A seta
De acordo com o capítulo primeiro do livro do Gênesis, Deus criou o mundo em seis dias, no último o ser humano, homem e mulher e descansou no sétimo, iniciando aí o shabat, o repouso, o dia de descanso semanal. A ciência moderna fala em milhões de anos de evolução até aparecer o primeiro ser humano na terra.
Seria possível conciliar as duas coisas? Quem sabe os seis dias não são as etapas dessa longa evolução? Se dissermos que sim, quem sabe seria possível salvar as duas coisas: as teses dos cientistas, que cada dia mais se confirmam, e o que diz a Bíblia? Quem sabe a grande explosão inicial, o “big bang”, não poderia corresponder ao “Faça-se a luz!” da Bíblia?
Ou então, nada de “big bang”, o mundo foi criado mesmo em seis dias de vinte e quatro horas, contados de pôr de sol a pôr de sol. Não é assim que está na Bíblia? Deus não tem poder para fazer isso?
A Meta
A primeira estória da criação na Bíblia vai do início do livro do Gênesis até a primeira parte do versículo 4 do capítulo 2 do mesmo livro. Em Gn 2,4b começa uma segunda estória da criação um pouco diferente. A primeira, a da criação em seis dias, não se baseou nas teses da ciência atual e nem poderia fazê-lo. Baseou-se nos mitos ou estórias imaginárias que havia no tempo e no lugar em que foi escrita. Sua meta ou objetivo não é justificar ou confrontar a ciência atual, é confrontar e utilizar-se dos mitos ou estórias fabulosas que havia quando e onde foi escrita.
O povo tinha sido levado como escravo para a Babilônia, onde não havia descanso semanal. As estórias da criação que lá havia diziam que o mundo foi criado por acaso, como consequência da luta entre os deuses, ou, então, que os deuses maus ou demônios é que tinham criado o mundo material e que, por isso, a matéria é coisa má, ruim. Além dos astros, que eram adorados como deuses, havia muitas e belas imagens dos deuses, que poderiam fascinar o povo hebreu escravizado, que não tinha tradição de fazer imagem de Deus.
É preciso haver um shabat, um dia de descanso semanal. Por isso aqueles mitos da criação são adaptados para a criação em seis dias, pois, se até Deus descansou, por que nós temos que ficar sem descanso semanal?
O mundo não foi criado pelas lutas entre os deuses, como deuses da luz e deuses das trevas, deuses das águas e deuses das terras etc.. O Deus único é que decidiu criar, foi ele que separou a luz e as trevas, as águas e as águas, as águas e a terra e criou tudo apenas com a força da sua palavra.
O mundo não foi criado pelos deuses maus, os demônios do mundo babilônico ou persa. Isso não existe. Em consequência, o mundo material não é coisa má. Tudo foi Deus quem fez e ele viu que tudo era bom. Se há alguma coisa má no mundo foi a liberdade mal orientada do ser humano que a produziu.
Os astros, o sol a lua e as estrelas não são deuses a serem adorados, são criaturas do Deus único, feitas em função do ser humano, a fim de marcas os dias da semana, os meses, as datas das festas e celebrações do povo hebreu. O povo e sua fé estão acima de tudo.
Imagem de Deus só há uma, o ser humano mulher e homem. Deus é que criou a diferença de gêneros, não foi o demônio. Imagem de Deus não são as estátuas fabricadas pela mão do homem. Deus é invisível, a verdadeira face de Deus é desconhecida, está fora do alcance da imaginação humana. Deus é o Totalmente Outro, não podemos reluzi-lo a qualquer imagem da nossa imaginação. Se há algo que se pareça com Deus é o ser humano.
E, tendo criado o ser humano homem e mulher à sua imagem e semelhança, Deus viu tudo o que tinha feito e viu que tudo era muito bom. Depois disso, o descanso, o shabat de Deus.
Os autores sagrados, as pessoas de fé que escreveram essa estória não achavam que Deus tivesse se cansado de dizer “faça-se isso” ou “faça-se aquilo”. Quando escrevem que Deus “descansou de toda a obra que fizera”, querem mostrar Deus respeitando, valorizando e santificando a tradição judaica do shabat, fortalecendo a fé do povo dominado e escravizado que corria o risco de perder a própria identidade. Tudo vem reforçar a cultura e a fé de um povo. Em tudo na vida Deus está presente.
Pe. José Luiz Gonzaga do Prado
Tradutor da Bíblia da CNBB, Professor de Sagrada Escritura
01.02.2013