Ludolf Backhuysen

“Passemos para a outra margem” (Mc. 4,35)

“Jamais conseguirei esquecer um certo refrão que ouvi uma vez ao amanhecer, no meio de uma multidão reunida na noite da véspera de uma grande festa:

- Levai-me até a outra margem, barqueiro!, dizia o refrão.

Mas qual o significado desse chamado universal? Sem dúvida alguma, ecoa a sensação que temos de não haver ainda chegado ao nosso destino. No entanto, haveria algo mais? Onde está essa outra margem? Seria algo diferente do que já possuímos? Estaria em outro lugar, além deste, onde estamos?

Não, claro que não. O lugar onde procuramos nosso destino está no próprio coração de nossa atividade. Estamos clamando para que nos levem ao próprio lugar onde já nos encontramos.

Na verdade, ó Oceano de prazer, esta margem e a outra que busco formam em ti uma única margem. Quando digo: “esta minha margem”, a outra me parece estranha, e, quando eu perco o sentido dessa plenitude que existe em mim, meu coração ansioso reclama “outra margem”. Tudo que possuo e tudo que me parece alheio espera para ver-se reconciliado por completo em teu amor. (Tagore) 

O primeiro desejo de chegar à outra margem nasce de dentro, do coração, que sabe estar longe de seu centro e entende sua missão de busca e peregrinação interior, de colocar-se em movimento...

Sair da margem conhecida, “velha”, rotineira... para encontrar a nova margem: lugar de relação, de questionamento, de criatividade, de encontro com o novo e diferente…

A outra margem: lugar provocador, incitador, desperta curiosidade...

                           : aqui brotam as grandes experiências religiosas, as intuições, projetos, ideais vitais.

Caminhar para a outra margem é sair do centro, da segurança, da acomodação... e ir em busca das surpresas, das novas descobertas; implica arriscar, ter ousadia, não ter medo de caminhar para os “confins da terra”, para regiões desconhecidas em seu próprio interior...

Os poetas, artistas, místicos... são aqueles que fazem a experiência da “outra margem”, vislumbram o outro lado, tocam as raízes mais profundas do próprio ser. 

O Evangelho começa com um forte apelo de Jesus dirigido aos seus discípulos, convidando-os  a sair da sua rotina, a abrir-se para o novo, para o diferente, ultrapassando os próprios interesses e preconceitos. “Passar para a outra margem” exige mudança de atitude, pôr-se a caminho, êxodo, sair-de-si. 

Jesus se encontra no lado de cá, na margem ocidental do lago de Genesaré, na Galiléia É a margem da vida regrada do judeu piedoso: a margem da Lei, da sinagoga, do Sábado..., tudo o que dá segurança aos judeus. No lado de lá do lago, encontram-se a Traconítide, a Decápole, terras não familiares aos judeus. É a margem dos pagãos, dos excluídos, do afastamento de Javé. Para surpresa e até escândalo, Jesus convida os seus discípulos a passar para a outra margem, para o “outro lado da humanidade”. 

Jesus também nos convida a sair da nossa própria margem, para ir à margem do Outro e dos outros.

Ele não diz “passai para a outra margem”, mas “passemos”, “vamos juntos para a outra margem”.

Viver o seguimento é iniciar uma travessia, sem saber exatamente as tempestades ou calmarias que iremos encontrar, porque “o vento sopra onde quer”, como o Espírito. O seguidor de Jesus é “como quem está numa barca, no meio do rio e não rema constantemente, mas, às vezes, se deixa levar pela correnteza” (Péguy). 

Isto supõe coragem para enfrentar o  risco do diferente, disponibilidade, abertura ao novo.            

Para quem inicia este Caminho Espiritual, seguindo as pegadas irrepetíveis do Cristo Jesus, a vida é sempre nova e surpreendente. “Empreendemos com a ajuda dos acasos/as travessias nunca projetadas/... em serviço de Deus e seus roteiros” (J.Lima).

