Arcabas

 

“... e conversavam sobre todas essas coisas que tinham acontecido” (Lc 24,14)

 

Cléopas e seu companheiro decidem ir embora porque está insuportável continuar vivendo no lugar  onde Jesus sofreu a paixão e foi crucificado. A experiência da convivência com Ele e do seu seguimento tinha aberto para eles horizontes novos e mudado radicalmente o rumo de suas vidas.

Agora vão embora de Jerusalém porque, com a morte na cruz e a sepultura do Mestre, morreram e foram enterradas todas as suas esperanças. 

Afastam-se da companhia dos outros discípulos porque o sonho acabou, porque não esperam mais nada, porque querem esquecer tudo. Querem sepultar a história de sua relação com Jesus, o Nazareno, que tinham seguido com tanta generosidade e tanto entusiasmo, e refazer suas vidas longe do lugar onde tudo aquilo havia acontecido. Entregaram suas vidas a um ideal que os fascinou, e fracassaram totalmente.

No entanto, tudo o que havia acontecido com Jesus continua presente na memória e no coração deles.

Conversavam o que significou para eles o encontro com Jesus, a convivência com Ele, o fascínio exercido sobre eles pelo anúncio do Evangelho e pela esperança da libertação de Israel.

Conversavam também sobre a crucifixão e a morte de Jesus: uma conversa triste, sem sentido, uma conversa de fracassados que não leva a lugar nenhum.

Aquele que fez a experiência de conviver com Jesus, que foi cativado por Ele, não consegue mais, mesmo que queira, esquecê-lo. No fundo do coração dos discípulos há um grande vazio que, inconscientemente, querem preencher “conversando”. 

Mas o diálogo não é pacífico: não conseguem encontrar uma explicação para “o que aconteceu com Jesus”, não estão de acordo sobre o sentido dos acontecimentos.

Porque estão interiormente confusos, estão também divididos, não se entendem, “discutem entre si”, (talvez um jogando a culpa no outro por tê-lo envolvido nesta aventura fracassada). 

É justamente no meio desta “conversa”, triste e sem esperança, que o Ressuscitado se manifesta. Ele os acompanha ao longo da estrada com sua presença silenciosa, comunga com a tristeza deles e só então toma a iniciativa de uma conversa com os dois, recorrendo à pedagogia da “pergunta”.

Sua pergunta toca no ponto nevrálgico da dor e os faz explicitar os motivos da tristeza refletida em seus rostos e da preocupação que carregavam no coração, e que faziam tão lentos os seus passos.

A pergunta desencadeia uma longa resposta, carregada de pormenores sobre como os discípulos compreendiam os acontecimentos que viveram. A pedagogia amorosa de Jesus deu certo. Os discípulos abrem o coração e contam ao peregrino “o que aconteceu a Jesus de Nazaré”. Na resposta dos discípulos estão contidos os temas essenciais do Kerigma cristão; mas esse conteúdo é relatado como uma tragédia irreparável. O que aconteceu com Jesus não é contado por um coração ardente e exultante, mas por um coração ferido, desiludido e triste

Jesus não vem ao encontro dos dois discípulos para explicar algo. Vem procurá-los onde estão, para só depois partir com eles, de onde eles se encontram, em direção a um novo  momento. O aproximar-se, o caminhar juntos um bom trecho do caminho, a escuta atenta, antes e depois de perguntar, a própria pergunta..., tudo isso estabelece um clima de confiança, um colocar-se em pé de igualdade, um falar com, que não é mais um falar a alguém.

Na conversa com o peregrino, os discípulos foram se encontrando em sua identidade profunda, que tinha sido desfigurada de tal maneira que já não se sentiam seguidores daquele Jesus que, em outros tempos, tinha plenificado suas vidas. 

Para falar com alguém é fundamental conhecer o que esse alguém pensa, experimenta em seu dia-a-dia, seu trabalho, sua maneira de encarar a vida e o mundo. 

Os discípulos de Emaús falaram de sua realidade, do jeito como a entendiam. Agora Jesus pode dar um passo a mais com eles. Agora sim, porque expuseram sua maneira de entender os fatos, porque fizeram sua análise da realidade, porque mostraram, por sua conversa, onde estavam as raízes de seu desânimo, de sua tristeza, de seu medo, de sua falta de esperança. Agora sim, Jesus pode pensar em ajudá-los. Agora podem partir do ponto em que estão em direção a um novo futuro. 

Sejam quais forem as provações, os fracassos, as decepções, as feridas que sofremos, elas não serão capazes de destruir a nossa relação dom Jesus. Por isso, por um ou outro caminho, mais cedo ou mais tarde, o Senhor virá ao nosso encontro, entrará em diálogo conosco, reacenderá o fogo em nosso coração até fazê-lo arder, abrirá nossos olhos para que possamos reconhecê-lo.

A conversação é uma experiência profundamente humana de proximidade, de conhecimento, de intercâmbio, de ternura... um encontro entre caminhantes que vão compartilhando histórias de vida, esperanças e frustrações, vontade de construir e sonhar... 

Na conversação, o que importa é a pessoa do outro e não os problemas que apresenta... ela é o lugar privilegiado de encontro e descoberta misteriosa do Outro (Deus).

A conversação nos liberta da solidão e do fechamento, fazendo-nos crescer na transparência.

A conversação reforça os laços, criando a comunidade dos “amigos no Senhor”. 

A arte da conversação é um caminho pedagógico, um processo gradual que requer de nós uma capacidade de escuta, de acolher e deixar-se tocar pelo que o outro é, não só pelo que diz; uma capacidade de olhar com profundidade para reconhecer uma história santa, um caminho de salvação. É reconhecer no outro o que há de verdadeiro, bom e belo, e descobrir como o dinamismo de Deus atua no seu coração. 

Texto bíblico:  Lc 24,13-35 

Na oração:  Depois de contemplar longamente os dois discípulos no caminho, tristes, abatidos, decepcionados e totalmente desorientados, dirijamos o “olhar sobre nós mesmos”.

Trazer à memória nossos ideais, sonhos e projetos que fracassaram, fazendo desaparecer o brilho de nossos olhos, apagando o ardor de nosso coração e a alegria de viver.

- Pela conversa a pessoa manifesta quem ela é. “Onde está sua conversa, aí está seu coração”.

- Quais são suas conversas? Elas animam os outros, eleva-os, “aquecem seus corações?...”

 

Pe. Adroaldo Palaoro sj

Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana