimento e revisão de vida, reavaliar como estamos vivendo, se estamos realmente priorizando o que e quem é essencial. Também em nossa prática da fé somos chamados a repensar o que nos é indispensável.

Nestes tempos emergenciais de participação digital das celebrações eucarísticas, somos compelidos a repensar a fisicalidade de nossas ações litúrgicas e sacramentais. Isso não significa afirmar que a comunhão espiritual através dos meios digitais substitui a comunhão física presencial. Porém, faz-nos pensar no real valor do ensinamento que Jesus revelou à samaritana: “Acredita-me, mulher, vem a hora em que nem nesta montanha nem em Jerusalém adorareis o Pai. [...] Mas vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura” (Jo 4, 21b e 23). Percebemos as diversas formas de oração e adoração ao Pai que podemos realizar em nossas casas com nossas famílias e no ambiente digital, e que a graça de Deus ultrapassa qualquer limite espaço-temporal que podemos imaginar.

Estamos aprendendo não apenas a viver bem nos tempos de COVID19 e de ser Igreja na era da conectividade, mas também o que significa e como ser Igreja digital. Os membros do povo de Deus, especialmente os sacerdotes, em meio a pandemia receberam a urgente missão da alfabetização digital, isto é, de nos esforçarmos a aprender as ferramentas digitais disponíveis para o serviço pastoral e ainda a desenvolver uma reflexão consistente sobre as tecnologias digitais.  Todos nós estamos neste grande laboratório global, nesta pesquisa de campo, todos nós somos chamados a tarefa da ciberteologia ou teologia digital, isto é, pensar a fé cristã, sua vivência e ensinamentos, em tempos que a comunicação em rede se torna o principal meio de comunicação e relação humana.

Aline Amaro da Silva

Referências:

BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus, 2002.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2008. v.1.

CAMPBELL, Heidi A; OSTEEN, Sophia. Research Summaries and Lessons on Doing Religion and Church Online (Working Paper). Texas A&M University, 2020. Disponível em: https://oaktrust.library.tamu.edu/bitstream/handle/1969.1/187806/White%20Paper-Religion%20Online%20Research-FINAL-March%202020.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 02 de abr. de 2020.

FRANCISCO. Mensagem para o 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais: Comunicação a serviço de uma autêntica cultura do encontro. Roma, 2014. Disponível em: http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications/documents/papa-francesco_20140124_messaggio-comunicazioni-sociali.html. Acesso em: 02 de abr. de 2020.

FRIESEN, Dwight J. Thy Kingdom Connected: What the Church Can Learn from Facebook, the Internet, and Other Networks. Ada, MI: Baker Books, 2009.

SILVA, Aline Amaro da. Cibergraça: fé, evangelização e comunhão nos tempos da rede. Diss. (Mestrado em Teologia) – Faculdade de Teologia, PUCRS. Orientador: Prof. Dr. Érico João Hammes. Porto Alegre, 2015. Disponível em: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/5993/2/468444%20-%20Texto%20Completo.pdf. Acesso em: 02 de abr. de 2020.