“A festa de Corpus Christi quer nos fazer recordar que CORPO é cálice, onde se bebe o vinho da alegria e da salvação, inserido no CORPO místico e cósmico de Cristo. Só haverá futuro digno quando todos os CORPOS viverem em comunhão, saciados da fome de pão e de beleza. (Frei Betto)
“Isto é o meu corpo” (Mc. 14,22), nos diz Jesus. Ele poderia ter dito: “Esta é minha vida, esta é minha história, eu mesmo...”. Mas diz: “Isto é meu corpo”; e, contido nele, sua maneira de estar na vida e de situar-se nela, seu modo de olhar, de sentir, de estar presente...
O único recurso de que Jesus dispõe antes de ser preso é seu próprio corpo. Não tem outra riqueza nem outro dom que oferecer. Esse corpo era sua vida, feita doação.
Como o corpo da mulher, capaz de conter e alimentar com seu sangue à criatura que carrega dentro de si, o Corpo de Jesus é um corpo aberto e vulnerado, quebrado e repartido. Constantemente doado.
No encontro com este Corpo podemos nos reconhecer e perdoar mutuamente, criar comunidade, multiplicar o amor e recolhê-lo para que nada se perca.
Como viveu Jesus em sua corporalidade a relação com Deus e com os outros e como nós somos convidados a viver?
Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de relacionar-nos estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros que não ocorra em nosso corpo.
O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação... O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.
É com razão que se pode falar da sabedoria do corpo. O corpo não sabe mentir. Se desejamos conhecer nossa verdade num momento determinado, o caminho correto não é dirigir-nos à nossa cabeça em busca de explicações, mas perguntar a nosso corpo: “como você se sente?”
Diante de nossa tendência a “fugir” para o passado ou para o futuro, nosso corpo nos traz sempre ao presente. Diante de atitudes de nostalgia ou de ansiedade, a atenção ao corpo nos abre o caminho para viver a profundidade do momento, do aqui e agora, o único que temos realmente ao nosso alcance.
O corpo é o grande aliado na tarefa de ser pessoa, de conhecer-nos e de viver-nos de um modo adequado.
Uma boa concepção do corpo supõe evitar a parcialização, a polarização e a dicotomia e buscar a harmonia e a integração.
Para ter uma visão e intuição completa do corpo é necessário contemplá-lo em sua totalidade e em sua originalidade: é “meu” corpo; conheço-o e reconheço-o; sei descrevê-lo; não é um estranho para mim. Com, em e pelo corpo, vivo minha história, caminho pela vida e tenho minha aventura de crescimento e de maturação, de amor e de conhecimento, de encontrar-me com os outros e comigo mesmo, com meus desejos e minhas fobias, minhas alegrias e minhas dores, minhas esperanças e meus desesperos, minhas desilusões e minhas vitórias... Tudo isso está escrito em minha “carne”.
Este corpo me limita e me define. Cada corpo é original e irrepetível; o meu também. Ele me situa no espaço e no tempo, me separa e me une aos outros; conhece o que é bom e belo e também o que é desagradável e mau. Meu ser profundo, meu ser essencial se manifesta, se abre para fora através de meu corpo. Os gestos, o olhar, o tom de voz são autenticamente a transparência do coração. O corpo é o espelho do meu interior. Não há dúvida que quando nos encontramos com uma pessoa rica em bondade, entrega generosa aos outros, simplicidade e humildade, de coração grande e capaz de perdoar, nos damos conta que seu rosto é luminoso, sereno, cheio de uma beleza única, interior; irradia alegria, serenidade, harmonia, paz...
O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso começar por sentí-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena.
O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide.
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego.
Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do corpo com atitude reverente.
Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo.
Eu sou meu corpo animado, com vida e com sentido. Eu decido com meu corpo e graças a ele.
Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro. Segundo Mt. 25,31-43, é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus se faz “totalmente, humanamente, concreto para nós”.
O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.
O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida.
O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição.
O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega...
Texto bíblico: 1 Cor. 6,15-20 Mc. 14,12-16.22-26
Na oração: Você vive a relação com seu corpo como objeto de suspeita ou como lugar de encontro?
Sinta que você é um corpo de argila, mas um corpo que carrega o “Sopro” do Espírito.
Procure saboreá-lo internamente. E deixe atuar em você a força da inspiração e da expiração para que todo o seu corpo seja iluminado e plenificado.
“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Centro de Espiritualidade Inaciana
04.06.2012