Há um dado que nos afeta a todos nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural de abordar os limites, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na qual a dor e a morte foram expulsas da experiência humana. É algo feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana. 

Mas o confronto com a morte não precisa desembocar em um desespero que possa destituir a vida de todo sentido. Ao contrário, ela pode ser uma experiência que nos faz despertar, nos faz reingressar na vida de uma maneira mais rica e apaixonada. 

A negação da morte sempre cobra um preço – o encolhimento da nossa vida interior, o embaçamento da visão, o achatamento da racionalidade, a atrofia dos sonhos. Ao final, o autoengano toma conta de nós. A angústia sempre acompanhará nossa confrontação com a morte. 

Na perspectiva de fé, nossa cultura prescinde do Getsêmani na nossa vida cotidiana; no entanto, este é o lugar de depuração radical, o lugar no qual devemos situar nossos fracassos e nossas solidões; é no Gólgota que devemos pôr nossas enfermidades e nossas mortes. Nossa cultura nos impede pôr a vida nesses lugares porque nega e não quer ver a fragilidade da condição humana, fonte de dor e sofrimento. 

Macha Chmakoff

Em Getsêmani, quando todos o abandonaram e fugiram, o Compassivo permanece em radical solidão, ninguém se interessa mais por Ele; esta solidão vital lhe provoca uma angústia de morte, o sacode e o aflige, levando-o à prostração. No Gólgota, Jesus experimenta, junto ao abandono, o fracasso, tudo se dilui, o mundo lhe cai em cima. 

Adentrar-nos em nosso próprio Getsêmani e Gólgota é abordar nossa radical solidão. Mesmo que produza vertigem e nos enche de angústia, é preciso olhar o túnel de frente e entrar nele. Então, invocamos Àquele que nos pode sustentar e saímos do túnel com uma solidão habitada, com o sentimento de uma presença, com a vida enraizada no único que é fonte de vida e liberdade. Começamos a ver tudo com olhos novos, o sofrimento e a angústia transformam-se em Vida. 

O teólogo e mártir Bonheoeffer afirma: “Em Jesus crucificado se rompem todas as ideias sobre Deus que as pessoas construíram através da história. Nele aparece a debilidade e o sofrimento de Deus. Só um Deus que sofre pode ajudar-nos”. É a partir da Cruz onde Deus nos diz que o mais divino que há em nós é a luta solidária por fazer um mundo mais justo e mais humano. Nossa missão será a de fazer descer da Cruz os crucificados da história, e unir-nos, indignados, aos milhões de pessoas que se manifestam a favor de uma sociedade mais justa e menos desigual. 

Contemplar a paixão e morte de Jesus em toda sua crueza, nos leva a mergulhar na condição humana, a descobrir dimensões de nossa própria humanidade que, nesta cultura mentirosa, são mutiladas e reprimidas de tal maneira que nos tornam incapazes de ser portadores de Boa Notícia. 

Junto à Cruz somos levados a crer que aliviar o sofrimento neste mundo não é uma questão puramente  analgésica, quando, na realidade, o que se trata é da implicação compassiva nesse território tão humano e tão divino no qual nossas razões, doutrinas e morais fracassam: a “loucura” de um Deus Comunidade implicado no sofrimento de suas criaturas. 

A crucifixão não foi um ato isolado, mas o cume de uma vida comprometida. Não agrada ao Pai a Cruz pelo que tem de sofrimento, mas porque supõe uma vida que se entrega até esse extremo. A Cruz não é um adorno, nem um objeto de culto, nem um amuleto. É um sinal; e, como todo sinal, indica algo: nos indica até onde pode chegar a brutalidade humana, quando os interesses, as ideias políticas ou religiosas, as leis... são colocados acima do ser humano. 

E indica algo mais: até onde chega o amor e a generosidade de Jesus, que não duvidou em sua entrega; até onde chega o amor do Pai que em Jesus se fez visível.

Por isso, aquele que pensa que, diante da Cruz, temos de oferecer atos dolorosos a Deus não sabe “ler” a Cruz. Aquele que pensa que carregar a cruz de cada dia é aguentar a injustiça, não sabe “ler” a cruz. Aquele que converte a Cruz em uma condecoração para premiar um ato de violência ou uma joia que pode ser presenteada à pessoa amada, não sabe “ler” a cruz. Aquele que coloca a Cruz nas paredes das repartições públicas  (delegacias, hospitais, tribunais, assembleias legislativas, câmara e senado federal), onde as sentenças são barganhadas e compradas, onde a corrupção é a moeda mais forte, onde os pobres morrem sem atendimento... não sabe “ler” a Cruz. 

Sabemos “ler” este sinal, quando escutamos Jesus que nos diz: “Ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida por seus amigos”. Não podemos tirar nenhum espinho da coroa de Jesus, nem diminuir as  chicotadas nas suas costas, nem a humilhação e a dor de sua tortura. O que podemos hoje fazer é tomar posição solidária ao lado dos excluídos, humilhados e desgraçados de nosso mundo, como Ele fez; nossa primeira responsabilidade é aliviar o sofrimento do outro, lutar contra o sofrimento provocado pela injustiça sobre os mais pobres e excluídos. 

O mistério da Cruz nos des-vela (tira o véu) e re-vela que toda entrega generosa, que a prepotência esmaga com a morte, não acaba em morte, mas em vida, e em vida que não termina. Podemos, então, fazer dois tipos de Via Sacra: uma, fixando-nos em Jesus, porque assim nos aproximamos da fonte do Evangelho; outra, fixando-nos nas brutalidades, violências, sofrimentos de nosso povo para ativar em nós uma generosidade ainda tímida. E, então, é quando começaremos a compreender o Evangelho. 

Com os olhos fixos no Crucificado vamos aceitando com maior cordialidade e gratuidade que somos “faíscas da criação”, que nos cabe redimir a parcela da criação que nos foi encomendada e que a compaixão solidária é tecida com muita humildade, sem prepotência; ao mesmo tempo vamos descobrindo que a vida começa a emergir ali onde o mundo só vê fracasso e morte, e que orar a partir de nossas fragilidades nos põe no caminho para experimentar o dom da Páscoa. 

Texto bíblico: Jo 19,31-37 

Na oração: No silêncio, convém permanecer um bom tempo olhando “Aquele que traspassaram”.  Para muitos olhos é só a imagem de um entre tantos “terroristas” que cruzavam as ruas de Jerusalém a caminho do Gólgota. Você pode se perguntar como é que, de todos aqueles, só a imagem e o nome deste Compassivo atravessaram a espessura dos tempos, chegaram até nós e hoje nos congrega em seu entorno.

E, dando um passo a mais, pergunte: creio de verdade n’Aquele crucificado que gritava: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana-CEI