O seguidor de Jesus não sabe o que há do outro lado. A ele lhe custa ver claramente. No entanto, consi-dera que a outra margem é talvez diferente, mas tão apaixonante como esta margem onde ele está; e então, decide animar-se a cruzar o mar. 

Uma das teorias mais importantes descobertas atualmente defende que tudo o que é criativo surge quando  saímos da nossa zona de conforto, ou seja, do lugar onde nos sentimos cômodos e seguros. Essa teoria levada ao campo da espiritualidade, quer dizer que devemos sair, como pessoas e como comunidade, de nosso espaço espiritual rotineiro e “normótico” para poder nos encontrar com Deus.

Deus não “cabe” nas nossas “margens” conhecidas; Ele está sempre além da nossa “zona de conforto”, instigando-nos a fazer contínuas e ousadas “travessias”. 

Deus nos quer a cada um fora de nosso espaço de conforto para poder abraçar a  missão original que Ele tem reservada para cada um de nós. Não devemos nos conformar com a espiritualidade que vivemos, devemos buscar como aprofundar nela, em cada palavra, em cada lugar, em cada gesto, em cada pessoa. 

Todos os santos e santas foram pessoas que saíram de seu espaço de conforto, “transgrediram” o conhecido e rotineiro, fizeram a travessia…: nova visão, nova missão… Ser santo(a) é sair desse espaço e entrar no espaço de Deus. Cada um à sua maneira. 

Em todo momento histórico, quando a Igreja e a sociedade são sacudidas por grandes mudanças, surgem homens e mulheres que rompem com esquemas e seguranças envelhecidos e se deixam conduzir pelo Espírito ao deserto, às margens, às fronteiras... fugindo de um ambiente e de uma ordem asfixiantes. A fronteira, para eles, passa a ser terra privilegiada onde nasce o “novo” por obra do Espírito. Uma vez passada a zona de conforto, situar-se na outra margem passa a significar colaboração  com o Deus presente e ativo em toda situação humana. Isso vai gerar uma maneira nova de viver, um estilo de vida, um compromisso diferente, uma ação carregada de ousadia... 

Em toda travessia há o despojamento, a pobreza, por vezes a fome e a sede, os caprichos das estações, a incerteza dos dias de amanhã. Há a liberdade do espírito, horizontes infinitos, sem limites nem constrangimentos; há o imprevisto, o acontecimento inesperado, favorável ou adverso, que é o melhor e mais seguro dos sinais de Deus, que comanda o ritmo da marcha, as paradas, as estadias, as partidas, as mudanças de rumo ou itinerário. Há o encontro com os companheiros que se mantém fiéis, amigos que ajudam, inimigos que espreitam, pobres que compartilham o mesmo pão.

Finalmente, a travessia aproxima o peregrino cada dia, a cada instante, da meta ainda escondida, mas certa. Ao voltar-se para trás, ele se dá conta de que o itinerário foi realmente maravilhoso, que a experiência o transformou, que está mais “puro”, mais “livre”, mais “autêntico”...; numa palavra, Deus, que está no têrmo, já palmilhava a travessia com Ele. 

Texto bíblico:   Mc. 4,35-41 

Na oração: Preparar-se para a travessia                     

- Nas nossas vidas acontece algo de verdadeiro e belo quando nos  dispomos a buscar dentro de nós mesmos a razão da nossa existência.

- A nossa vida é um êxodo, um sair constante de uma realidade para  entrar em uma outra realidade nova. O peregrinar é o elemento determinante e com maior valor simbólico para toda a vida.

- Existem ainda céus por explorar, aventuras por empreender, pensamentos por experimentar e experiências por aceitar; falta-nos ainda muito por saber, por ver, por sentir, por desfrutar...

- No “mapa espiritual” de nosso interior ainda existe uma  “terra desconhecida”, que proporciona  interesse à vida, suscita  curiosidade, nos põe a caminho...  Grandes surpresas interiores  estão à nossa espera, e a capacidade de continuar buscando é que dá sentido ao esforço e vigor à vida.

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana -CEI