Coube a Marcos resgatar as memórias de Jesus no seu cotidiano e no seu convívio com os discípulos, bem como credos e hinos que lembravam a sua encarnação, a crucifixão e a ressurreição. Recuperava, assim, a imagem do Jesus humano, com toda a sua capacidade de resgatar e comunicar a vida. As memórias registradas traziam, além dos traços próprios de Jesus, muitas projeções e interpretações marcadas pela cultura de seu tempo e de seu povo.
Marcos, ao redigir sua obra literária sobre Jesus e seu discipulado, criou um gênero literário próprio que passou a ser chamado de “evangelho”. Ele traz consigo marcas e fragmentos de vida de muita gente que o precedeu na fé, nos estudos e na busca da melhor compreensão para a vida e a organização da comunidade. A intenção de Marcos é resgatar a importância do Jesus terreno para a vida das comunidades e para o anúncio da fé. Com o Evangelho, a Boa Notícia, Marcos quer fortalecer a fé, renovar a esperança e acalentar o amor, considerando as experiências das comunidades. Seus destinatários são cristãos gentios, porém ligados a uma origem palestinense.
Segundo a tradição, o evangelho teria sido composto em Roma. Mas o Evangelho faz alusão a um contexto marcado pela deflagração do movimento rebelde na Judéia e na Galileia no ano 66, quando os exércitos romanos foram enviados para sufocar a rebelião. Considerando esse contexto, pode-se dizer que o Evangelho foi escrito na Galileia ou na Síria, durante o período da revolta Judaica.
A estrutura do Evangelho
Ao apresentar seu Evangelho, Marcos oferece uma estrutura que nos ajuda a percorrer o caminho e entrar na dinâmica de Jesus.
No prólogo Marcos apresenta a Boa Nova (o evangelho) de Jesus, Filho de Deus (Mc 1,1). Essa Boa Nova é a Revelação da própria pessoa, das palavras, dos gestos e da obra de Jesus. Mostra-nos Jesus, Filho de Deus, no meio de nós, na história.
Marcos introduz Jesus que se aproxima de João como um de seus discípulos (1,9).
Jesus recebe o Espírito (1,10-11) e é conduzido ao deserto, onde é tentado por satanás. (Mc 1, 12-13).
Quem é Jesus de Nazaré para a comunidade de Marcos?
Marcos apresenta Jesus com vários títulos salvíficos: Filho de Deus (1,1); Filho do Homem (2,10), Messias (1,1), Senhor (1,3), Filho de Davi (10,47-48), Santo de Deus (1,24), Profeta (6,4), Mestre (5,35), pastor (14,27), Nazareno (1,24).
Jesus é mestre, ensina com autoridade, e as pessoas ficam maravilhadas e estupefatas, reagem aderindo ou se opondo a ele (11, 15-19). O Reino de Deus é o centro do ensino e da práxis de Jesus. Ele não se presta a formar uma teologia da glória, triunfalista. O Evangelho aponta para o segredo a respeito de suas práticas terapêuticas e exorcistas. (1,34.44; 3,12; 5,43; 8,26). Este segredo nem sempre se impôs (5,14.20; 7,36 e outros). E ele deverá ser rompido por ocasião da experiência da ressurreição de Jesus.
Na segunda parte aberta pelo capítulo oito, o Evangelho aponta para as consequências, não apenas da praxis e do caminho de Jesus, mas também dos discípulos (8,31-9,1 – resistência e renúncia; 9,31-37 – ensino e serviço, 10,32-45 – inversão de valores e relações). É o árduo caminho a Jerusalém. Assim como o Evangelho de Jesus não objetivou pompa e glória, mas culminou na cruz, ali em Jerusalém e nos arredores, somos desafiados a conhecer e acolher o caminho da cruz. O discípulo deve se colocar a caminho em humildade e resistência.
O evangelho orienta que o caminho percorrido por Jesus não é a glória, o palácio, a catedral... Nesse caminho podemos perceber a centralidade da compaixão de Jesus em sua práxis libertadora com pessoas nas estradas , nos campos, nas casas, sinagogas, a cruz e o recomeço. Essa compaixão vem acompanhada de palavra, olhar, gesto, toque, abraço, autoridade, ternura e radicalidade. Ela proporciona um caminho que leva à transformação da vida das pessoas que necessitam de ajuda e, ao mesmo tempo, modifica ou resignifica a vida de quem age com misericórdia. É também caminho de cruz porque a inversão proposta vai contra pessoas, estruturas e sistemas de poder que se opõem à proposta do Reino de Deus.
Faz-se necessário conhecer esse caminho realizado por Jesus. Não basta apenas olhar e tentar compreender o que Jesus fez, mas também se colocar a caminho, como fizeram seu discípulos, os quais deveriam fazê-lo novamente a partir da Galileia. Sobre esse caminho do discipulado vamos conversar na próxima edição.
Neuza Silveira de Souza
Coordenadora da Comissão Bíblico-Catequética
da Arquidiocese de Belo Horizonte