“Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações”
(Mt 6,34)
Sabemos que a rivalidade e a competição, o desejo de poder e de resultados imediatos, a impaciência e a frustração e, acima de tudo, a angústia e o medo, criam suas exigências e preenchem todos os espaços vazios em nossa vida. A maioria de nós procura uma “ocupação”, e não espaço livre.
Quando não estamos ocupados, ficamos inquietos e ansiosos; ficamos até com medo quando não sabemos o que fazer agora, amanhã ou no ano que vem. Enquanto nossas mentes, nossos corações e nossas mãos estiverem ocupados, poderemos evitar o confronto com as questões dolorosas, às quais não queremos encarar. “Estar ocupado” tornou-se uma obsessão, um símbolo de status, e as pessoas incentivam umas às outras a manter o corpo e a mente em constante movimento. “Estar ocupado”, em contínua atividade, com agenda cheia, quase se tornou parte de nossa constituição. Aqui não há lugar para espaços contemplativos e gratuitos.
Isso explica por que o silêncio é tão difícil. Muitos dizem desejar o silêncio, a calma, a quietude, a oração pacificadora, mas não conseguem suportar tempos e espaços repousantes. Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se dentro de si mesmo é uma ameaça.
Esse é o problema do mundo moderno: a agitação e a ocupação se apresentam como um estilo de vida e acabam controlando nosso ritmo cotidiano, tornando-se fonte inesgotável de ansiedade. Em nosso padrão cultural, somos pressionados a mostrar o tempo todo que estamos ocupados e “produzindo” alguma coisa. Vivemos perdidos numa floresta de compromissos e atividades, incapazes de perceber alguma trilha estreita para poder andar e respirar. Mesmo com tudo que foi inventado para facilitar a vida – celular, internet, e-mail, mensagens instantâneas – parece que não temos tempo para nada.
Há muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Acuados pelo relógio, pelo ativismo, pela agenda, pela opinião alheia, disparamos sem rumo feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.
No entanto, há um empecilho muito maior que a ocupação: trata-se da preocupação. A preocupação é sintoma de que temos nos desconectado de nossa interioridade, de nossa verdadeira identidade, e nos deixamos determinar pelo ambiente e pelas questões externas. Investimos naquilo que não somos e acabamos por nos afastar de nosso lar; perdemos a confiança em nós mesmos e em Deus.
Nossas preocupações evitam que tenhamos novas experiências e nos mantém nas trilhas conhecidas. A preocupação é a maneira medrosa de manter as coisas como estão; parece que preferimos uma certeza ruim a uma incerteza boa (por quê deixar o certo pelo duvidoso?)
As preocupações ajudam a manter o mundo pessoal que criamos e bloqueia possíveis transformações. Nossos medos, incertezas e hostilidades nos fazem preencher nosso mundo interior com ideias, opiniões, julgamentos e valores, aos quais nos agarramos como se fossem preciosas propriedades.
Em vez de olhar de frente o desafio de novos mundos que se abrem e atuar em campo aberto, escondemo-nos atrás dos muros de nossas preocupações. Elas expressam nossa falta de habilidade de deixar resolvidas as questões vitais que nos inquietam. Somos compelidos a arranjar qualquer solução ou resposta possível que pareça ajustar-se à ocasião.
A “preocupação”, quando se torna hábito de vida, tem o efeito desastroso de comprometer a capacidade de relação, dimensão fundamental que torna a existência fecunda e criativa. Segundo o Evangelho de hoje, a preocupação envolve duas necessidades básicas do ser humano: o alimento e o vestuário.
A preocupação que pode atormentar o coração do ser humano, o medo de perder aquilo que dá segurança e o temor de não ter acumulado suficientemente, fazem com que o alimento e o vestuário percam o seu significado mais amplo e a sua força evocativa.
Então, acontece que a preocupação com o alimento e com o vestuário prevalece sobre a própria vida, não mais acolhida como dom; do mesmo modo o corpo, não mais entendido como possibilidade e lugar de relação-encontro. Inevitavelmente, a dignidade da vida se degrada e a luz do rosto da pessoa se apaga.
Uma pessoa preocupada se dispersa num louco ativismo; com isso, ela se endurece e se resseca em seu dever, não sabe mais viver a gratuidade, acolher o imprevisto, gastar tempo em escutar seus desejos essenciais, deixar-se olhar, amar, receber a graça libertadora, a abundância dos dons de Deus. Vive alienada, dividida; estando ali, desejaria estar em outro lugar. O seu existir situa-se na ordem do “fazer”.
É cada vez mais desafiante criar espaço aberto e receptivo, onde algo novo possa acontecer a nós; do mesmo modo, é urgente oferecer um espaço onde as pessoas possam se desarmar, deixar de lado suas preocupações e ocupações, e ouvir com atenção as vozes interiores.
É salutar deixar ressoar em nós questões como essas:
Qual o sentido e a direção daquilo que fazemos? Para quê? Para quem?
Qual é a intenção ou a motivação que está por trás de nossa ação?
Esta “dica” nos ajuda a superar a ansiedade e a pressa, harmonizando-nos com o tempo e fazendo as pazes com o relógio. Normalmente, vivemos ações ‘insensatas’, ou seja, sem sentido, sem direção. Se fizéssemos uma faxina em nossos compromissos e deveres, boa parte desapareceria rápido no ralo do bom senso. Se examinássemos o baú de nossas prioridades, certamente a arrumação interior seria outra.
Aliviar a vida, o coração e o pensamento... eis o desafio; não para inventar de acumular ali mais alguns compromissos estéreis e sem sentido.
Jesus Cristo revelou que nossas preocupações impedem a vinda do Reino, ou seja, do novo mundo. Não podemos esperar que algo realmente novo aconteça se nossos corações e mentes estão tão cheios com nossas preocupações que sequer ouvimos os sons que anunciam uma nova realidade. Viver em conexão com o melhor que há em nós é sentir-nos livres, desprendidos e centrados no essencial: a busca do Reino e sua justiça. A busca do Reino é o “pão” da vida e a “roupa” da luz que nos envolve.
Deus constantemente nos surpreende no singelo, nas coisas simples da vida. Muitas vezes nós perdemos a capacidade de ver a sua ação nas pequenas coisas e ficamos esperando grandes sinais, grandes milagres. Cada instante é uma chance de percebermos esse amor providente e cuidador que Ele tem por nós. Se vivemos cada momento ordinário de forma extraordinária, certamente perceberemos a sua ação e seremos surpreendidos. Deixar-nos surpreender por Deus não implica uma atitude passiva, mas um olhar contemplativo, capaz de perceber sua presença criativa em tudo e em todos. Ter um olhar contemplativo é “encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio)
Deus é o princípio vital de tudo; as criaturas são o que são devido à presença de Deus nelas. O valor e o significado últimos de todas as coisas provém não delas mesmas, mas da presença de Deus em seu interior; todas as coisas são “santificadas” porque nelas está Deus. A pessoa contemplativa, movida por um olhar novo entra em comunhão com a realidade tal como ela é. Para o contemplativo, Deus é seu lar, e Deus está em todas as partes. O que Ele espera é que nos deixemos “surpreender por seu amor, que acolhamos as suas surpresas”.
Texto bíblico: Mt 6,24-34
Na oração: Jesus aponta para a verdadeira “preocupação”, o desejo que preside a todas as nossas ocupações. Pois, se a preocupação não está bem ordenada, todas as nossas ocupações carecerão de sentido e ficarão vazias. E a “preocupação” deve ser o Reino de Deus e sua justiça.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana